Pablo Picasso, 1958
Hemingway na ratoeira
O mar não está para Hemingway. Um dos mais brilhantes prosadores do século XX se vê mais e mais amesquinhado nesses inícios de XXI. E justo por ter cultivado em seus livros uma virtude formidável: a sinceridade. Uma sinceridade seca que, por exemplo, dá bem a medida de como eram tratados judeus e mulheres naqueles tempos. Uma sinceridade que não recua ante a descrição dos brutais esportes que fascinavam o imaginário masculino de então. Jogos tribais e sanguinários: touradas, boxe, caçadas, pescarias de alto mar e risco.
Por conta dos excessos ralos do politicamente correto, a prosa limpa e desadornada de Hemingway vai cada vez mais passando do proscênio para o fundo do palco em prol de escritores medíocres, relatos étnicos de quinta categoria ou obscuras autoras que apregoam um feminismo estereotipado, ressentido, de extração pouco luminosa.
É verdade que Hemingway tinha um ego dos diabos. E em vida fez de tudo para reforçar esse estereótipo. Era o grandalhão intratável. O grande macho permanentemente bêbado – mas sem dar bandeira. O esportista de muitos riscos, cicatrizes e caçadas sem fim. O guerreiro que esteve em vários fronts. O amigo dileto de Fidel Castro e de tantos outros toureiros de primeiríssima linhagem.
Um tanto por conta disso, Hemingway é cada vez menos lido nos departamentos de literatura ao redor do planeta. Ele não é um escritor que concede muito às ondas do momento. Ou seja, à fração mais histérica desse politicamente correto. Iria sacar um sorriso irônico diante dessa noção farisaica que quer converter a palavra em realidade ao invés do contrário. Não há nada de suave que não seja suave em sua prosa sincera. E, no entanto, ele não suaviza nada.
De outro modo, apesar de se publicar imensamente mais e em maior tiragem do que quando Hemingway começou a ser publicado, raro é hoje em dia encontrar um depoimento tão visceral e apaixonado quanto o de O sol também se levanta (1926). Tampouco um romance em que a noção de cinema esteja tão presente na escrita que a própria adaptação do mesmo pelos grandes estúdios na década de 50 não passe de uma rala concessão à bilheteria, ao entretenimento fácil e à pressa. E não é preciso ir à fiesta de Pamplona para perceber que se há menos espaço para Hemingway no presente, há algo de errado com o presente.
Qualquer era, como a nossa, que entende fazer justiça com palavras deve ser vista com suspeição. A literatura não é uma engrenagem rasa processando uma causa. Seja ela justa ou não, de esquerda ou de direita, feminina ou masculina, terceiro-mundista ou metropolitana. A literatura se ocupa com outro reino e com outro exílio. E, claro, só parcialmente pode ser vista como retrato de uma época, porque também a transcende. E não é através da literatura que se vai reparar a sombra de um mundo injusto. Quando muito, ela pode intuir alguns sintomas dessa injustiça. Murmurar um protesto tímido. Indigitar essas injustiças, talvez. Mas não repará-las.
Quando Hemingway em O sol também se levanta descreve um bando de intelectuais bêbados seguindo para a Espanha em busca de um norte está falando de cada um de nós em qualquer parte do planeta. Intelectuais ou não. Da nossa angústia e do que nos é ainda dado por sonho.
Somos nós que caminhamos pela calçada parisiense onde ao lado um homem segue gravando, suavemente, sobre um molde vazado a palavra Cinzano. Somos nós que desejamos Lady Ashley e antipatizamos Robert Cohn. Somos nós que sentamos às margens do Irati, no entrecho de uma pescaria, para um gole de vinho. Ou então, restamos ao fim da tarde numa mesa do Café Select em Paris para, de forma quase sempre oblíqua, remoer a tragédia que foi a Primeira Guerra em conversas regadas a bourbon, vinho, coquetéis diversos, absinto e metáforas.
Se por um lado sua prosa límpida nos faz enxergar – e participar enxergando d’ – os sucessos narrados no livro, também conversamos por meio dessa habilidade com que Hemingway monta seus diálogos. E é quase cirúrgica a precisão com que o inglês falado é reproduzido neles. Eles entretêm insinuações suficientes para verter em palavras – sempre entrecortadas – a própria alma dos conversantes. Eles testemunham um estado de espírito.
