quinta-feira, 31 de julho de 2008

A misantropia como método: Larkin


Nan Goldin, The Parents' Wedding Photo, 1985



This Be The Verse


They fuck you up, your mum and dad.

They may not mean to, but they do.

They fill you with the faults they had

And add some extra, just for you.


But they were fucked up in their turn

By fools in old-style hats and coats,

Who half the time were soppy-stern

And half at one another's throats.


Man hands on misery to man.

It deepens like a coastal shelf.

Get out as early as you can,

And don't have any kids yourself.


Phillip Larkin


Que assim seja o verso


Eles te fodem, teus dignos pais.

Podem dizer que não, mas remanescem.

Te legam seus defeitos pessoais

E alguns extras, só para ti, acrescem.


Mas a seu tempo foram fodidos nos zeros

Por idiotas de velhos chapéus e churras,

Que metade do tempo eram austeros

E outra metade viviam às turras.


O homem a desgraça passa ao homem.

E ela aprofunda-se como uma gamboa.

Anda, sai logo dessa, vê se some,

E não pensa que ter filhos é uma boa.




Nota - Este poema custou, pela linguagem chula das primeiras linhas, o título de "Sir" a Philip Larkin. Não deve, no entanto, ser mal-interpretado. Larkin não implica apenas o modo como pais tendem a arruinar a vida de filhos ao esperar que estes acabem vivendo em função de compensá-los de suas frustrações; mas também que os próprios pais foram arruinados pelos avós, e estes pelos bisavós, numa cadeia sem fim. E que também os filhos irão fazer a mesma coisa com os netos, etc. De resto, não se pode subsumir uma observação publicada a algo vivido no plano estritamente pessoal, do autor. Fazer essa cerrada transposição entre o que um escritor publica e o que ele é, seria o equivalente a pensar que Machado de Assis é Dom Casmurro. Ou que Nelson Rodrigues e Dalton Trevisan são seus personagens grotescos. Ou que Kafka era kafkiano. Mudando de assunto, poucos poetas na segunda metade do Sec. XX são tão ingleses, no sentido de exprimirem uma espécie de acervo de experiências coletivas (proposição, talvez, menos tacanha do que identidade nacional) do que Larkin.

Uma necessidade de transparência


Tiago Santana, 2003




Onde o sol dá xeque-mate à tristeza

Imagens do Ceará, de Herman Lima, Edições UFC, Coleção Alagadiço Novo, 1997.

Dos escritores cearenses poucos são tão prazerosos de ler quanto Herman Lima. Não falo dos incorrigivelmente cultos, corretos, de consagrada mestria. Se você anda atrás disso, é melhor se ocupar com Alencar, José Albano, Gustavo Barroso. Os livros de Herman Lima são irregulares. Salta-se de uma página admiravelmente composta para a seguinte, onde há pedantismos, incorreções, equívocos históricos, sentimentalismo em excesso. Mas isso não o diminui. Há algo nele que só encontra paralelo no Gustavo Barroso memorialista. Algo que brota da gratuita pulsão do colecionador. É assim. Herman Lima é possuído de um afeto que quer ressuscitar tempos, lugares. Literalmente. Sem mediação de ficção.
É claro que ele não consegue. E é também em parte por essa não consecução que sua obra de memorialista se estabelece em toda sua dimensão e humanidade. Não sendo a narração o forte de Lima, ele se especializou em captar atmosferas e anedotas -- quase todas coadas num filtro doméstico. É um perito em paisagens, climas, texturas, gestos coletivos, lentas artesanias intuitivas, cores, coisas apreendidas pelos sentidos. É bem mais efetivo -- mas não menos coletivo -- quando se afasta do épico, debruçando-se sobre o concreto dos pequenos afazeres que tomam tempos longos. Seus livros celebram um espécie de etnologia poética. Sua escritura é colorida e solar. Sinestésica. De cortes rápidos, descontínuos. Essencialmente visual. Muita atenta ao digníssimo reino dos detalhes. Às polainas dos dias.
Imagens do Ceará não está sequer na primeira linha da obra de Lima. Não tem o volume e a distância de Poeira do Tempo. Não é difícil perceber no livro inadequações, descontinuidades, falhas. E, no entanto, bem presente assoma essa marca amorosa do colecionador. Esse desejo, impossível, de retorno a tempos e lugares. Ou a vontade de legar para adiante uma cidade e um tempo irremissivelmente desmontados. Um proustianismo. Escrita feita expressamente desde experiência e testemunho.
O Ceará das imagens de Lima é Fortaleza e, quando muito (um único capítulo), deriva para os sertões jaguaribanos com o Aracati na foz. É só isso.
É só isso mas está lá, repleto de sensações. Está lá propiciatório. No sentido de nos inclinar para o resgate de dimensões históricas que estariam perdidas para sempre. De distendê-las, dimensioná-las com vasto senso de inscrição no fluxo do tempo. Um dos capítulos começa com uma definição da cidade de Nossa Senhora da Assunção que é quase um hai-kai: "Fortaleza é um tabuleiro de xadrez colorido, em que o sol dá xeque-mate à tristeza o dia todo".
Pode ser. Pode ser assim, solar. Mas o centro desse espaço é o sítio da família, no Meireles. Para onde tudo converge. Para onde Lima está sempre voltando de férias. É isso mesmo. Chega a ser engraçado, porque hoje o Meireles é um dos bairros mais verticalizados de Fortaleza. Mas, em meados do século passado, quando Lima vinha do Rio em férias, o sítio -- chegando cada vez mais perto da cidade -- ainda estava lá, em sua plenitude de quinta portuguesa, nos arrabaldes. Isso aí pelos anos 50.
Do sítio se sente tudo, até os cheiros. Estão lá os cajueiros, as guabirabas, mofumbas, pinhões bravos, jatobás, o alpendre com redes de varanda armadas, a aragem do mar quebrando ao largo, o ponto de passagem para o Mucuripe, o farol velho piscando lá, acima das dunas, as lagoas que encorpam nos invernos mais caudalosos, os três caminhos de acesso a Fortaleza. O que seguia para a Aldeota, então, atingia a cidade pelo Castelo do Plácido -- hoje, cruzamento da Santos Dumont com Monsenhor Bruno. Herman Lima é uma leitura que Miguel Angelo Azevedo (Nirez) deve fazer com um prazer tanto especular quanto labiríntico.
A marca amorosa do colecionador é patrimônio de ambos. É o eixo da escritura de Lima assim como das coleções de Nirez. Neles não há sistema, mas modos de sentir. Tempos e lugares escaneados pelos sentidos. No caso de Lima, que vive num exílio compensado por retornos esporádicos, o excesso de apego quase neurastênico às coisas passadas ronda o livro à cada página. Em certos trechos, tamanhos apego e sentimentalidade ameaçam amarrar de vez as páginas entre as capas. Expulsar o leitor, em sua intrusividade. E fechar o caso. Lima sabe o quanto um leitor pode ser abelhudo. Viver metendo o nariz onde não é chamado. Embora, em certas passagens, conceda ainda mais de pessoal ao leitor do que manda a prudência. Sua sensibilidade é a de um narrador à antiga, posto à prova de novidades nem sempre alvissareiras. Capaz de depurar um acervo coletivo de sabedorias. Ele nos conta de um pescador paralítico, de uma rendeira que era uma espécie de geômetra intuitiva, de uma cozinheira que conheceu a cidade grande (Recife) graças a uma mordida de cachorro. Seu reino é o das anedotas. Seu exílio, o da nostalgia que surge não como depressão mas remendo.
Mesmo um leitor desatento, no entanto, pode perceber a fixação que Lima tem pelo pai. O carinho pelas filhas. A reticência com que fala da mãe e da esposa. A obsessão com que diz da graça das "caboclinhas" -- filhas de pescadores das proximidades do sítio ou sertanejas que viu passar, enquanto feitor de uma estrada de rodagem, ligando o Aracati ao sertão do Jaguaribe. Algo do que também vai expresso em seu primeiro livro de contos, Tigipió. E, embora sua visão dos tipos cearenses -- vaqueiros, jangadeiros, rendeiras, personagens que fazem parte da mitologia do Centro de Fortaleza -- retenha algum estereotipia, há também coisas de um observador para lá de atento. Coisas que não podem ser vendidas em separado.
O noves fora é sairmos mais conscientes do espaço. Das inflexões passadas pelo espaço no correr dos anos. Esse filtro do espaço através do tempo é extremamente bem cristalizado. E o resultado é uma fina coleção de cristais. Ou uma pilha de roupas brancas, bem engomadas, depois de estendidas no quaradouro e batidas à quartzo e luz.
Por uma espécie de proustianismo muito próprio, Lima quer remontar o passado em um outro lugar. Sob outras circunstâncias. Ao menos uma vez recomposto. Para o prazer dos sentidos. Ou então, carregá-lo consigo. E seguir sendo fiel às boas promessas que não se realizaram.
É de uma visita ao Aracati, com impressões de beira de estrada bastante bem compostas, que sai o trecho abaixo, onde se nota, ainda uma vez, a necessidade de sequestrar o passado para outro lugar. Para perto do coração:

