[s/i/c]
Uma pequena história do possível
O relato vem de antes da TV a Cabo e da Internet. Mas só um pouco. E a rua era como não há mais. Um sossego à noite quebrado apenas pelo uníssono dos televisores e o futebol das crianças sob os jambeiros. Casualmente, o choro de bebês e o tesourar estacado e mítico das narcejas. Por vezes abafados por um avião desavindo, em procedimento de pouso mais lá, para oeste, após a rodovia e a antiga torre de controle do aeroporto.
Havia uma sensação de inauguro nos olhos de ambos. À época, o bairro parecia longe de tudo. Dos outros parentes. Dos amigos. Do trabalho. Quão longe estava o centro da cidade. O mar. As linhas de ônibus, escassas. Mas os ônibus quase nunca trafegavam lotados. E se algum percalço assaltava a manhã, era sempre possível cobrir de carro, com pouco trânsito, a distância até o Centro. Tanto pela rodovia de um lado quanto pela avenida do outro. E, assim, o quem casa quer casa encontrou no casal, naquela rua, à sombra dos jambeiros, uma sua insígnia.
E era como se a rua se estivesse inaugurando com todas aquelas casas novas, cheias de crianças. E até mesmo a velha venda, que parecia engasgá-la em certo trecho, desalinhando-a, por contraste demarcava a novidade que a rua representava. Pilhas de tijolos, sacos de cimento, montes de areia, de pedrinhas, cal defronte as que ainda estavam sendo erguidas. E a delícia que a profusão dessas matérias causava na meninada. Mas a casa deles, já comprada pronta. E um longo financiamento a perder de vista. Era sólida e bonita. Nem grande nem pequena. À medida de um jovem casal que sonha no meio do mundo. E, no princípio, o meio é bom. E o mundo bonito.
E era como se a rua se estivesse inaugurando com todas aquelas casas novas, cheias de crianças. E até mesmo a velha venda, que parecia engasgá-la em certo trecho, desalinhando-a, por contraste demarcava a novidade que a rua representava. Pilhas de tijolos, sacos de cimento, montes de areia, de pedrinhas, cal defronte as que ainda estavam sendo erguidas. E a delícia que a profusão dessas matérias causava na meninada. Mas a casa deles, já comprada pronta. E um longo financiamento a perder de vista. Era sólida e bonita. Nem grande nem pequena. À medida de um jovem casal que sonha no meio do mundo. E, no princípio, o meio é bom. E o mundo bonito.
Eram funcionários públicos, e erguiam uma vida assalariada e laboriosa. Tinham, à sua vez, um casal de filhos. O mais velho, pletórico e rueiro. Jogava futebol às tardes, depois da escola. Às vezes à noite, antes da novela. Em meio aquele alarido de meninos na rua, que mais parecia um pátio de escola.
A mais nova, menos estuante. A exigir mais antibiótico e cuidados. Uma compleição frágil também forjou na menininha, legado talvez do imobilismo de seguidas doenças, uma inexcedível presença de espírito. Ela, com mais frequência que o irmão ou que qualquer outra criança na família grande, propunha aquelas frases plenas de um viço que transcende a mera, gratuita fascinação que os pais nutrem diante dos filhos pequenos:
--Minha boca vai voar -- disse ela, em certa ocasião, ao descerem de buggy, uma imensa duna no Cumbuco.
Vamos dizer, por acaso, em algum clichê, que se complementavam. Ao menos aos olhos dos pais. O menino se chamava João Marcos. E a menina, Maria Cecília.
De início, João Marcos, alijado do monopólio dos carinhos, acossava Maria Cecília. Volta e meia com tanto vigor que, certa tarde de brincadeiras, em que os três anos que os separavam se fizeram mais efetivos, João Marcos deslocou o bracinho dela.
Porém ficou tão compungido, que essa fratura de braço fumou entre os irmãos um cachimbo da paz. Assim que descontados inevitáveis delitos menores, praticados de parte a parte – e que tão parte fazem da vida entre irmãos pequenos, junto com outras tantas teimas e lundus – nada de mais agudo tornou a ocorrer.
No fim de semana, a família seguia junta ao clube e ao mar. O menino preferia a piscina. A menina, brincar nas poças da baixa-mar. As “lagoinhas”. Ou então, no mar aberto que era quando podia-se ver a dádiva do inédito em seus olhos ao sentir os pés afundando na areia quando a onda retraía forte, sulcando de volta pequenas conchas, vieiras, camadas de terra.
E, no entanto, as colheres de antibiótico, os muitos desvelos e mimos da mãe não bastavam para que a saúde de Maria Cecília vicejasse. As compressas, o escalda-pés, o aerosol. A menininha minguava. E em proporção inversa ao fascínio que seu encanto despertava: na creche, na vizinhança, entre a família grande. Os olhinhos azuis, amendoados, cheios de um vivo bulício sob a franjinha, e aquele carisma que não se pode alugar como se aluga um vestido:
–Essa menina nasceu sabendo mais o que quer da vida do que uma avenida com nós todas juntas – dizia uma tia.