Muito se disse de seu estilo. Da prosa contida emprestada ao tom jornalístico. Da concisão telegráfica de seus parágrafos. Mas Hemingway é muito mais que essa concisão psicológica somada a pouco caso por mera ostentação intelectual. E, claro, se tivesse vivido o suficiente para testemunhar como se escreve hoje nos jornais, teria torcido o nariz.
Quando se pensa na excepcional visualidade onipresente em O sol também se levanta, bem se pode suspeitar que Hemingway foi um leitor aplicado dos poetas chineses da dinastia T’ang ou dos haicaístas japoneses contemporâneos de Bashô. O que, aliás, não é improvável já que a cultura do oriente extremo estava em moda entre artistas plásticos ou literatos do convívio de Hemingway – como Ezra Pound, Gertrud Stein, Picasso, Gris e Braque.
De fato, Hemingway os conhecia. Embora, em seu depoimento autobiográfico sobre os anos parisienses ele não mencione a arte oriental. Aliás, Hemingway entende a posição do escritor como muito avessa à do intelectual ou à do scholar, embora fosse extremamente bem informado e não recriminasse aqueles seus pares que também se mantinham próximos ao universo acadêmico.
De resto, em sua famosa entrevista ao Paris Review, Hemingway cita ao lado de uma extensa lista de escritores também pintores entre seus “mestres”. Nomes como Tintoretto, Bosch, Brueghel, Goya, Giotto, Cézanne, Van Gogh, e Gauguin. Para, então, arrematar a questão dizendo que aprendia “com pintores tanta coisa sobre escrever quanto com escritores”.
Mas há investida nessa visualidade também o extremado amor que ele devota à cidade de Paris e, especialmente, aos campos, rios e montanhas do País Basco. A paisagem basca filtrada pelos olhos de Hemingway é límpida e clara como uma corrente de água recém caída da chuva a fluir sobre aluvião. Ao traduzir essa paisagem em palavras, Hemingway ao modo dos haicaístas japoneses, ao modo da tradição pastoral da literatura romântica, ao modo de Turgueniev, compõem também uma paisagem interior. E esse painel é indissociável de sua admiração pela cultura e pelos ritos ibéricos.
O barroquismo católico, com suas igrejas sombrias, suas plazas amplas, limadas de sol, emolduradas por arcadas, e por onde desfilavam rituais tão díspares – mas complementares – como as procissões e o carnaval fascinavam sua mente anglo-saxã. Talvez como que lhe resgatassem uma espécie de sinceridade que ele não entrevia em seu próprio meio. E a forma exigente com que ele busca essa sinceridade para si é comovente. Ao longo da narrativa de O sol também se levanta se vai formando um largo lastro de empatia, um tanto atávico, entre Hemingway e a Espanha. Para todos os efeitos, essa natureza ibérica, e esses rituais católicos como que parecem assomar, aos olhos dele, mais adequados para compor um painel do trágico, das cinzas, das cicatrizes e pesares que há numa existência – qualquer seja ela – tanto quanto de suas alegrias, réstias de luz, folia e júbilo. Em duas palavras e uma tela de Brueghel: carnaval e quaresma. E há um fascínio pelo barroco nesse homem de temperamento seco e ascendência nórdica.
N’O sol também se levanta crucial para os personagens é o fato de terem compartido uma experiência intraduzível: a guerra. Assim, tantos quantos passaram por essa experiência limite conseguem se entender. Sabem seu nome de guerra, como se diz. Compartem um código. Tantos quantos estiveram no limiar da morte. Pois até mesmo os que só viveram essa experiência obliquamente, longe do front, como Brett Ashley – que tratou dos feridos num hospital londrino –; ou Romero, o jovem toureiro – que trava uma guerra cotidiana e cerrada com a morte, nas corridas de touros – sabem aferir o peso de cada uma das palavras e gestos que articulam ao longo de uma conversa. Compartem-na. Compartem essa experiência tácita onde há muito de estóico mas também de grandeza e heroísmo.