"Três vezes, subo e desço, no correr do dia a rua longa, parando aqui e ali na contemplação de algum daqueles sobrados de azulejos, todos de quadradinhos azuis e brancos, polidos ao sol, e que dão na gente a vontade maluca de carregar inteirinhos de avião, para morar no Rio..."
[Fortaleza, 31.07.08]




Nota - Esta resenha segue dentro de um gesto mais amplo que chamo de contra-resenha. Ou seja, resenhar livros que 1. não foram recém-lançados, mas mereceriam pelo menos serem relançados, dada a sua importância; 2. não fazem parte de qualquer interesse pessoal imediato de quem resenha (ou seja, no caso, de uma coleção que eu estou editando ou que um amigo meu está editando, o que um amigo de um amigo... etc.); 3. que apenas seja um bom livro, embora esteja passando despercebido porque, entre outras, foge à categoria imediatamente anterior. Outro dia, tentei pesquisar algo sobre Herman Lima na rede. Ora, não há sequer um verbete sobre ele na Wikipédia. E olha que Lima, entre outras, foi um dos grandes -- senão o maior -- estudioso da caricatura no Brasil.

As confusas palavras


Antoni Muntadas, On Translation: Warning. 1999



Traduzir


O que torna digna a tarefa do tradutor é sentir que se ocupa com algo profundamente imperfeito. Algo que porta a marca de Caim, a confusão de Babel. E, ainda assim, se empenhar ao máximo em emprestar algum sentido àquilo que já nasce torto, deformado, com necessidades especiais. É essencial que se tenha de pensar duas ou mais vezes. Porque algumas das melhores coisas, não temos de pensar para executá-las. Mas essas são as exceções e, de todo modo, não parecem ser feitas por nós, já que surgem “automaticamente”. Como a melhor parte das grandes obras literárias parece ser feita nesse modo “piloto automático”, como querer que a tradução retenha o frescor dessa operação? Ela pode, quando muito, preservar algo do conteúdo. Mas é a forma (traduzível apenas em alusão) e não o conteúdo, quem verdadeiramente educa.


Perdidos na selva dos símbolos


Sofia Coppola, 2003



Traduzir


Uma das coisas saudáveis de traduzir: indicar ao leitor – ao menos àquele versado nas duas línguas em questão – que há sempre algo faltando. Ou fora de lugar. Essas ausências ou faltas de jeito podem ser sentidas em trechos distintos do mesmo texto. Toda tradução se compõe de uma colcha de retalhos, onde cada trecho é visto como o mais inadequado por um determinado leitor, de modo que a soma dessas inadequações forma o corpo da tradução. Mas se esse leitor é perspicaz o suficiente para perceber que até mesmo no original há algo incompleto, então, no mínimo, tem também um temperamento de artista. E pode sentir a tradução, não em suas partes isoladas - malogradas por natureza -, mas em seu sentido geral.



In the sky with red balloons


Paul Signac, 1891



O Padre e Seus Balões

Basta ler o comentário de leitores, planeta afora, para perceber o fascínio despertado pela história de Padre Carli. E perceber também o quanto sua imprudência, soprada em mil balões desgovernados, se estende ao comentário de alguns leitores que entrevêem na morte do padre uma prova da inexistência de Deus ou outras intemperanças do gênero. É lamentável que tenha sido assim. Ou que não haja na legislação uma cláusula proibindo a venda de balões de festa a padres que desejam se pendurar neles e se jogar no mar. Mas a legislação está longe de prever tudo. E todo ser humano tem um pouco de Padre Carli e seus balões. Um ponto fraco, uma compulsão para imprudência, que convém saber domar.
Um padre amarrado a mil e um balões de aniversário desaparece sobre o Atlântico. A notícia parece sair de um poema surrealista. E todo o episódio, não fosse pela lastimável perda de uma vida humana, teria um humor muito próprio. Está, de qualquer forma, salpicado de ironias. A maior delas: um homem que imprudentemente se arrisca, para levantar fundos em benefício de uma coletividade pobre, é objeto de uma operação de busca milionária, que custou dezenas de vezes o que ele teria podido arrecadar. Um roteirista de Hollywood não faria melhor.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Da discrição dos Elefantes: D. H. Lawrence


Alexander Calder, Elephant Chair With
Lamp, 1928





The Elephant is Slow to Mate

The elephant, the huge old beast,
is slow to mate;
he finds a female, they show no haste
they wait

for the sympathy in their vast shy hearts
slowly, slowly to rouse
as they loiter along the river-beds
and drink and browse

and dash in panic through the brake
of forest with the herd,
and sleep in massive silence, and wake
together, without a word.

So slowly the great hot elephant hearts
grow full of desire,
and the great beasts mate in secret at last,
hiding their fire.

Oldest they are and the wisest of beasts
so they know at last
how to wait for the loneliest of feasts
for the full repast.

They do not snatch, they do not tear;
their massive blood
moves as the moon-tides, near, more near
till they touch in flood.

D.H. Lawrence


O Elefante Acasala Devagar

O elefante, aquela besta enorme,
acasala devagar;
dá com a fêmea, e os dois quase dormem
ao aguardar

um quê de cortesia em seus grandes corações
tão lentos de inflamar
enquanto chafurdam nos aluviões
a beber, petiscar,

trombando em pânico pelas brenhas
da floresta com a manada,
ferram no sono por pausas ferrenhas,
acordam sem dizer nada.

Daí lentamente o enorme coração sem medo
enche-se de desejo
até a grande besta trepar, por fim, em segredo,
cobrindo-se de pejo.

Como esses paquidermes nada tem de tontos
já que, a sós, esperam até o fim
o momento em que a ceia está no ponto
de virar festim.

Eles não arranham ou acuam;
seu sangue abundante
move-se, mais e mais, como maré de lua
até se tocarem transbordantes.

domingo, 27 de julho de 2008

Uma fábula não de Esopo



Eva Zeisel, 1945








O Camelo e o Dromedário

Camelos e dromedários têm olhos tristes. Se vistos com vagar, atrás dos longos cílios, existe também a necessidade de zombar. Sonsice pressentida. O tipo da coisa que não se encontra naqueles viralatas do interior. Nestes há só uma amabilidade que não se tempera de qualquer sarcasmo. Uma doçura humilde, desamparada, de dar ganas de levar pra casa.

Só ganas. No fundo, ninguém leva. E o inferno prossegue abarrotando-se de boas intenções, algum turismo. Além disso, diante deles as meninas fazem beiçinho e dizem - Ôôôô, bichim! de um jeito tão compungido que dá vontade de botá-las no colo junto com os viralatas. Todas elas. E, ainda mais, vontade de levá-las pra casa. Os viralatas do interior, no entanto e em geral, com aquelas lagoas de bondade no olhar, continuam sarna, couro e ossos pelas estradas poeirentas. Eis um exemplo da contribuição das intenções para o aperfeiçoamento ético da humanidade.

Mas nossa intenção, aqui, é, antes, a de tecer um estudo comparativo entre camelos e dromedários. E dizíamos que uma ínfima parte da doçura de olhar desses viralatas se pode achar nos olhos tanto de ambos quanto de trambos, se incluíssemos nessa história também as lhamas. Outrossim, é que as lhamas já são uma outra conversa. Seja por viverem na América do Sul, seja por possuírem um olhar com certa transcendência blasée. Agora, quando reparamos bem, é uma coisa de nada essa faísca de doçura triste nos olhos das duas alimárias do deserto. Bem menor que à primeira vista. Na verdade, há muita ironia nos olhos tanto dos camelos, quanto, principalmente, dos dromedários. As aparências enganam, mas, enfim, aparecem, ao contrário de outras coisas que, vamos e venhamos, nem tanto.

