quinta-feira, 26 de maio de 2011

Anyone for tennis?

 
Martin Elliott, 1976


Alguns segundos de tênis e outros duelos entre os que urinam contra a parede


Há as partidas de duplas, e as de duplas mistas. Quem liga para elas? O tênis é um esporte sozinho, mas naquele estar só a dois de que nos fala Beckett. E provavelmente um das modalidades em que o caráter dos jogadores sobrevem à flor da pele. Ele é uma conversa. É claro que ele não é sozinho ao modo do golfe, onde há um homem, um taco e buracos. Ou, em outra sala, na arqueria: um alvo, arcos, maçãs, Guilhemes Tells e flechas.

O tênis é um duelo. Ele tem muito mais de contenda, desafio. Um desagravo entre dois seres humanos, que, por vezes, até se olham nos olhos, pois eles não estão velados, como na Fórmula-1. Ou olham na mesma direção, como no tiro ao alvo. E os tenistas permanentemente dão a cara à câmera. E, ao contrário do futebol, a câmera os toma tão de mais perto que cada mínimo gesto é tradução mais esforçada do que vai pela mente. Se contra-atacam em cabal desfaçatez, há um retardo no ocultar a intenção até o golpe da raquete largar o drop shot – a famosa deixadinha – provocando aquele supremo desespero no adversário, que dispara, feito um cachorro atrás do graveto, da linha de base na direção da rede, resvalando pelo saibro, resfolegando, abrindo pequenas clareiras no pó de ladrilho. E isso manifesta, no caso de o golpe bem aplicado – a bola baixa, sem peso, ao modo de uma folha seca – algo análogo ao blefe na milimétrica fleuma do pôquer.
O tênis é um pôquer sem ser em torno de uma mesa, não jogado com cartas de baralho ou por meio apenas de caras, bocas, esgares. Mais importante que essas circunstâncias – pois acentua sua característica de duelo –, a gente o joga contra um só adversário. Nesse último ponto se pode principiar a prospectar seu rubro veio de duelo. E é o que o aproxima daqueles ajustes de contas ao pôr-do-sol nas poeirentas vielas do Velho Oeste que, à sua vez, são uma reatualização das justas e torneios medievais, que à sua vez são uma reatualização de vendetas tribais, que à sua vez.
No campo do esporte, as touradas e o tênis são os mais dignos sucedâneos desses “à sua vez”.
Pode-se contrargumentar: “ah, mas não: há o boxe, o vale-tudo, a esgrima, a capoeira, as artes marciais orientais, a luta greco-romana”. Afinal, aparentemente ao menos, todas essas modalidades seriam também duelos. Dentre elas, no entanto, é o boxe a que mais se aproxima do sangue-frio do duelo, seja pelo conversar por gestos, tendões e músculos, feito no tênis, seja no arriscado enfrentamento entre homem e animal, feito na tourada.
E, no entanto, quão diferente é o boxe em essência. Não se pode bater abaixo da linha da cintura. Há uma série de regras que fazem dos pugilistas verdadeiros gentlemen. Polidos ao excesso, ainda que com os supercílios esfolados, as narinas sangrando ou aqueles inchaços nos olhos. Ou ao redor da boca, que, então, mais se assemelha à de um símio, pela protuberância do protetor dental além dos hematomas. Acima dos narizes amassados --- e por vezes, recheados de chumaços de algodão, onde o sangue embebe e coalha --- há, sobretudo, as mentes limpas de dois cavalheiros. Basta assistir Fat City (Cidade das Ilusões, 1972) de John Huston para se aperceber disso. O quão no boxe o duelo é muito mais consigo próprio que no tênis, na tourada. Há uma espécie de estoicismo que está à base desse negócio de pugilato. E há aquela lendária cena em que após urinar sangue, o veterano lutador mexicano, derrotado, vergado pelo peso dos anos, e no entanto composto, extremamente alinhado, com a solenidade de um cavaleiro andante desce ao saguão do hotel caminhando sua pavorosa solidão -- a dos losers -- e aquela resignação elegante que transcende a sanha do duelista, e é de uma dignidade a toda prova.
Jorge Luis Borges chorava em westerns. E principalmente em filmes onde havia duelos com armas brancas: “ninguém mais sabe dimensionar a beleza disso; o heroísmo disso”, dizia, aos prantos.
Todos os outros embates, afora o boxe – que é, em verdade, o duelo de um só – sequer chegam perto do tênis e da tourada. E assim podem facilmente, facilmente ser descartados enquanto duelos. O vale–tudo semelha uma rinha de galos. Ou mais propriamente uma luta entre colegiais. Em noites de mais desjeito, sugere uma briga entre meninas à hora do recreio, daquelas onde valem unhas, dentadas, caras feias, puxar cabelos e os infames gritinhos, onde surtem insultos histéricos --- do tipo: "bicha feia" --- que fazem a delícia da meninada quando se tem seis anos. E é mesmo uma das maiores demarcações da sensualidade que irá aflorar com todas suas profusas cores na puberdade. Já antecipam algo do Johnny Guitar, de Ray. Mas definitivamente não são duelos.
A esgrima é uma Fórmula-1 com floretes e sem ronco de motores. Como na F-1 não se vê algo essencial: a reação facial dos contendores. O fato de estarem amarrados pelas costas também aproxima os esgrimistas daqueles fantoches que os titereiros comandam ao bel-prazer de seus cordeis e humores.
A capoeira, como sabemos, é muito mais uma dança acrobática. Deriva de rituais de trabalho. Da necessidade de espantar do corpo, primeiro com um espasmo, depois com movimentos de uma coordenação quase encantatória, o tédio de quando as tarefas que o corpo executa aproximam-se de repetições massacrantes.
As lutas orientais são profundas filosofias radicadas em ideogramas, e traduzidas em gestos rápidos. Mas, se olharmos, bem, por vezes, bem mais desgraciosas são que, digamos, essa “capoeira oriental” que é o Tai-Chi. No judô, por exemplo, é um pouco ridícula a importância que se atribui ao quimono. A vestimenta converte-se na base de apoio para o próprio combate. Além do que, os golpes em que o judoca tenta agarrar o outro pelos fundilhos para arremessá-lo como a um saco de batatas sobre o tatame assomam um tanto bisonhos, mesmo quando executados por um grande mestre. Não há muita elegância naquilo, pois tudo se passa numa rapidez mesquinha, quase descartável ao olho. E, porém, como tão se cita de Machado: "ao vencedor..."
Quanto à luta greco-romana é um espetáculo obsceno. Que talvez só perca em falta de plasticidade para o halterofilismo. E olhe lá. Parece que há um empate técnico. Que dela existam aficionados é uma prova viva da diversidade humana.
Restam, assim, de descendentes de duelos para valer, a tourada e o tênis.
O politicamente correto, a sociedade protetora dos animais, os ambientalistas radicais, o instituto de prevenção de riscos no trabalho e no amor, além do urro tribal entre as culturas, mesmo e principalmente as multiculturalistas e pós-modernas, acabará com as touradas – talvez um dos mais nobres esportes jamais surgidos. Hemingway, que escreveu páginas antólogicas sobre a tauromaquia, diz com grande propriedade, sobre esse zelo das pessoas em relação ao presumido sofrimento dos touros e, não menos, à forte cena dos cavalos dos picadores quando chifrados, com as tripas a dissipar-se sobre a areia da arena:

