Cícero Dias, Mulher e Praia, serigrafia, s/d
Olha essa sobra, essa réstia de sol
-Duas amostras de canções escritas sob uma mesma propedêutica miscigenada
Entrou nos braços do rei
Rainha mais verdadeira
[Jorge Amado]
Geraldo Azevedo talvez seja injustamente mais conhecido por seu smash hit “Dia Branco”. Por alguma razão essa canção tornou-se enormemente popular entre adolescentes que tocavam violão na década de 80. E era comum que se dissesse, um tanto ironicamente:
–Toca “Dia Branco”!
Se quem estivesse na posse do instrumento seguisse a sugestão, algum olhar cúmplice podia, então, surtir da roda ao sugerente. E a cifra desse olhar era algo como: “de fato, o repertório do violonista é pobre". Ou ainda: “o cara fuma maconha, milita no movimento estudantil. A próxima que irá tocar: 'Pra não dizer que não falei das flores' usando só dois acordes: Lá menor e Sol”. Lembrem-se: nada causa maior enfado a um violonista brasileiro que pobreza harmônica. Ele até perdoa que não haja tanta inventividade na mão direita, nos harpejos; mas se a esquerda não inventar harmonia, o pinho vai pro brejo.
“Dia Branco” é talvez o maior sucesso de Azevedo. Não é má canção, aliás. Apenas tocou demais no rádio à sua época, saturou. E nem de longe está entre as preferidas dos violonistas mais exigentes. Azevedo, no entanto, escreveu belas canções, como “Táxi Lunar”, em parceria com Zé Ramalho e Alceu Valença. Ou “Bicho de Sete Cabeças”, com Ramalho e Renato Rocha. Mas, em especial, a trilogia composta pelas canções “Caravana – Talismã – Barcarola do São Francisco”. As duas primeiras, em parceria com Valença.
“Caravana”, por sinal, foi tema de Gabriela – a mais clássica das telenovelas. E era a segunda melhor canção desse folhetim televisivo. A melhor, sem sombra, sem dúvida, foi composta por Dori Caymmi sobre uma das vinhetas que Jorge Amado apôs aos capítulos do romance. Não sou propriamente o maior fã da escritura de Jorge Amado. Tive, porém, o prazer de conhecê-lo rapidamente, e constatar seu imenso carisma. Sua bonomia. Alguns de seus romances tiveram para mim o valor de ritos de passagem. Um valor propedêutico. E, logo, essa circunstância torna esse não ser fã ainda mais relativo, difícil de dizer. Está claro que ele sabia traduzir sua gente, sua terra. E não é isso bastante? Não gosto de telenovelas. Mas adoro Gabriela. Bem mais a telenovela que o romance, aliás. (Ou será que, aqui, há uma estranha suplementaridade entre ambas as formas?). O fato é que ao tempo em que assisti, era pouco mais que criança.
Além disso, Dori Caymmi escreve como Baden, Jobim ou Edu Lobo para violão. E, assim, essa inusitada parceria, que se chama “Alegre Menina”, tornou-se célebre na voz de Djavan, com um arranjo memorável do próprio Dori Caymmi, onde sobrepassam-se percussões, flautas (por vezes ao modo de apitos de caça) e esse violão, que oscila entre o berimbau, o tambor de côco, a viola sertaneja. A voz de Djavan, então, tenra e jovem, com aquele inconfundível, açucarado sotaque alagoano. É o único tema que consegue seduzir ainda mais que a “Caravana”, do pernambucano Azevedo. Reparem em como até as flautas em “Alegre Menina” soam como se fossem tambores, guardam eminentemente uma função percussiva. Ou seja, lembram as tradicionais bandas de pífaros.
Porém o tríptico de Azevedo, onde há alguma brincadeira com o tempo, também resguarda seu lote de charme. O arranjo orquestral por exemplo ou o solo de sax insinuando pentatonicamente algum sobretom fatalista e moçárabe – especialmente ao longo da enfeitiçante “Talismã” – que, de outro modo, começa já no refrão, com sua iteração hipnótica: “Diana, me dê um talismã, um talismã”. E, então: “Viajar, /Você já pensou em ir mais eu, viajar?”