Exemplo disso? De coisas que não se declaram? Que tal os extraterrestres e suas engenhocas voadoras? É típico do ser humano que os ET's tenham aparecido mais de uns tempos pra cá. E fazendo uso de máquinas voadoras em forma de disco. Eles não poderiam se locomover de outra forma? Menos decalcada do sonho humano de voar? Não poderiam ser invisíveis? E por que essas máquinas têm a forma de um disco? "Porque o fonógrafo estava em moda quando se 'viu' o primeiro disco voador", me garante um amigo. Ora, isso é ao menos uma das hipóteses a se levar em conta. Uma que, talvez, a ufologia ainda não levou. Quer dizer, com milhares de anos de história, e jamais um relato de disco voador feito por um patriarca hebreu ou glosado por um goliardo. Ou, digamos, uma tela cheia de voadores discos pintada por um perspectivista imitador de Leonardo ou um nobre francês do sec. XVIII. Os discos voadores deixaram para surgir, na forma rotunda como surgiram, justo quando o homem começou a ganhar a vida fazendo coisas parecidas com a dos ET's: dando suas voltinhas pelo espaço. Umm! Isso soa um pouco suspeito.

Mas, falar em voltinhas, é preciso dizer que camelos e dromedários são grandes amigos. E já pelo menos desde a arca de Noé. Costumavam passear juntos pelo convés da embarcação a discutir a previsão do tempo, tergiversar sobre a cotação das ações da Canaãbrás, resmungar contra os serviços de bordo. Aos poucos, os assuntos desses passeios pelo convés, extremamente protocolares, foram se estendendo a uma defesa mais ou menos filosófica das virtudes de se ter uma ou duas corcovas.

O dromedário, muito polido, de início até concedeu certa oposição aos argumentos do camelo. Percebendo a puerilidade deles, os foi engolindo em seco e frequentemente. O camelo falava um bocado. Mas o dromedário sabia que alfafa boa se comia fria. Já o camelo seguia gabando-se de possuir aquele sinal de beleza, à semelhança do compadre dromedário, só que em dose dupla. Sim, porque para o camelo, nada mais sem graça do que o dorso de um cavalo: plano, sem corcova alguma. Que peça o Criador pregara no eqüino.

Também apregoava o camelo que seu nome convertera-se em nome genérico. E que os dromedários eram, por igual, conhecidos como camelos. E que isso se dava pelo fato de eles, os de duas, serem mais recentes e belos do que os de uma. Serem a culminância do gênero, os verdadeiros camelos. Que os de uma haviam sido feitos prematuramente. Eram incompletos. E, por outro lado, como não havia um de três, eles eram os maiorais:

-A última palavra em termos de design para quadrúpedes no deserto! - arrotava o camelo. Eles, bactrianos, duas bossas nas costas, eram os donos do pedaço.

O dromedário contestava tímido. Disse que os outros o chamavam de camelo, porque era mais fácil dizer camelo do que dromedário. Dromedário era uma palavra difícil, grega, parecia nome de filósofo. E as pessoas tinham medo de errar a pronúnica. Mas o camelo riu-se da hipótese de seu camarada de corcova e conversa. Agora, quase indignou-se quando o dromedário ousou afirmar que, se o nome do camelo era mais difundido, a imagem dos de uma corcova era a mais lembrada pelo mundo afora. E, quem sabe, só a foto de Che Guevara era mais difundida que a imagem do dromedário, carregado de presentes, junto aos Reis Magos:

--Ora, ora, meu amigo, largue disso. Que falácia! Lembre-se que isso só ocorre no Natal. E, ainda que fosse verdade, o caso se daria apenas pela preguiça mental das pessoas. Elas pensam em camelos, mas os reduzem a dromedários. Elas simplificam as imagens lembradas. Assim, para economizar neurônios, acabam fabulando o mais simples de desenhar: vocês, de uma corcova. A memória, quando lembra a matéria, prega peças -- concluiu o camelo, que nas horas vagas, andava lendo filosofia. E acontecia de haver um excesso de horas vagas para todos naquele insólito cruzeiro.

Muitas ouviu o dromedário. E, se tanto, pigarreava. Torcia imperceptivelmente o pescoço. Enrugava de leve o cenho. Balançava, de pouco, o rabinho em forma de pincel. O dromedário era uma fleuma só.

Mas eis que houve grande falta d'água na arca. A água diluviana, amaldiçoada, era intragável de salobre. Veio o racionamento. E tanto o camelo quanto o dromedário, famosos que eram por passar sem água e ração, muito sofriam com a fama antes de se deitarem na cama. Se recolhiam extenuados e sedentos, noite após noite:

--Mas antes haver se afogado do que passar por essa provação - dizia o camelo. O dromedário ruminava nos dois sentidos: digerindo seu pouco de alfafa, mas também avalizando os disparates do camelo. Volta e meia, pensava na morte da bezerra. Uma bezerra que, à vez, falecera ruminando seu capim. E tratava de se empenhar em coisas menos abstratas, como ajudar a tapar o vazamento no compartimento dos ornitorrincos.

No correr dos dias, a desidratação castigava. E, logo, ambos mal tinham ânimo de subir ao convés para tomar a fresca e se inteirar das novas. A carência de água era tanta que as corcovas começaram a murchar. E pendiam flácidas a cada mínimo passo. Papel de parede descascando. Um desalinho. O resto da bicharada os via com um misto de dó e olhares cavilosos. Nos olhares parecia haver um cartaz semelhante aos desses torcedores de voleibol: “eu já sabia”. Parece que a gabolice sem peias do camelo não lhe rendera muitos amigos.

Certa feita, ele e o dromedário passaram junto ao cavalo, que, sem corcova alguma, trotava (desengonçado, segundo o camelo), satisfeito de beber mais água do que eles. E disse o velho droma:

--É, compadre camelo, o problema de ter duas corcovas - ao invés de nenhuma, como o cavalo; ou de uma só, como este amigo que vos fala -, é vê-las assim murchas, batendo como chicote duplo sobre as costas cansadas.







quarta-feira, 23 de julho de 2008

Noite que se extinguiu sem água quebrada a frieza


Umberto Boccioni, Dynamism of a Soccer Player, 1913.






Ceará 2x2 Corinthians



Não pensando propriamente em futebol, ontem, no abrir da noite, brincava com minha filha caçula. Ela atravessa aquela etapa em que está deixando de ser bebê. Já anda. Mas ainda não articula senão as palavras-chave. Ou seja, mamãe, papai, vovó, au-au, üí-üí, dê e boa.

Üí-üí responde por Vivi, o apelido da babá. Dê é verbo. Mas vem de deixar e não de dar. E boa não é adjetivo, senão o substantivo bola. É pronunciado com “o” aberto.

Outro entusiasmo é a água morna do banho. Se faço duas mini-Cataratas do Iguaçu com jarras plásticas, acha o máximo. E ainda pensa que pode agarrar a água entre as mãos.

É claro que ao dizer isso corro riscos. Entre eles, o de posar como apenas mais um daquela legião de pais melosos, bocós, siderados pelos filhos pequenos. Mas isso não me preocupa. Se você já tem filhos, não preciso dizer mais nada. Se ainda vai ter, aguarde. Quanto mais cético for, mais completamente será fisgado pelo charme deles.

Voltando à carga, comi um sanduíche de bacon. Nada de notável até aqui. Ou corrigindo: o rango foi pra lá de bom. Não foi feito ontem, no entanto. Ou depois do banho da bebê. Nem em casa. Foi feito num treiler de sucos e sandubas, ali em certa pracinha da Barão de Studart e na noite anterior a que vos falo.

Excelente, sim. Mas acho que me afetou. Estou em dúvida. Quer dizer, não entre se estou ou não enfermo. Mas entre a causa do desarranjo: o dito sanduíche noturno ou certo prato de sarrabulho com pimenta degustado no vão do mercado São Sebastião ao meridiano do mesmo dia. Vá lá, quiçá a combinação de ambos. O corolário desses arroubos culinários é que ando passando a água de coco. E então, desci para comprá-la, no boteco.

O boteco é um patrimônio da humanidade do bairro. Se chama Vegas, e fica na esquina da Monsenhor Bruno com Heráclito Graça. O Vegas está lá na esquina há mais de trinta anos. É um porto seguro. “Vai ver se estou lá no Vegas” é como já dizem alguns moradores da rua.

O Vegas é também local nosso de futebol. Torço quase sempre por quem está mais perto de casa. Não posso evitar. È assim. Embora este assim retenha um bocado de assado histórico por tempero. E conheça bem mais matizes do que é prudente expor aqui.

