quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Lapsus Linguae

Sharon Core, Candy Counter 1969, 2004

Dois Peitinhos na Lagoa

Deve haver uma forma de gostar que não passa por ela. Por eles. Os predicados dela. Ou, ainda melhor, que passa ao largo dela. E deles. E nessa toada, no rumo dessa digressão, é possível, então, largar-se pelo mundo com a sensação de que algo se está inaugurando tão-só pela presença da gente. Digamos, um ferryboat, um açude, uma lanchonete, um píer, um passeio público: misto de parque e praça cheio de árvores, de sombra. Toda uma estatuária clássica ao longo e, num belveder debruçado sobre o mar, duas enigmáticas esfinges entrefitando-se. Uma praça-parque. O conceito é este. E nela, há perto do bambuzal um banco. Desses bancos ingleses, de madeira fornida. E, com as pernas trançadas, sentada no banco, uma jovem mulher. Ao lado dela, uma bolsa entreaberta. Ao lado da bolsa, um livro interrompido. Ela enverga jeans, tênis, uma blusa laranja, traz o cabelo preso e, pelo safo modo como degusta o sorvete, quase a prescindir da colherinha, é igualmente destra em certa carícia. Ela tem olhos castanhos-claros. As escleróticas tão limpas que parecem dois rebatedores de fundo para fotos neutras sob spots com led, de altíssima anti-refração. Dois patinhos passam na lagoa. As linhas convexas no atlas de anatomia do olhar. Ela tem um magnífico sorriso. E não é difícil chegar à conclusão: ela e a que se devia evitar, Princesa, são uma só e a mesma até o sol raiar e segunda ordem e se calhar e se o caso for e se manhã cantar no colo do galo. Arre, há sempre um sonho traiçoeiro a nos lembrar do que aparentemente já se dava por esquecido.¹

E, logo, é necessário voltar ao começo – como o poeta volta no verso para poder ir mais longe – se o desejo é esquecer. E partir para outra. Mas, da próxima, melhor evitar bancos de praça; árvores; estatuária, esfinges; sombra; livro; sorvete. 

Sopas, assim, para o azar.


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¹Esquecido, aqui, não deve ser lido apenas como particípio passado do verbo esquecer, mas também como um pequeno bolinho – uma madeleine, um muffin – bastante apreciado no interior do Ceará.


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