Não a grandeza épica dos antigos. Não como guerreiros na Ilíada. Ainda épicos, sim, mas justamente pelo grampo contrário. Pela cotidianeidade minúscula, oca e a quase total ausência de grandeza em suas vidas. Épicos mas ao avesso. Anti-épicos. E por justamente aferirem, como diz Joyce, o peso dessas grandes abstrações, dessas “grandes palavras que nos tornam tão infelizes”: amor, paz, esperança, honra, heroísmo. E, claro, todo esse ambiente é temperado por um determinismo amargo, um tanto cético, do tipo que se pode surpreender nas páginas do Eclesiastes, o livro bíblico do qual Hemingway sacou o título do romance.
Mas há também espaço para se fruir a paisagem como um recado divino: “adiante a estrada sortia da floresta e seguia por sobre a ombreira da crista dos montes. As colinas acima quase não eram arborizadas, e havia vastos campos de tojo, sombrios sob árvores e ressaltavam cascalhos, que demarcavam o curso do Irati”. Ou ainda: “Era uma linda manhã, havia cirros muito altos sobre as montanhas. Chovera leve à noite, estava fresco e ameno no platô, e a vista maravilhava. Todos nos sentíamos bem, e estávamos contentes”.
Provavelmente todos podiam sentir o fluxo epifânico dessa natureza. Mas ainda aqui, a exceção é Robert Cohn. Ele é o que não passou pela guerra, e logo aquele que está fadado a não entender o código compartido pelos demais. Para usar a metáfora do próprio livro: ele é um boi entre touros. Não tendo vivido seu inferno particular, como saber das belezas do mundo? E há aquele famoso trecho em que os exércitos aqueus se preparam para o assalto à Tróia no Canto 8 da Ilíada para se pôr em paralelo. A cena se dá num amanhecer, e as fogueiras vão perdendo seu brilho. Então, a natureza surge transfigurada justo por que vista pela última vez. Há algo de precariamente eterno no olhar daqueles homens prestes a serem dizimados em combate. A prosa corrida de O sol também se levanta faz parte da tradição desse olhar. Essa melhor obra de Hemingway trata-se de um daqueles raros livros em que a Ilíada reencontra, no correr do tempo, sua edição revista e comentada. Guardadas as proporções, pode lembrar, na prosa, um tanto do que o poeta Eugênio de Andrade diz a propósito de Os Lusíadas: “contém alguns daqueles raros versos que participam da respiração do mundo”.
O mar não está para Hemingway. Um dos mais brilhantes prosadores do século XX se vê mais e mais amesquinhado nesses inícios de XXI. E justo por ter cultivado em seus livros uma virtude formidável: a sinceridade. Uma sinceridade seca que, por exemplo, dá bem a medida de como eram tratados judeus e mulheres naqueles tempos. Uma sinceridade que não recua ante a descrição dos brutais esportes que fascinavam o imaginário masculino de então. Jogos tribais e sanguinários: touradas, boxe, caçadas, pescarias de alto mar e risco.
Por conta dos excessos ralos do politicamente correto, a prosa limpa e desadornada de Hemingway vai cada vez mais passando do proscênio para o fundo do palco em prol de escritores medíocres, relatos étnicos de quinta categoria ou obscuras autoras que apregoam um feminismo estereotipado, ressentido, de extração pouco luminosa.
É verdade que Hemingway tinha um ego dos diabos. E em vida fez de tudo para reforçar esse estereótipo. Era o grandalhão intratável. O grande macho permanentemente bêbado – mas sem dar bandeira. O esportista de muitos riscos, cicatrizes e caçadas sem fim. O guerreiro que esteve em vários fronts. O amigo dileto de Fidel Castro e de tantos outros toureiros de primeiríssima linhagem.
Um tanto por conta disso, Hemingway é cada vez menos lido nos departamentos de literatura ao redor do planeta. Ele não é um escritor que concede muito às ondas do momento. Ou seja, à fração mais histérica desse politicamente correto. Iria sacar um sorriso irônico diante dessa noção farisaica que quer converter a palavra em realidade ao invés do contrário. Não há nada de suave que não seja suave em sua prosa sincera. E, no entanto, ele não suaviza nada.
De outro modo, apesar de se publicar imensamente mais e em maior tiragem do que quando Hemingway começou a ser publicado, raro é hoje em dia encontrar um depoimento tão visceral e apaixonado quanto o de O sol também se levanta (1926). Tampouco um romance em que a noção de cinema esteja tão presente na escrita que a própria adaptação do mesmo pelos grandes estúdios na década de 50 não passe de uma rala concessão à bilheteria, ao entretenimento fácil e à pressa. E não é preciso ir à fiesta de Pamplona para perceber que se há menos espaço para Hemingway no presente, há algo de errado com o presente.