Agora, se joga um time do Nordeste contra um do Sul, torço pelo do Nordeste desde criancinha. Inclusive contra os meus times adotivos no Rio e em São Paulo.

Digo isso apesar de, na hora do pega, ter só um time: o glorioso Ferroviário – que, misteriosamente, lá na Barra famosa, está mais longe de casa do que os outros dois. E, no entanto, mais rente à minha vida. Meu avô paterno, que é responsável por um quarto dela, era almoxarife da Estrada de Ferro de Sobral e adepto, discreto, do glorioso tricolor.

Este avô era um homem reservado. Daquela turma à antiga que dizia cousa por coisa quando já ninguém dava mais grande coisa por cousa. O emprego dessa cousa, aliás, era uma de suas maiores extravagâncias junto com o hábito de ouvir dobrados, o de aspirar rapé, além do fato de ser almoxarife – palavra que os mais novos desconhecem. Em matéria de estilo, gosto de gente discreta. Meio como meu avô na vida ou Rivaldo no futebol. Seco. De palavras poucas. Sem nenhuma exuberância ou vocação para exibir a vida fora dos gramados. Jogando mais no campo que em entrevistas coletivas.

Rivaldo foi, de longe, o principal arquiteto de nossa última conquista em copas. Hoje quase não se fala mais dele. Mas, melhor, ele é daqui de pertinho. Rivaldo é do nosso rival: Pernambuco. È rival, sim, mas vizinho. Uma terra com história incandescente e bela bandeira. História que confina com a nossa, embora com mais fumos de grandeza.

É claro, como rivaldista, acho uma injustiça que as loas tenham pendido todas para Ronaldo. Mas este mundo não é lá dos mais justos. Ronaldo foi um grande artilheiro? Sem dúvida. Mas ao menos tão empenhado como marqueteiro. Rivaldo não. Sempre me pareceu mais interessado em bola, grama, e na arte de cultivar jogadas. Depois as cortinas se fecham. E nada muito se sabe de ou sobre Rivaldo. Melhor assim.

A mim, não me interessa se ele bate na mulher. Se é batido por ela. Se é um escroque. Se masca fumo nos bastidores ou dorme com travestis. Se prefere andar de camelo ou de dromedário. Se pole pedras nos rins ou se as joga na lua. Se assinou contratos em branco ou se gosta de jujubas. Se tudo isso é feito em consenso e não afeta seriamente nem a ele nem aos que estão à volta: problema dele.

Pois bem, mas voltemos a ontem à noite. As cortinas ainda não se haviam fechado, as virtudes não estavam ainda de todo negadas, quando eu seguia para a esquina. Não lembra? Pois lembre, antes que eu divague novamente.

Salvo engano, seguia para conferir se eu estava por lá. Aliás, não propriamente, mas para comprar os tais cocos, cujas águas iriam minorar o mal de minhas tripas.

Numa terça à noite, o Vegas costuma ser tranqüilo. Ontem, clima de copa do mundo. Só que com direito a torcida pelo adversário. Olhei o placar, sem óculos, cerca de um grau de miopia: 2x1, meados de segundo tempo. Ah, então, tá. Sabendo como são os times daqui, estava já certo que seria, no lucro, empate.

Voltei pra casa. Tinha algo a fazer.

Nenhum barulho denunciou a situação. Nenhum grito de gol avulso. Um silêncio de brisa no eucalipto percorria os cômodos. Confesso, desligo do mundo se estou fazendo algo. Um grande evento parecia brotar. Mas quando depois consultei a internet, não deu outra: empate.

Típico das equipes daqui. Negócio delas diante de um grande é não passar do empate. À frente no placar, entram em pânico. Miedo escénico, como dizem os de língua castellana. Mesmo se são mandantes. Meio gol de vantagem, todo mundo vira zaga. Até a mãe do treinador. @#%§+*@! Uma vitória do Ceará é que teria sido uma traição desse imenso mesmo.

É, eu teria gostado de ver o vovô deitar por terra um dos times que menos simpatizo.

Mas, do contrário, a vida é esta. É isto. É isto mesmo. E, antes que eu divague novamente, a noite seguiu mais fria. Sem quaisquer avos de água quebrada frieza.





sexta-feira, 11 de julho de 2008

Pequeno desvio quase antropológico ou de senso-comum


José Carlos Meirelles, 2008


Da tribo desconhecida que não era

Algumas semanas atrás as fotos correram o mundo. Foram destaque nos jornais. Figuraram numa infinidade de capas. Correram mundo pela internet. A respectiva matéria que ilustrava esteve entre as mais lidas no Observer, no El País, numa pá de outros jornais de alcance global. 
Nelas, havia um grupo de nove indígenas, junto a duas cabanas, arcos retesos, mirando e arremessando setas para cima. Para o avião onde estava o fotógrafo. Os indígenas faziam parte de uma tribo isolada, que nunca havia tido qualquer contato com os cara-pálidas, e sobre a qual tudo era desconhecido. 
O assunto mexeu com a imaginação de meio-mundo: selvagens isolados no meio da remota Amazônia. Vivendo livres de impostos, contas, cadastros, controles, cpf’s. Os próprios bons selvagens de Rousseau. 
Mas tão-só alguns dias depois, descobriu-se que não era bem assim. Que já se dispunha de alguma informação sobre a tribo há quase um século. Embora, de fato e momento, eles vivessem isolados. 
Ao menos foi o que afirmou o próprio autor do logro, o antropólogo José Carlos Meirelles. Ele também assegurou que optou por falsear a informação como forma de chamar atenção para a necessidade de se garantir o direito ao isolamento dos povos que ainda não se encontram em contato regular com a civilização.

Duas coisas me chamaram a atenção nesse imbróglio todo. 
Primeiro, claro, a estranha forma de se preservar o direito das referidas tribos de não ser importunadas: divulgando o assunto e publicando as fotos nos principais jornais pelo planeta afora. Como quem diz: ‘vejam, estamos isolados, venham nos desisolar’. Mas ressalvo que nada entendo de políticas indígenas, embora entenda um pouquinho de senso-comum. E talvez um pouco de bom-senso. 
Segundo – e ainda mais aterrador – a seguinte frase de Meirelles: ‘Quando os vi pintados de vermelho, fiquei satisfeito, fiquei feliz, porque o tingimento de vermelho significa que eles estão prontos para a guerra, o que, para mim, quer dizer que eles estão felizes e saudáveis, defendendo seu território’. 
Quer dizer, já desde uma civilização arcana se pode relacionar a guerra como um fator inerente à condição humana. Ou indissociável dela. Eles reagiram como guerreiros, sinal de que estavam felizes, deduz o estudioso. 
Não sou antropólogo. Não sei o que significa índios tingidos de vermelho, ocre ou lilás. Não sou psicólogo, sacerdote ou xamã. Entendo muito pouco da condição humana. Sequer sei se ela existe. O que me chamou atenção, de resto, não foi a frase por si, sob a circunstância. Mas a naturalidade com que o antropólogo vinculou os sinais de bem-estar da tribo com sua capacidade de fazer a guerra. 
Espero apenas que ele esteja errado. Pois o que há de terrível, aqui, é concluir que nós humanos somos assim, precisados de guerra para nos sentirmos bem e felizes. Para levar a vida.

Ainda que a história pareça dar razão ao antropólogo.

Nota Posterior - em nota divulgada no El País (12/07/08) e assinada por Laura de Luis se reivindica que em nenhum momento Meirelles afirmou que a tribo era "desconhecida". E se atribui o equívoco ao jornal britânico The Observer


quinta-feira, 10 de julho de 2008

Uma crônica escrita hoje

Hans Bellmer, 1937

Odalécio Sepúlveda


Apesar do nome, Odalécio Sepúlveda Calógeras era um ser humano normal. 

Soltava pipas. Jogava bola e bila. Comia mariolas. Dançava São João, fartos bigodes e costeletas pintados. Nadava no rio; depois, na piscina. Brincava de roda. Andava de bicicleta. Soltava peões. E ouvia muitas histórias.

Era moderadamente querido pelos amigos. Achavam-no um pouco avoado. Mas nada que comprometesse.

Na escola, era mais para bom. Estava longe de ser cdf. Mas passava de ano. Às vezes, até fazia bonito. 

