domingo, 29 de maio de 2011

Tudo é mistério, e se explica

Alfredo Volpi


Miúdo exercício de equilibrismo

Corre o ano de meia oito. Talvez seja meia nove. Difícil precisar o tempo quando só se tem cinco ou seis giros da Terra em torno do Sol. Esse tempo não se presta à impertinência dos inquisidores. Dos relógios. Dos bedeis. Dos compiladores de artigos acadêmicos. E o mundo pegando fogo. Se purifica. Revoluções mais violentas que as da Terra em torno do Sol explodem planeta afora. Vero atesto do que Hegel chama de Geist: o espírito do tempo? Eu não me importo. Passo ao largo delas. E bem. Meu tempo, sem ser ouro nem dinheiro, é outro. Muito mais preciso, não no sentido numerário, mas no outro sentido. No sentido que a maioria, os desavisados, os que sempre chegam depois, porque não foram os últimos, os “espertos”, colhem de “preciso” na fórmula famosa: “navegar é preciso, viver...”. As revoluções que ao meu tempo se dão são pessoais, intransferíveis. Tenho minha própria utopia. Meu ritmo. Jogo bola. Ando de bicicleta. Tomo banho de mar. Conheço o regime das marés. Vejo westerns. Ouço histórias -- as pessoas sabem contar. Rezo antes de dormir. E durmo fácil. Moro em Camocim. Nas férias, viajo de trem para Fortaleza.

O tempo é demarcado com aconchego, precisão. Datas importantes. Liminares. Recomeços. Marcos balizando espirais: Natal, Carnaval, Sete de Setembro, alguns aniversários e, claro, as festas juninas. A capital dos festejos juninos é o dia 24. O São João talvez concentre mais fogueiras, balões, bandeirolas, fogos e potes de aluá que as outras duas datas reunidas. É uma comoção mais renitente em toda cidade. Há rastros de São João por toda parte. Não é algo para calendários turísticos – à época, quem pensa nisso – mas uma estranha vibração que vem de dentro, que está entranhada nas pessoas como as secreções ou sentimentos. Então há essa epidemia, essa epicidade do São João. Sua epifania. Suas luzes profusas. Embora os devotos de Santo Antônio sejam mais inflamados. Como torcedores de times pequenos. Meu avô paterno é um deles. Assim, o dia 13 tem endereço certo. E um belo fogo amarelo e azul brule, ano após ano, com renovada intensidade, em frente ao alpendre da casa de meu avô. E os fogos que se queimam em torno daquele fogo são mais fantásticos que qualquer software. Ele é o meu “de todos os fogo o fogo”. E segue para o sul numa auto-estrada sem fim, a sonhar com o norte. Com o norte que nós só temos. Até o ponto futuro em que a ninguém seja dado envergonhar-se por nascer nessa "terra crescida, plantada/ de muita recordação".

Mas, em 1968, há um motivo especial para desfrutar o São João. E até mesmo preferi-lo ao Santo Antônio. Justo eu, que venho de uma linhagem de "antoninos". Eu, que vejo tias e tias, das enormes famílias da era Vargas, desfiarem simpatias no dia do santo das núpcias. Eu, que tinha cinco anos e estava assoletrando o mundo. Esse motivo tem olhos densos, castanho-claros, belo nariz, cabelos castanho-escuros, presos em fitas, que recortam gentilmente o ar no ritmo dos baiões de Luís Gonzaga: A. Um mistério. Frequentamos a mesma escola. O pré-primário. Só que nessa época, sem tantos prés ou pós, chama-se a isso, genericamente: alfabetização – e como o termo soa melhor, até hoje! O São João será, para a gente, o golpe de sorte dentro de uma contida versão-mirim de amor-cortês.

Há grande atrativo nos lábios de A. Nos entreolhamos, cúmplices, no seguir da quadrilha. Uma certa tensão no passo da troca de pares. Aquele giro parece demasiado longo. Mais longo do que, de fato, é. Uma volta da terra em torno do sol. E, finda a rotação dilatada, estamos juntos outra vez. Restituídos. Há muitas cores, fitas, chapéus. Há sabores de carimã e aluás. Há dinâmicas e timbres que não se ouve todo dia. Mas a mais serena alegria mora na menina dos olhos dela. E por um breve instante, no centro do carrossel humano, aperto-a contra mim. Seguimos juntos. Posso ouvir o rumor de seu pequeno coração. A doce gentileza de seus olhos, em entrega. Os pés deslizando sobre o cimento liso da quadra. Tudo é cor de cinabre. Tudo mistério, e se explica. Fogo amarelo e azul. Posso sentir o contato gentil de seu pequeno rosto, naquela longínqua noite de fogueiras. Ópio e memória. E sequer adivinho que antecipamos e reproduzimos o destino de tantos. Dizem que é possível. Porém só porque há estrelas que, em vez de restarem imóveis, riscam o céu. E assim concedem pedidos. O que seria do mundo sem isso. Riscos e promessas.

Ela muda-se para a capital nas férias de julho. Prossigo habitando aquele braço de mar emoldurado por mangues. Velho Rio das Cruzes. Coreaú. Camucim. E jamais confesso a meu avô da minha preferência pelo São João. Nem mesmo no dia em que, irritadiço, me recuso a lhe tomar a benção. E isso é algo tão grave que, ao chegar em casa, meu pai, que nunca triscava em nenhum de nós, me acerta as pernas com algumas merecidas vergastadas de cipó de azeitoneira preta, que ele colhera no caminho de volta, e viera fleumaticamente desfolhando.

Em todas essas voltas a mais em torno do sol, nunca paro para pensar realmente a sério o que nos leva a contar histórias. E, veja bem, todas elas são com agá. Ficção? Estória? Isso existe? Arrisco dizer que os instantes que vivemos, os de mais intenso gozo ou pesar, nunca são absolutos. Sublimes é como são. Por vezes, meio pensos prum lado. Deliciosamente assimétricos. E contar histórias, como andar de bicicleta: miúdo exercício de equilibrismo.


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