From observation I would say that people may possibly be divided in two general groups; those who to use one of the terms of the jargon of psychology, identify themselves with, that is, place themselves in the position of, animals, an those who identify themselves with human beings. I believe, after experience and observation, that those people who identify themselves with animals, that is, the most professional lovers of dogs, and other beasts, are capable of greater cruelty to human beings with those who do not identify themselves as animals.
[Death in The Afternoon, 1932]

Por observação, eu diria que as pessoas podem ser divididas em dois grupos, grosso modo; aqueles que, para usar um termo do jargão da psicologia, identificam-se, ou seja, se põe na posição dos animais; e aqueles que se identificam com seres humanos. Creio, após exame e experiência, que os que se identificam com animais, quer dizer, os maiores apreciadores, de carteirinha, de cachorros e outros mascotes, são capazes de maiores crueldades contra seres humanos do que os que não se identificam com animais.

Quando se pensa nos coqueteis de anfetaminas e esteroides que atletas de alto rendimento ingerem dia após dia em “esportes” como o atletismo e o ciclismo nos diascorrentes, pode-se pressentir que, além de bem abalizada, a assertiva de Hemingway foi quase profética.
Já o tênis, coitado, quem sabe o que dele farão os psicanalistas.
Talvez um monótono jogar a bola contra a parede. Só que, ao contrário do squash, não para disputá-la com um adversário, porém para travar um embate contra a própria parede; de tal modo que não haja vencedores nem vencidos entre humanos. Até que se descubra que a parede tem uma simbologia muito rente ao Muro das Lamentações, em Jerusalém, e se tenha de partir para outra superfície que não a que se mija contra. [1]

Ou, sobretudo, que a psicanálise elimine do tênis, ao modo do que praticamente fez com as touradas, o trauma dos vencidos. Como se de derrotas não se tirassem algumas, não digo lições, mas frações de humana experiência debaixo do sol.



[1]Uma das muitas definições para homem na Bíblia é justamente “aquele que urina contra a parede”.

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