Odalécio tinha uma queda por coisas que giram. Chegava a não completar frases, via o passarinho verde quando se deparava com um jipe passando na rua, rodas resvalando sobre o calçamento áspero: rumor de volume e borracha. Ou, então, uma colher-de-pau mexendo a massa do bolo:

-Acorda, Odalécio!

De pequeno, parava diante do prato do toca-discos. E não por causa de Vanuza cantando sobre a chegada do carteiro. Quando a vizinha brincava de bambolê, ela ganhava o aplauso do mundo. Mas sobretudo de Odalécio. 

Ainda bebê, seu troço preferido: um chocalhinho de três esferas. A mãe já sabia. Se ele desandava a chorar, bastava vibrar o chocalhinho. Se aquietava. Mirava o objeto, cismado, reverente:

-Cadê o nenêm?

Quando o pai saía para a Sucam em sua bicicleta sem marchas, Odalécio, imóvel na soleira, via-o atravessar o quarteirão que não tinha mais fim, e perder-se atrás da esquina:

-É um apego com esse pai! 

Tinha os sonhos que todo mundo tem: jogador de futebol, presidente do Brasil, surfista, cantor de iê-iê-iê. (Os sonhos que todo mundo tem sofrem apenas pequenos retoques de tempos em tempos: astro de futebol, presidente da União Européia, Rafa Nadal, DJ). E adorava marchar no Sete de Setembro. Pular na matinê de carnaval. Torcer pelo Ceará Sporting.

Outro sonho de Odalécio era ser inventor. 

Porém este sonho ele não contava pra ninguém, porque lhe era muito tentador. Ah, o Professor Pardal! Que delícia seria estagiar em sua oficina, e construir todas as máquinas que a imaginação ditava. Máquinas de voar, navegar, namorar.

Um dia, Odalécio teve uma idéia. A de uma máquina que valesse por mil. Por todas.

Passou a semana polindo o conceito. Apelidou-a de correcionômetro. Já podia vê-la, chassi resplandecente, repleta de alavancas, bilotos, luzes piscantes e bizarras engrenagens.

Sua serventia seria uma e uma só: corrigir o mundo. 

Por exemplo, fazer a colher de pau mover a massa do bolo sem as mãos da mãe – e, ainda assim, continuar sendo colher de pau. A bicicleta seguir em marcha sem as pedaladas do pai – e, a seu modo, não ser uma moto. 

Também coisas mais simples ela poderia fazer. Dar dinheiro aos pobres. Nutrir os que tem fome. Remediar os irremediados. Extinguir a matemática. Criar cinemas sem ingressos. Reflorestar a Amazônia. Desradiotivizar Hisohima. Tirar a roupa da vizinha sem ela perceber. E, ao cabo de tudo, enforcar o Professor Pardal depois de uma semana de torturas crudelíssimas. 

É, Odalécio era normal. 


quarta-feira, 9 de julho de 2008

Mão cega, ouvido mudo, boca inodora, nariz insípido

Cedric Price, 1966


Quando se pensa no futuro, ele já bate em sua porta


As novas canetas estão aí. Há câmeras por toda parte. Outro dia, indo de ônibus para o centro da cidade, reparei num anúncio que informava aos passageiros da presença de uma câmera no veículo. 
Na década de 70, isso seria inconcebível. A câmera era um elemento bem raro. Caro. E por que pôr uma câmera num ônibus àquelas alturas?
A câmera é a nova caneta. Nunca antes houve tanta possibilidade de registros. Também de controle. Pode-se ter uma câmera de vídeo na ponta de um minúsculo telefone móvel. Ou no seu quarto, em cima do computador. Hoje raras são as câmeras fotográficas que também não fazem vídeos. 
Dentro em breve o mundo vai ficar mais rude para quem não souber gravar imagens, editá-las, distribuí-las. O olho olha para o olho. Qual deles? Pergunta capciosa
Estamos num começo de século em que o olho vai se dilatar imensamente. E não por razões de cannabis. Por razões de comunicação, essa nossa obsessão. 
Mas, se antes comunicação era sinônimo de palavra, hoje nos encontramos no ponto em que a palavra vai deixar de ser a cereja no bolo para ceder, de vez, a vez à imagem. 
É claro que isso afetará tudo. Da arte de chutar tampinhas aos códigos jurídicos. Os códigos deixarão de ser escritos. Haverá teletribunais. Softwares de consciências. Sentenças eletrônicas. Penitenciárias virtuais. E, de resto, as tampinhas já estão em vias de extinção diante de um sem número de novas embalagens mais ecologicamente corretas. Qualquer dia desses, inventarão a embalagem virtual. Não sei como. Mas é justamente de onde menos se espera que brotam as surpresas que delineiam um futuro. 
Por que deveríamos lamentar esses processos em si, se a humanidade sempre encontra um jeito de fissurar a norma, de achar graça? Graça, aqui, no sentido do wit. Da leveza e integridade do pensamento e da intuição. Quer dizer, cavar beleza nisso em que mentes apocalípticas entrevêem apenas derrotas – do humanismo, do paradigma Ocidental, da Razão, da Filosofia – de todas essas grandes palavras que nos tornam tão infelizes. 
Não é de hoje que treinamos mais o olhar do que a mão, o ouvido, a fala, o olfato. É certo que esses outros sentidos, postos em desuso, vão se atrofiar e ser substituídos por sentidos que nem suspeitamos. Quer dizer, tudo que não depende da imagem encontra-se em baixa. Mas isso não chega a ser uma catástrofe. Apenas o começo de um admirável mundo novo. E nele, quem não educar o olhar para as astúcias da imagem, será analfabeto.
Uns poucos anos atrás, só produzia conhecimento quem tinha um contato ativo com as letras: escrevendo, depois de ler ou enquanto leitor. Da mesma forma, para o mundo que se inaugura, apenas os capazes de produzir imagem serão também capazes de lê-las, se esquivando, assim, de um futuro “analfabetismo”. 
O começo disso vem quando se fala em exclusão digital. Ou seja, quem não sabe trazer para perto e manipular as imagens da internet, já está mal na foto. 
Foi isso, então, o que aconteceu na segunda metade do séc. XX. 
O homem não foi mais à Lua. Os carros não voam. Não são especialmente mais velozes. São quase os mesmos. As casas tão-só diminuíram de tamanho, se empilharam mais ou ora buscam novas matrizes energéticas. São quase as mesmas. Mas a mesma tecnologia que possibilitou às câmeras estar em toda parte, também entrou em casas e carros com os gadgets que, de fato, fazem a diferença e garantem o presente como o futuro do passado, em termos de evolução tecnológica. 
O problema é que só uns poucos anos atrás pensávamos o futuro como um desdobramento do mundo mecânico. Não do mundo digital. E será assim. No futuro surgirão coisas do arco da velha. Coisas que não se prevê, que não se espera. Como a internet ou o avanço da tecnologia digital não era esperado ou os novos brinquedinhos que vieram à reboque. 
Quase todos esses novos gadgets apelam para o olho. Olhe em volta a sua rua. Á exceção da verticalização dos edifícios e do aumento do tráfego, a rua até que não se modificou tanto. Não há cabines de teletransportagem. Ou cones do silêncio para se conversar na intimidade. Mas é certo que os telefones públicos desaparecerão. Assim como as caixas de coleta dos correios estão quase extintas. 
Situações-chave na trama de filmes de quinze anos atrás parecem trivialíssimas hoje, porque poderiam ser sanadas com uns poucos toques num objeto tão portátil quanto um telefone de nossos dias. E até o telefone contemporâneo está repleto de imagens. Em virtualidade: bilhões delas. Veja bem, um telefone, anteriormente um aparelho para se falar e ouvir. 
E o que segue diferente pelas ruas é a incomensurável possibilidade de registro e a proliferação da imagem sobre a superfície. Hoje você pode levar consigo uma pequena cinemateca num objeto menor do que uma caixa de fósforos. 
Ou ainda melhor, pode não levar, levando. Podendo acessar de um local remoto. Eis o paradoxo do que chamamos virtual. Ou seja, algo que está presente não estando.
Einstein costumava dizer: “eu não penso no futuro, ele chega rápido demais”. Se pudéssemos voltar atrás e informar da possibilidade de um mundo virtual a alguém da década de 70, haveria apenas descrença. Por outro lado, naquele tempo, como antes no Metropolis de Lang, se sonhava com carros voadores e com colônias na Lua. E mesmo quando assistimos o 2001 de Kubrick ou um episódio dos Jetsons não se vê ninguém fazendo uso de um aparelho que, para nós, é dos mais banais: o telefone celular. 