Qualquer era, como a nossa, que entende fazer justiça com palavras deve ser vista com suspeição. A literatura não é uma engrenagem rasa processando uma causa. Seja ela justa ou não, de esquerda ou de direita, feminina ou masculina, terceiro-mundista ou metropolitana. A literatura se ocupa com outro reino e com outro exílio. E, claro, só parcialmente pode ser vista como retrato de uma época, porque também a transcende. E não é através da literatura que se vai reparar a sombra de um mundo injusto. Quando muito, ela pode intuir alguns sintomas dessa injustiça. Murmurar um protesto tímido. Indigitar essas injustiças, talvez. Mas não repará-las.
Quando Hemingway em O sol também se levanta descreve um bando de intelectuais bêbados seguindo para a Espanha em busca de um norte está falando de cada um de nós em qualquer parte do planeta. Intelectuais ou não. Da nossa angústia e do que nos é ainda dado por sonho.
Somos nós que caminhamos pela calçada parisiense onde ao lado um homem segue gravando, suavemente, sobre um molde vazado a palavra Cinzano. Somos nós que desejamos Lady Ashley e antipatizamos Robert Cohn. Somos nós que sentamos às margens do Irati, no entrecho de uma pescaria, para um gole de vinho. Ou então, restamos ao fim da tarde numa mesa do Café Select em Paris para, de forma quase sempre oblíqua, remoer a tragédia que foi a Primeira Guerra em conversas regadas a bourbon, vinho, coquetéis diversos, absinto e metáforas.
Se por um lado sua prosa límpida nos faz enxergar – e participar enxergando d’ – os sucessos narrados no livro, também conversamos por meio dessa habilidade com que Hemingway monta seus diálogos. E é quase cirúrgica a precisão com que o inglês falado é reproduzido neles. Eles entretêm insinuações suficientes para verter em palavras – sempre entrecortadas – a própria alma dos conversantes. Eles testemunham um estado de espírito.
Muito se disse de seu estilo. Da prosa contida emprestada ao tom jornalístico. Da concisão telegráfica de seus parágrafos. Mas Hemingway é muito mais que essa concisão psicológica somada a pouco caso por mera ostentação intelectual. E, claro, se tivesse vivido o suficiente para testemunhar como se escreve hoje nos jornais, teria torcido o nariz.
Quando se pensa na excepcional visualidade onipresente em O sol também se levanta, bem se pode suspeitar que Hemingway foi um leitor aplicado dos poetas chineses da dinastia T’ang ou dos haicaístas japoneses contemporâneos de Bashô. O que, aliás, não é improvável já que a cultura do oriente extremo estava em moda entre artistas plásticos ou literatos do convívio de Hemingway – como Ezra Pound, Gertrud Stein, Picasso, Gris e Braque.
De fato, Hemingway os conhecia. Embora, em seu depoimento autobiográfico sobre os anos parisienses ele não mencione a arte oriental. Aliás, Hemingway entende a posição do escritor como muito avessa à do intelectual ou à do scholar, embora fosse extremamente bem informado e não recriminasse aqueles seus pares que também se mantinham próximos ao universo acadêmico.
De resto, em sua famosa entrevista ao Paris Review, Hemingway cita ao lado de uma extensa lista de escritores também pintores entre seus “mestres”. Nomes como Tintoretto, Bosch, Brueghel, Goya, Giotto, Cézanne, Van Gogh, e Gauguin. Para, então, arrematar a questão dizendo que aprendia “com pintores tanta coisa sobre escrever quanto com escritores”.
Mas há investida nessa visualidade também o extremado amor que ele devota à cidade de Paris e, especialmente, aos campos, rios e montanhas do País Basco. A paisagem basca filtrada pelos olhos de Hemingway é límpida e clara como uma corrente de água recém caída da chuva a fluir sobre aluvião. Ao traduzir essa paisagem em palavras, Hemingway ao modo dos haicaístas japoneses, ao modo da tradição pastoral da literatura romântica, ao modo de Turgueniev, compõem também uma paisagem interior. E esse painel é indissociável de sua admiração pela cultura e pelos ritos ibéricos.
