O Pastor
Para que não te sintas sozinha, toco meu apito. E ele estride sobre a aldeia com lavareda fugaz de relâmpago. Na noite sobre o vale, da vara provem grunhidos. Desirmanados. Há deuses nas estrelas, onde todos procuram duas coisas: enxergar os mesmos desenhos – Andrômeda, Cassiopeia, Perseu –; e um espelho – como se elas, na distância de anos-luz, ainda tivessem alguma coisa a ver com os homens.
Faz frio. O Bafo de Bóreas abate-se sobre o bosque. Abaixo do relevo negro das árvores sob estrelas, os cobertores de lã, um fio tênue, como os de um teleférico, me liga a ti. O fio do apito furando a noite. Quantas braçadas no mar de placenta tenho de arriscar para me livrar dele.
Tanto empenho ponho nisso, que é como se, safo e veloz, manejasse à perfeição um abridor de latas à pia da cozinha, e nenhuma nódoa de molho ou erupção de ervilhas espalhasse sobre o pano de pratos. E, assim, nos sem fins da noite, sopro com ganas de apaixonado. Mesmo sabendo que provavelmente não serei ouvido. Ou por isso mesmo. Porque ainda que se ouvisse o apito, seria de raspão. Assim como, imerso em outra porta da mente, se ouve o jingle do caminhão de gás ou do vendedor de pamonhas, sem propriamente ouvir. É só por isso, sei, e libro notas tão nítidas, como Miles Davies em “Bye Bye Blackbird”. E, noite após noite, faço reviver o sem jeito que fomos nessa lembrança, soprando o apito sobre a geada e o vale. Meio como se o apito pudesse remendar os puídos do fio, os nexos das poucas conversas que tivemos, quando, mais jovens, descíamos juntos a acrópole na direção do mercado e eu tinha de reclinar a cabeça para ouvir tua voz onde havia mais silêncio que palavra. E, logo, pelo empenho de apitar tão bem, muitas transumâncias depois, pudesse eu obter, por uma estupenda graça, o primeiro prêmio da loteria, e a suprema dádiva de comprar o bilhete. Descer pelo teleférico, maciamente, das escarpas e vales para as sebes, anfiteatros e avant-premières da cidade. Não grisalho e maltrapilho. Mas com a esportividade e a pletora muscular de alguém que acaba de vencer o Big Brother ou o campeonato mundial de kite surf.
Inútil buzina, bem sei. Porém o que resta a alguém que tange porcos na serra, durante os duros invernos, desterrado dos cenáculos e da porcelana da cidade? Aquele mesmo que, esfalfado a vida inteira, sujando sandálias em poças, nos excrementos dos porcos, pintando o rosto com inclemência mineral de sol e estio, aprenderia jamais a comportar-se num banquete, e tecer argumento com astúcias de Ulisses.
Não, nesses pastores poetas, que se vê por aí – no pseudo-Teócrito, em Bíon e Osco – esse verniz urbano em almas que não transitam entre dactílicos e anapestos, nada mais é que mera convenção literária, enquanto a chuva castiga a campina, e os porcos trotam sobre o capim, equilibrando-se nos cambitos como vereadores pançudos. Às vezes guincham e retorcem as orelhinhas de um modo tão engraçado que não passa longe de uma pirueta retórica. E, no fim de tudo, são apenas porcos. E, de mais a mais, depois de uma noite em que te lancei três apitos, faz grande silêncio.
Mas então, Princesa, o que não é convenção literária nesta vida: chuva, campina, noite, apito?
Tss, tss. Sem jeito, quando se sabe que, num tratado more geometrico, até o silêncio é uma figura no espaço.
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