terça-feira, 8 de julho de 2008

Fios de Ariadne contra as Dalilas do tempo

Léopold Survage, Study for the Film, 1913

Antes que eles se mandem para Não-Me-Toque
"Nenhum peixe que se preze gostaria de ser embrulhado num de nossos jornais".
[Mark Royko]   
                                                                                                                                       
A história se torna mais volumosa quando se aproxima dos tempos recentes. Fazer jornalismo é, de certa forma, contar histórias. Mas é preciso saber filtrá-las. E esse filtro passa pela perspicácia de cada um. O dom de escolher o que vai contado. 
Há uma cidade gaúcha chamada Não-Me-Toque. Falo dela, porque alguns assuntos, quando tocados com certa falta de manejo em nossa resenha cultural, nas páginas de nossos briosos diários, parecem dizer aos seus autores que nasceram por lá. Lá por Não-Me-Toque. 
Quem não toca, toca-se. Ou seja, só tocar o mesmo disco não vale. Masturbação. É gostoso tocar as pessoas do afeto. Ou então, alguns instrumentos. Tocar a tela com o pincel. Saber manejar um teclado – de computador ou de piano. Roçar os dedos sobre ébano e marfim. Manejar para melodia. Manejar como uma música que vem do pensamento quase sem passar por ele.  Ou aquelas palavras que se vão arrumando à revelia de quem as digita.

Uma canção (de Etelvino Abreu), indagava de cara, desafiadoramente, no início da década de 90: “Cê toca o quê?” Acho que quem vive de escrever - seja jornalista, historiador, letrista, redator publicitário, tradutor, estudante, roteirista, anotador de atas, ghost-writer, professor, palavra-cruzadista profissional, missivista, eterno doutorando, pintor de paredes ou crítico literário - deve se perguntar, ao menos duas horas a cada segundo: será que meu assunto me diz que é de Não-Me-Toque? Se disser, melhor deixar quieto. Deixar o assunto voltar pros pampas sozinho até segundo flerte. E, na seqüência, partir para outras praias. Outros sertões. Quem sabe, para o Paraguai. Flanar por aí, sem muita pretensão. Ao menos até o dia em que você perceba, de volta à prosa, que já mora no assunto, na filosofia. Será que a isso se chama critério? 

Esse parece ser o caso de Dalwton Moura, que escreve regularmente para o Caderno 3, do Diário do Nordeste. O cara tem bom faro para assuntos. Quer dizer, Dalwton é daqueles que parecem desconfiar que só triscar no assunto não vale. É necessário descobri-lo; se apossar dele, no bom sentido.
Triscar é o caminho mais fácil, verdade. Mas a satisfação tirada, como o arroubo do ato, é perfeitamente vicária. E cedo se percebe que viver só disso não é lá muito saudável. Assim também, repetir, à papagaio-louro-do-bico-dourado, as pautas e resenhas das forças do Eixo Rio-São Paulo é triste sina para um jornalista. Para um comentador. E o torna mais provinciano. Confina com aquelas satisfações vicárias e emergenciais, que a maior parte de nós passa a manejar desde a tenra adolescência. E, assim, essa copiosa algaravia manchando os segundos cadernos parece não ter fim. Ela está a serviço de vender, não de fazer pensar. A serviço da gelatina, não do tutano. A serviço de fazer resenhas como se faz lasanhas pré-cozidas no microondasO cosmopolitismo só é real quando também engancha na circunstância local.  

Em geral, tenho sido muito ranzinza com quem escreve em jornal aqui pelo Afetivagem, mas devo reconhecer os méritos a quem os tem. E, assim, dizer que leio com prazer a coluna do Jocélio Leal n'O Povo, por exemplo. Ou volta meia, me divirto com a crônica do Airton Monte. Que sinto falta dos textos do Lira Neto e da Ethel de Paula, cujos compromissos profissionais levaram-nos para outras páginas, menos diárias. Que entre a turma mais nova, temos boas promessas em ambos os jornais (Amanda Queirós, Júlia Lopes...). Era já para eu ter feito essas e outras ressalvas, numa esfera em que seguimos particularmente carentes de pautas que contam, pedras que rolam, bichos que falam. Gente que segue atrás do que se encontra longe de estar na vitrine

Quer dizer, falar de profissionais que não se deixam levar pela limitadora régua riscada nas redações dos jornais ao sul de Minas, ao norte do Paraná. Ou então, dos assuntos de momento: eleições, instalações multimídia, campeonatos, lançamentos, escândalos políticos, efemérides, carestia, assassinatos em favelas, mostras de cinema, novos impostos. Gente que se pauta por autonomia de pensamento ao transcender esses assuntos. E, mais, sem aquele travo amargo, repleto de queixumes dilacerados, de certos subliteratos que devem ser fãs mesmo é de si próprios. E tome norma e nenhum senso de humor.  Os editoriais tanto de O Povo quanto do Diário são, aliás, de um pobreza de mavé-de-si. Há muito que passam completamente batidos. Ninguém os lê. Eu certamente não. E perceber que o Vida & Arte, que já foi um dos melhores cadernos de variedades do país, anda mal das pernas faz pelo menos um lustro não é tarefa para nenhum Mandrake ou detector de verdades. 

Sem embargo, surge como estimulante alguma voz menos tutelada pelos estigmas da vez. O mapeamento musical que um Dalwton Moura empreende é um exemplo disso. Dessa recusa à preguiça. E entre outras, no caso dele, pela lembrança de nomes tais como Petrúcio Maia, Brandão, Etelvino Abreu e Tazo Costa. Ou seja, de um de nossos maiores compositores, mas que anda um tanto à sombra; do pouco conhecido letrista do Pessoal do Ceará; do talentosíssimo e irrequieto vocalista e compositor, que morreu jovem e nunca chegou a gravar; e do menino prodígio da Cidade 2000, cuja carreira terminou antes de alçar vôo.  Nomes que se encontram muito distantes de vir em releases de lançamentos. E, no entanto, pedem conversa. E tiveram a sorte, os quatro, de haver sido memorados pela criteriosa atenção de um jornalista que tem a intuição histórica da área que aborda. A eleição de prioridades é um dado elementar quando se pensa em jornalismo. Naturalmente, há pautas marcadas, inescapáveis, que se tem de fazer por dever de ofício e sede de sangue dos leitores. Ossos do ofício. Mas há também uma imensa liberdade de escolha só muito parcialmente aproveitada.  

Bem, tudo devidamente filigranado, na edição de hoje, Moura nos surge com mais bons panos para as mangas: matéria e entrevista com Tiago Araripe, compositor vinculado, no início dos 90, à galera da Lira Paulistana. Araripe, que é do Crato, teve seu vinil de 26 anos atrás, Cabelos de Sansão, recentemente passado para CD. Pautas assim dão conta de uma sede muito mais saudável que a média. E da necessidade de tocar nos assuntos antes que eles se mandem para Não-Me-Toque.

sábado, 5 de julho de 2008

Belas toantes sem fazer força: Lorca

Luis Buñuel e Salvador Dalí, Un Chien Andalou, 1928

La Balada del Agua del Mar

A Emilio Prados
(cazador de nubes) 

El mar
sonríe a lo lejos.
Dientes de espuma,
labios de cielo. 

¿Qué vendes, oh joven turbia
con los senos al aire? 

Vendo, señor, el agua
de los mares. 

¿Qué llevas, oh negro joven,
mezclado con tu sangre? 

Llevo, señor, el agua
de los mares. 

Esas lágrimas salobres
¿de dónde vienen, madre? 

Lloro, señor, el agua
de los mares.

Corazón, y esta amargura
seria, ¿de dónde nace? 

¡Amarga mucho el agua
de los mares! 

El mar
sonríe a lo lejos.
Dientes de espuma,
labios de cielo. 

Garcia Lorca


A Balada da Água do Mar

A Emilio Prados
(caçador de nuvens)

O mar 
sorri ao largo.
Dentes de espuma,
lábios de arco. 

Que vendes, oh turva jovem, 
com os seios no ar?

Vendo, senhor, a água
do mar. 

Que levas, oh jovem negro,
misturado ao teu sangue?

Levo, senhor, a água
dos mares. 

Essas lágrimas salobres
de onde vêm, mãe?

Choro, senhor, a água
dos mares.

Coração, e essa amargura
séria, onde nasce?

Amarga muito a água
dos mares.