O barroquismo católico, com suas igrejas sombrias, suas plazas amplas, limadas de sol, emolduradas por arcadas, e por onde desfilavam rituais tão díspares – mas complementares – como as procissões e o carnaval fascinavam sua mente anglo-saxã. Talvez como que lhe resgatassem uma espécie de sinceridade que ele não entrevia em seu próprio meio. E a forma exigente com que ele busca essa sinceridade para si é comovente. Ao longo da narrativa de O sol também se levanta se vai formando um largo lastro de empatia, um tanto atávico, entre Hemingway e a Espanha. Para todos os efeitos, essa natureza ibérica, e esses rituais católicos como que parecem assomar, aos olhos dele, mais adequados para compor um painel do trágico, das cinzas, das cicatrizes e pesares que há numa existência – qualquer seja ela – tanto quanto de suas alegrias, réstias de luz, folia e júbilo. Em duas palavras e uma tela de Brueghel: carnaval e quaresma. E há um fascínio pelo barroco nesse homem de temperamento seco e ascendência nórdica.
N’O sol também se levanta crucial para os personagens é o fato de terem compartido uma experiência intraduzível: a guerra. Assim, tantos quantos passaram por essa experiência limite conseguem se entender. Sabem seu nome de guerra, como se diz. Compartem um código. Tantos quantos estiveram no limiar da morte. Pois até mesmo os que só viveram essa experiência obliquamente, longe do front, como Brett Ashley – que tratou dos feridos num hospital londrino –; ou Romero, o jovem toureiro – que trava uma guerra cotidiana e cerrada com a morte, nas corridas de touros – sabem aferir o peso de cada uma das palavras e gestos que articulam ao longo de uma conversa. Compartem-na. Compartem essa experiência tácita onde há muito de estóico mas também de grandeza e heroísmo.
Não a grandeza épica dos antigos. Não como guerreiros na Ilíada. Ainda épicos, sim, mas justamente pelo grampo contrário. Pela cotidianeidade minúscula, oca e a quase total ausência de grandeza em suas vidas. Épicos mas ao avesso. Anti-épicos. E por justamente aferirem, como diz Joyce, o peso dessas grandes abstrações, dessas “grandes palavras que nos tornam tão infelizes”: amor, paz, esperança, honra, heroísmo. E, claro, todo esse ambiente é temperado por um determinismo amargo, um tanto cético, do tipo que se pode surpreender nas páginas do Eclesiastes, o livro bíblico do qual Hemingway sacou o título do romance.
Mas há também espaço para se fruir a paisagem como um recado divino: “adiante a estrada sortia da floresta e seguia por sobre a ombreira da crista dos montes. As colinas acima quase não eram arborizadas, e havia vastos campos de tojo, sombrios sob árvores e ressaltavam cascalhos, que demarcavam o curso do Irati”. Ou ainda: “Era uma linda manhã, havia cirros muito altos sobre as montanhas. Chovera leve à noite, estava fresco e ameno no platô, e a vista maravilhava. Todos nos sentíamos bem, e estávamos contentes”.
Provavelmente todos podiam sentir o fluxo epifânico dessa natureza. Mas ainda aqui, a exceção é Robert Cohn. Ele é o que não passou pela guerra, e logo aquele que está fadado a não entender o código compartido pelos demais. Para usar a metáfora do próprio livro: ele é um boi entre touros. Não tendo vivido seu inferno particular, como saber das belezas do mundo? E há aquele famoso trecho em que os exércitos aqueus se preparam para o assalto à Tróia no Canto 8 da Ilíada para se pôr em paralelo. A cena se dá num amanhecer, e as fogueiras vão perdendo seu brilho. Então, a natureza surge transfigurada justo por que vista pela última vez. Há algo de precariamente eterno no olhar daqueles homens prestes a serem dizimados em combate. A prosa corrida de O sol também se levanta faz parte da tradição desse olhar. Essa melhor obra de Hemingway trata-se de um daqueles raros livros em que a Ilíada reencontra, no correr do tempo, sua edição revista e comentada. Guardadas as proporções, pode lembrar, na prosa, um tanto do que o poeta Eugênio de Andrade diz a propósito de Os Lusíadas: “contém alguns daqueles raros versos que participam da respiração do mundo”.
Nota - ao contrário da maioria dos textos em prosa postados por aqui, este é inédito. Embora haja sido escrito em 2001.