Essse “ir mais eu” por “comigo” é da fala popular do Nordeste agrário que ora tende ao desaparecimento. Porém ainda se escuta em lugarejos remotos, nos subúrbios pobres das metrópoles. E é belo, quando dito espontaneamente, sem mediação do clichê televisivo. E tão bem disposto o arranjo de cordas, e, em especial, o coro de sabor africano sobre um fundo de ciranda portuguesa, propondo a transição de “Caravana” à “Talismã”, que até se pode perdoar nem tanto a falta de jeito do guitarrista, mas a escolha do timbre -- e como são facilmente reconhecíveis, datados esses timbres de guitarra elétrica dos 70 a meados dos 80.
A transição é mediada por um coro que lembra um pouco o que Milton Nascimento plasmou das congadas de Minas Gerais aplicadas sobre harmonias estranhíssimas. E, então, depois de todas as reiterações e da ingente nostalgia de “Talismã”, chega-se ao terceiro movimento. “Barcarola do São Franciso” é o finale, uma escala simples descendo para os graves. Há nela um lamento indígena e uma leve insinuação de ritmos caribenhos. De resto, sugere um Rio São Francisco próximo à foz, porque tudo é tão litorâneo nesse trio de canções quanto os poemas de Joaquim Cardozo.
Canções como essas passam o recibo de o quanto algumas produções televisivas brasileiras na década de 70 possuíam uma trilha sonora à prova de qualquer suspeita. Os de língua não portuguesa podem, pelo exotismo, até apreciar mais A Escrava Isaura. Nós sabemos que Gabriela era muito melhor. E não menos por sua trilha sonora.
Há especialmente em “Alegre Menina” o conceito que os músicos brasileiros chamam de “pau-e-corda”. Ou seja, canções em que o violão reverbera algo da protagônica percussividade de tambores, caixas, berimbaus, pandeiros, recos-recos, caxixis, ganzás, triângulos, bel-trios, paus-de-chuva e, a despeito de um tremendo suíngue, com frequência, executa harmonias intrincadíssimas. Ou seja, é um violão que flerta em justa medida com a inexaurível polirritmia da música brasileira. Uma alusão e uma tradução da miscigenação que por aqui se deu e se dá: muito mais profunda e historicamente consolidada que em qualquer outro ponto das Américas. Essa música é um derivado dessa miscigenação – queira ou não o “politicamente correto” ou as teorias da Ford Foundation.
Gilberto Freyre, aliás, disse coisas mais originais e criativas do que o “politicamente correto”, do que a Ford Foundation. Ou mesmo do que sociólogos mais recentes, como o português Boaventura de Souza Santos.
Trazia na pele o bronze do sol do Nordeste quando ouvi essas canções pela segunda vez. Elas sumariam minha primeira viagem longa pela região. As imensas dunas dos Lençóis Maranhenses. O Delta do Parnaíba. As barras do Timonha e do Camocim. A mítica paisagem de Jericoacoara e depois. Canoa Quebrada. As salitrosas costas do Rio Grande do Norte e a verdura da Zona da Mata adensando-se na Paraíba. Os rios -- Persinunga, Pirapema, Sirinhaém -- e canaviais de Pernambuco. Olinda, sempre. Os coqueirais do norte de Alagoas. Os mangues de Sergipe. São Cristóvão. As ladeiras da Bahia, e a atmosfera africana pairando sobre elas.
Entraram por um ouvido. Jamais saíram. Escuto essas canções de muito em raro. Para não perder o sabor da surpresa. Para não "gastá-las". Hoje bem compreendo que as ouvia por instinto, e por isso menos sábio sigo.
Para quem desejar conhecê-las (ou relembrá-las):
Nota – como sugestão escute ao menos uma vez de olhos fechados para perceber a música em cada uma delas sem a impedância que a imagem causa. E de preferência de fones de ouvido – que é quando se escuta música, de fato. Em "Alegre Menina" repare em seus cinco pontos cardeais: o violão de Dori Caymmi, a flauta, as percussões, a voz de Djavan e uma linha de baixo que amarra toda a conversa. Na suíte “Caravana – Talismã – Barcarola...” vale a pena atentar para o como é bem tramada a transição de um para outro tema. De início, com um coro de vozes africanas, depois com esse flébil solo de sax no arremate de uma boa orquestração.
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