O mar 
sorri, ao largo.
Dentes de espuma,
lábios de arco.



Nota – seria uma farta injustiça se os espanhóis também estivessem entre os maiores no futebol. Afinal, se fosse necessário haver um só poeta para todo o séc. XX, todos os outros poetas abdicariam em favor de Frederico Garcia Lorca. Em Lorca, os quatro elementos passam para a palavra. Não de um modo cerebral e construído - embora admiravelmente  - como em João Cabral ou Francis Ponge. Mas de um modo misterioso, perfeito, terrível. A tradução mais óbvia do último verso do refrão seria, claro, "lábios de céu". Mas se perderia a rima. Ainda no refrão da balada, que abre e fecha a peça, a esplêndida indiferença do mar diante das misérias humanas.

Tremulamente rente ao sonho: Dylan Thomas


Georges Rouault, 1938


Clown in the Moon
  

My tears are like the quiet drift
Of petals from some magic rose;
And all my grief flows from the rift
Of unremembered skies and snows.

I think, that if I touched the earth,
It would crumble;
It is so sad and beautiful,
So tremulously like a dream. 

Dylan Thomas


Clown na Lua

Minhas lágrimas, como o roçar prisma
Das pétalas de alguma rosa encantada;
E todo meu pesar flui do cisma
De irresgatáveis céus e geadas

Acho que se eu tocasse a terra,
Ela se desmancharia;
De tão triste e bela,
Tão tremulamente rente ao sonho. 

Internacionalizando a Amazônia, desconstruindo a aquarela

Felice Beato, 1860

Afeganistão, meu Afeganistão afegão

Hoje vi na CNN comentários de um fotógrafo. Uma espécie de entrevista. Eram exibidas fotos feitas por ele no Afeganistão. Fotos em preto e branco. Fortemente contrastadas. Impecáveis, tecnicamente falando.
Em uma delas, um círculo de pessoas em torno de um imã extático. Em outra, um camponês controlando um camelo - ou seria um dromedário - sobrecarregado de forragem. Numa terceira, dois cavaleiros por uma rua adusta, ladeada por casas de pedra. 
A atmosfera das fotos parecia com cenas de Indiana Jones. Todas as imagens me repassaram uma impressão semelhante à da leitura dos livros de Karl May: a de europeus espiando os recantos exóticos do mundo. A de ocidentais revolvendo o Curdistão bravio. Um exotismo que só deveria existir na ficção de Rudyard Kipling ou nos maliciosos clichês invertidos por Jorge Luis Borges.
Até que ponto é a diferença um elemento estimulante? 
Quando deliberadamente ressaltada, a diferença é apenas uma impostura. Como aquelas fotos, de certa forma, são uma impostura. O olho que as tirou escolheu enquadrar tão-só o que lhe era mais conveniente. No sentido de saciar nossa compulsão pelo pitoresco. De reforçar alguns clichês
Em larga medida, esse apego à superficialidade é o que ocorre em nossa academia. Não a dedicação ao pensamento. Mas o entusiasmo fácil, o deslumbre diante de um “referencial teórico” novinho da silva. Referencial que reluz tanto quanto o exotismo das paisagens afegãs aos nossos olhos órfãos de sinceridade. Olhos de quem precisa – precisa muito – ver sempre as paisagens alheias como pitorescas. Não como também nossas, no melhor sentido. Não como um mundo histórico, complexo, verdadeiramente globalizado. Mas apenas como um naco pitoresco do globo. 
Essa necessidade de sancionar o último viés teórico da estranja faz muito sucesso também entre jornalistas. Em especial, entre os da Folha de São Paulo. Um colunista da edição online da Folha, recentemente, em visível cartada auto-promocional, defendeu a internacionalização da Amazônia
É, em vez de cantar, “Brasil, meu Brasil brasileiro”; esforçamo-nos para dizer ou dizemos “Afeganistão, meu Afeganistão afegão”. E seguimos comprando gato por lebre, etc. O que está acontecendo no Afeganistão, no Iraque senão uma “internacionalização” unilateral decidida pelos Estados Unidos e apoiada, a contragosto, por alguns de seus aliados?
Um amigo me confidenciou que, na Inglaterra, certa feita, chegou a ir a uma festa em casa de uma família. A dona da casa, feminista empedernida e bastante zelosa das causas globais, tinha um diploma pendurado em sua sala-de-estar. O diploma, no qual se via as efígies de duas jandaias, dava conta de que ela protegia tantos acres da floresta, na Amazônia brasileira, ao ter comprado um bônus de uma determinada ong. Era um belo diploma, segundo ele, e as duas jandaiazinhas lhe despertaram uma enorme saudade de casa.
Tão logo soube que havia alguém do Brasil  - e, ainda por cima, do sexo masculino - na casa, a ilustre dama de tudo fez para arrancar de meu amigo um mea-culpa pela situação da Amazônia. Por coincidência, poucos dias antes, esse tal amigo havia lido um artigo que dava conta de que, na Inglaterra, menos de 2% da cobertura vegetal original havia sido preservada. Quando fez menção a essa cifra, acabaram-se não só a cobrança mas até mesmo o assunto, que foi trocado por outros mais amenos: futebol, os anos 60, a pintura de Francis Bacon.
São esses preservacionistas - alguns deles vivendo nos cafundós da Inglaterra - com as bênçãos de alguns jornalistas da Folha, que desejam “internacionalizar” a Amazônia. Mesmo que o histórico deles não seja lá esses balaios.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Resenha não para mozarlescos: uma biografia só para Jayme Ovalle

Charles B. Kaufmann, Bird Control Strips, 1949



Vai, azulão, azulão, companheiro


O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle, por Humberto Werneck. Cosac & Naify. São Paulo, 2008, 400 ps.