Mas vieram exames, diagnósticos, raios-x. Problemas nos brônquios, asma, rinite ficando agudos. Debilitando-a. Não raras vezes levavam-na ao posto de saúde. Ao hospital. Sessões e sessões sob máscaras de aerosol. Faltava-lhe fôlego. E, no entanto, tão bela era sua compleição, que nenhum peito de pombo formou-se no tórax.
Retiraram-na da creche. E de manhã, se não estava deitada na rede, à varanda, vendo figurinhas, um armador de rede inscrito nas nuvens ou a brincar com sua pequena tartaruga no jardim, ela soltava os periquitos no quarto fechado. Que farra era aquilo! Copiara o procedimento do pai. Mas o afinara à perfeição.
De início, os bichinhos eram só medo. Depois se foram rendendo tão incondicionalmente aos mimos da menina, que, por fim, adotaram seu pequeno corpo assim como se escolhe a árvore do ninho. Acostumando-se a ele. Colonizando-o. Fazendo parte dele. E a menina vivia com passarinhos da cabeça aos pés. E eles, naquele tácito acordo de bichos, entendiam que ela não podia mover-se em excesso. E, logo, possuía algo da perfeição imóvel dos vegetais. Se ela os segurava nas mãos, parecia já ter a noção precisa do ponto onde o carinho termina para começar o castigo. E ela sabia o quanto um carinho quase sempre faz bem.
E foi então que eles a ensinaram a voar. Não por muito. Porque sabiam que aquilo de voar podia deixá-la extenuada. Eram apenas pequenos sobrevoos à volta do quarto. Da janela para cima da cama, passando sobre a rede. De perto da porta até o tampo da velha penteadeira de espelho tripartido, que fora da bisavó de Maria Cecília. Sempre quando não havia ninguém por perto, que era para não despertar suspeitas. Censuras. Pois ela e eles se entendiam. Sabiam que os humanos adultos, ainda quando boa gente, são torpes e descrentes.
Ela também não contava a ninguém. Nem a João Marcos. Cedo entendeu que aquilo era incontável. No seu rol de coisas incontáveis, no entanto, não entrava conversar com a chuva. Já a propósito de voar, mais que a sensação de flutuar em si – pode-se ter uma ideia disso nos balanços, carrosséis; nos braços do pai – fascinante era poder imprimir uma direção àquele impulso; e, sobretudo, enxergar o mundo de ângulos assim insuspeitados, e em movimento. Como só no cinema a câmera faz por nós. Com menção honrosa aos desenhos animados.
Porém descobriu-se que algo nas penas dos periquitos causava alergia em Maria Cecília. E, desde então, ela só passou a brincar com eles por meio de um toque. Um toque de olhar, cintilante e vivaz. À distância. Enquanto eles se atropelavam de dentro do viveiro, para se aproximar do aceno dos dedos dela. E longas eram as manhãs como a sucessão de listras pontilhadas no centro da Belém-Brasília.
Por essa época, a febre insistiu em não se afastar mais dela. Grudou nela. Foram dias a fio. E quilos a menos. Ela voltou debilitada do hospital para casa. O fôlego curto. A resistência abalada. Até mesmo as correrias, estrepolias dos poucos anos, findavam em tosses e extremados cansaços. A cabeça a erguer-se, com se assim pudesse morder mais ar.
Já não parecia a menina que, só uns meses antes, forcejava pelas águas das pequenas poças que a baixa-mar deixa para trás em benefício de crianças e namorados, na Praia do Futuro. Já não usava descer os batentes para a rua, onde recebia os jambos, que os meninos colhiam depois de escalarem o Everest. Não tinha mais forças para o jardim. Nem para a tartaruga.
Maria Cecília morreu num domingo, ao fim da tarde, que é a hora em que por pouco a alegria diz à tristeza para seguir adiante. E recolher os pássaros – mesmo os avulsos, nos fios da rede elétrica. Sumir com eles. E compilar os restos da semana. E passar uma chave na caixa-registradora. A chamada da missa. A semana extinta no domingo, com suas dores e riscos. E, logo, o laivo de uma lembrança de não se sabe o quê mexe com a gente e se vai rápido. Mas seus vestígios. O quanto o marcador avançou nas páginas do livro. Ou as cartas do tarô, os búzios, o mapa dos astros previram destinos. Quantas milhas os aviões voaram em torno da terra naquela semana? Não se sabe bem o que ela teria sido: comissária de bordo, advogada, psiquiatra, corretora de imóveis, jornalista? Que amores estavam inscritos nas linhas de sua mão? E, então, no que uma vizinha tratava de vesti-la para a ocasião, a rua regurgitava de futebol, vôlei, bambolês e correrias. Uma alegria tão densa como raspa de brigadeiro no fundo da panela. No viveiro, os periquitos imóveis. Havia grande vibração na cidade. Fogos estouravam bairros afora. A celebrar um tricampeonato.
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