Certamente quem lê poesia brasileira alguma vez na vida ouviu falar de Jayme Ovalle. Sempre indiretamente. Os mais atentos talvez hajam, quem sabe, escutado “Azulão” (“Vai, azulão, azulão/ companheiro, vai/ Vai ver minha ingrata [...]”), uma de suas canções com letra de Manuel Bandeira. Canção, aqui, no sentido do Lied. Ou seja, daquele gênero que se encontra a meio-termo entre o erudito e o popular e que foi consagrado por Schubert e Schumann. Aquele gênero em que a letra da canção tem fumos literários. 
Com o escritor argentino Macedonio Fernández, Jayme Ovalle divide, além do nome exótico, o fato de haver sido mais famoso como personagem do que como autor. Mais como arte viva, em carne e osso, do que como artista. Mas, sem dúvida, nesse aspecto “personagem”, Ovalle sobrepuja em muito Fernández, que ainda chegou a escrever uma obra copiosíssima se comparada ao modesto output do compositor brasileiro. 
E, no entanto, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt, Fernando Sabino e Otto Lara Resende, entre muitos outros, referem-se a Ovalle com devoção, entusiasmo, prazer e aquela admiração desconfiada que nos induz à insegurança. A insegurança de estar diante de um gênio que simultaneamente é... um fiasco. Ovalle, que assomava brilhante na conversa, era incapaz de pôr essa conversa em prosa ou verso. E mesmo sua produção musical é bem escassa. Mario de Andrade dizia em carta a Manuel Bandeira: “a incapacidade de criação dele é fantástica”. Voltaremos a esta variante mais adiante.
Antes, é preciso dizer que Ovalle, esse músico (e poeta bissextíssimo), boêmio de cepa, era uma das mais espirituosas presenças nas mesas do velho, gentil Rio de Janeiro da época de Noel Rosa, Madame Satã e Manuel Bandeira. 
Rosa e Bandeira foram devidamente biografados. Fizeram-se longas de ficção sobre o sambista de Vila Isabel e sobre o marrento travesti da Lapa. Um precioso curta sobre o autor de Estrela da Vida Inteira (O Poeta do Castelo) foi rodado por ninguém menos que Joaquim Pedro de Andrade, que era afilhado do poeta. Mas quase nada tínhamos de Ovalle. 
Quer dizer, quase nada mais sistemático. Quase nada para além, claro, das várias, avulsas referências feitas a ele pela fina flor dos modernistas. Afinal, Ovalle é um tipo humano assim: avulso. E justo por passar longe de qualquer possibilidade de classificação. E é dessa avulsividade em que Ovalle veio, lenta e discretamente, debatendo-se, ao longo de décadas, como personagem - nos versos, na prosa e na conversa epistolar dos escritores que amamos - que pesca-se essa bela biografia escrita por Humberto Werneck. 
Ovalle era um paraense que enriodejaneirou-se cedo. Mas talvez não tão cedo quanto se insinua, pois, tendo nascido em 1894, chegou ao Rio apenas em 1911. E se cedo ganhou fama de excêntrico, sua excentricidade, no entanto, não se estendia à Alfândega, da qual foi funcionário exemplar. Seguia mais pelas mesas dos botecos da Lapa. Ou, por mesas antípodas, na Princesinha do Mar. Ovalle freqüentou com igual fervor os lupanares do Mangue e os bailes do Copacabana Palace. Por uns e por outros, construiu uma reputação inestimável de conversador ultra-espirituoso, inigualável bon-vivant. E teve namoradas que iam de prostitutas a socialites.
Entre as suas maiores “proezas” amorosas consta a de se haver apaixonado perdidamente por uma pomba que freqüentava o batente de sua janela. Tinha acessos de ciúme. Como se não bastasse seu coração também bateu mais acelerado por um manequim da Rua Gonçalves Dias. 
De um catolicismo bastante idiossincrático, Ovalle costumava entoar preces nada ortodoxas: “agradeço-te por mais uma noite de minha vida, bebendo, moderadamente, com soda e gelo, o meu uísque". Dado a diminutivos, seria o tipo ideal do brasileiro que a todos tutua e segue, impávido, adiante, incapaz de fazer inimigos: o próprio homem cordial em estado bruto. Sérgio Buarque, que o conheceu e foi seu amigo, deve tê-lo enxergado um tanto assim. Pelo poder de agregar e bem conviver, Ovalle foi uma espécie de Vinícius de Moraes. Mas sem a obra.
Aliás, Vinícius o chamava de “o místico”. E lhe escreveu uma elegia, “A Última Viagem de Jayme Ovalle”, em que descreve a Morte – naturalmente uma das idéias fixas do irreverente Ovalle – divertindo-se com a verve do boêmio paraense (“Foram por montes e por vales/ E tanto a Morte se aprazia/ Que fosse o mundo só de Ovalles/ E nunca mais ninguém morria [...]"). Antes de escrever o poema, no entanto, Vinícius editou uma rara entrevista com o autor de "Azulão".  Nela, Ovalle, entre outras, disserta sobre a criação e a possibilidade de vida em outros planetas: "os outros planetas não são habitados, só a Terra. Todo o resto é luxo, prodigalidade de Deus. É como o carpinteiro que para fazer um móvel deixa se espalhar uma quantidade de pó de serragem. No caso, pó luminoso de astros e estrelas. Deus é um esbanjado. Deus fez muito rascunho. O hipopótamo, por exemplo, é um rascunho de Deus".
Grande era sua capacidade como phrase-maker. Bandeira, que lhe escreveu o “Poema só para Jayme Ovalle”, sentia-se tão à vontade com o amigo, que chegou a lhe confidenciar em carta, a propósito de novas amantes: “tenho fodido muito, que felicidade!”. Mas, por trás de tanto chiste e risadas há alguma chaga. E essa chaga - momento de contemplação quase extática diante de tanto prosaísmo e irreverência - é o que confere aos versos de nossos modernistas – aos de Bandeira, em sua elegante simplicidade - um escape ao barroco mais deslavado de que se compõe nossa cultura. 
O mote do poema de Bandeira vem de Ovalle haver ido às lágrimas diante da solidão do poeta de “Canção do Beco” ao entrevê-lo a preparar seu próprio café, de manhã cedo, após uma noitada:  o poeta franzino, de meia-idade, sozinho, preparando o seu café (“Quando hoje acordei ainda fazia escuro/[...]/Bebi o café que eu mesmo preparei/ Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando[...]”). 
Não só Bandeira ou Vinícius compuseram poemas a partir de “sugestões” de Ovalle ou da espirituosidade de sua presença. Este também é o caso de Dante Milano. Mas as astúcias de Ovalle não se restringiam a inspirar poemas e compor raras pérolas ao piano, ele também foi um fino ironista. Ovalle esboçou um propalado modelo filosófico a que deu o nome de Nova Gnomonia. O modelo causou espécie pelo reductio ad absurdum e delicioso nonsense da coisa toda. A Nova Gnomonia classificava os homens em cinco categorias: exército do Pará, dantas, kernianos, morzalescos e onéssimos. As categorias não eram excludentes. Mas passar de uma para outra implicava traumas. 
O exército do Pará é composto por “homenzinhos terríveis que vem do Norte para vencer” no Rio, sanguíneos e ambiciosos; os dantas são “homens de ânimo puro, nobres e desprendidos, indiferentes ao sucesso na vida”; os kernianos, “indivíduos de bom coração [...] mas que se deixam arrastar por um impulso irresistível de cólera”. Os mozarlescos revelam-se pomposos e grandiloqüentes, contudo quase nada dizem ou fazem de facto. Os onéssimos têm um caráter blasée, pouco entusiasmo sentem pelas coisas, vivem mudando de interesse, apesar de reagir com senso de dever diante de situações práticas.  
O personagem demandava a biografia. A figura. A joie de vivre que semelha ser uma obra de arte na forma de uma vida. E dá o que pensar essa biografia assinada por Werneck. Pela pesquisa, pelo assunto, pela boa forma de sua escritura. Por tudo isso mais até do que por algumas de suas conclusões. 
Como, por exemplo, a já citada incapacidade de Ovalle em traduzir sua imaginação delirante na forma de peças musicais ou de palavra escrita. Aqui, é preciso lembrar que não existe arte sem forma. E desde que Ovalle era incapaz de criar uma forma, ele não era, a rigor, um artista. Ele era isso, sim - e quando muito - uma espécie de “musa”, se se quiser. Arte é tradução, deslocamento. Quem é incapaz de transpor ou deslocar, é incapaz de criar. E, lembre-se, este não era inteiramente o caso de Ovalle.  Ele era capaz de compor arte. Só que em doses homeopáticas. E bote homeopáticas nisso se sua produção escassa é comparada à proficuidade de seus camaradas, que, de resto, eram os mais ressonantes escritores, músicos e artistas de seu tempo. 
De outra forma, na biografia, Werneck atribui esse bloqueio criativo de Ovalle à sua formação deficiente. E é possível, de fato, que sua formação tenha sido deficiente. Mas é preciso lembrar que alguns de nossos mais finos escritores dessa época, caso de Graciliano Ramos, eram autodidatas, como Ovalle, e sequer passaram por uma faculdade. No caso de Graciliano, isso ainda se torna mais pungente pelo fato de ele só haver se mudado para o Rio compulsoriamente, depois de adulto e com um estilo já definido. É preciso parar, de uma vez por todas, de superestimar o potencial propedêutico da ambiência cultural Rio-Sampa. Isto, no entanto, não é uma crítica que se estenda propriamente a Werneck que, em livro passado, bem soube falar de certa geração de escritores mineiros que vieram sancionar no Rio suas respectivas carreiras. 
Á sua feição, o que Ovalle deixou, apesar de pequeno em quantidade, não deixa de ser instigante. Nem tanto seus poemas quanto sua música, que é uma coleção de gemas raras: um poema sinfônico ("Pedro Álvares Cabral") e um belo ciclo de canções, onde se destacam "Modinha" e "Berimbau", entre outras também letradas por Bandeira. Essas obras, por se basearem em temas populares ou rituais, indicaram uma senda a aprofundar a um de seus caros amigos: Heitor Villa-Lobos. 
Teses à parte, O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle, ricamente ilustrado, é um desses bons livros que passam bem e bem ao largo do universo acadêmico. Livros inteligentes, cheios de transes históricos e bem-temperada delicadeza diante de nossos escritores modernos. Livros que encontram seu patrono em Heródoto, o colecionador de histórias afluentes, refratário à simplória pobreza das explicações e nexos. Em especial se excessivamente tutelados por um sistema de idéias. E isso, num momento em que nossos escritores contemporâneos, ao invés de também interessarem-se por figuras do quilate e da estranheza de um Ovalle – profundamente entranhadas em nossa história – intoxicam-se de Blanchots, Derridas e Deleuzes em traduções duvidosas e só querem saber de debater “éticas levinasianas”, “dobras” e “indecibilidades” em pós-graduações insossas. 
- Uns chato-boys! – diria Oswald.
- Uns mozarlescos! – diria Ovalle. 

Diriam. Diríamos. Tarde e manhã. Um dia. Azulão, azulão, companheiro...