domingo, 29 de maio de 2011

O quanto é possível descomunicar-se com uma 'massa' afere a medida de sanidade de um texto

[s/i/c]


Do(i)s métodos: hiperconcentração-maníaca & minimalismo-barroco


A hiperconcentração-maníaca é outro método de escrita ao qual tenho me entregado. Ou melhor, método de criação. Ele quase se contrapõe ao minimalismo-barroco, porém surgiu de modo completamente distinto. A maníase, vamos chamá-lo assim, surgiu de um método de escrita que tem a ver diretamente com os editores de texto, enquanto o minimalismo-barroco utilizava esses editores de texto como simples meio de transcrição.
Na maníase a escrita começa com muito pouco. E então, por camadas e mais camadas de obsessiva revisão – em geral, feita em voz alta, ao se ler o que vai na tela – segue formando texto que, em si, guarda muito da neurose hiper-referencial do tempo digital. Das tecnologias da informação.
Nesse rumo, a maníase é violentamente mais barroca que o minimalismo. Porque sua ironia, seu humor nasce da profusão das referências e do contrastes entre elas e o que realmente importa: uma experiência mais individualmente vivida, que se pode sentir no âmago, na idiossincrasia de cada um, porque todos somos diferentes. O que realmente importa: alcançar novas formas de auto-conhecer, de reconhecer a esterilidade e vastidão solipsista em que cada um de nós encontra-se imerso, nutrir uma compassividade que ameaça desaparecer da face dos dias convertida como está sendo em idolatria pelo dinheiro, o corpo, o prazer e, sobretudo, o poder.
A maníase é o minimalismo-barroco afetado pela informação. Mas “humanizando” essa informação mediante sua transformação em gesta, piada, anedota, paródia, crônica ancilar; mas também em algo muito mais cheio de membranas, tendões e nervuras.
Talvez seja difícil fugir dela. O conceito me ocorreu quase espontaneamente depois de reparar o quanto meu método de compor um texto havia se modificado radicalmente. Em especial, na última década. E foi na última década que, em vez de compor, com lápis e papel, me lancei a escrever diretamente nos editores de texto.
Quer dizer, as possibilidades de manipulação do texto tornaram-se, então, tão devastadoramente mais amplas, que a maníase, ao incorpoarar apenas uma ínfima parte dessas possibilidades e alternativas – ainda que revelando isso em frustração e resentimento paródico: o que ela se apropria é apenas um insignificante porção das possibilidades de manipulação de textos, que só se darão à vista com mais nitidez (se é que, aqui, se pode empregar a palavra nitidez) nos próximos anos -- sabe que é, em si, extremamente parcial e descartável.
É desso jogo com a sua própria desimportância inicial e descartabilidade que se nutre a maníase.
Foi um pouco para apontar algumas amostras dessa nova possibilidade de escritura, centrada não no bloco inicial de texto, do qual se sai desbastando o não essencial; mas, do contrário, no princípio, propondo um bloco ínfimo de texto que segue sendo enxertado por referências e associações (embora não tão fortuitas ou aletórias como no surrealismo), que foi escrita em predominância a prosa postada, por aqui, neste maio. E em especial alguns relatos: "Veja se agora você descobre outras coisas", "O Presente". "O Equilibrista", "Adoro quando a Mariana fala"; todo o ciclo em torno dos '17 relatos começados com pronomes definidos' e, ainda depois deles, coisas como "A Certidão", "Toda uma História", "A Glosa", "Um Sergipe do Espírito" entre tantos outros. Os mais recentes tendo sido: "A Sonhadora", "O Engenheiro", "Colágeno" e "Duas Vinhetas para um Fim de Tarde". Alguns (poucos) deles, inclusive, não se encontram, aqui, mas no blog coletivo português É tudo gente morta.
Essa profusão de relatos ficcionais em prosa baixou como um surto neste maio e afugentou alguns leitores. Ou assustou outros tantos, pela garrulice. Melhor assim. Ela é um experimento. Está mais interessada em ser experimento, do que acomodar-se a gostos já constituídos. Ou render-se aos assuntos. Opta, nessa via, por pelo menos destacar que o modo de contar empata com o contado. E, ao que tudo indica, havia uma necrose quanto a isso por aqui. Daí que, como não tenho qualquer compromisso com o tempo do mercado, se haja passado os quatro primeiros meses do ano praticamente sem postagens. À exceção de uma realmente importante e que é dedicada a Francisco Carvalho, em provocação. Porque quase todos os escritores cearenses que eu conheço (de uma geração mais velha, da minha geração -- ou seja aí chegando aos cinquenta nos próximos anos -- ou da turma mais nova) fala mal de Francisco Carvalho. E a maioria sem o haver lido. E, convenhamos, Carvalho é um poeta um bocado interessante de ler. Muito mais interessante que os que falam mal dele, diga-se de passagem. E chegamos ao ponto.
Desde que admiti que jamais entro na internet para “fazer amigos”, porque não creio – salvo em situações especiais – que há algo como “amigos virtuais”, ou uma “afetividade virtual”, meu interesse vai mais pelas possibilidades de descomunicação. Ou o quanto é possível, através de uma guerra de guerrilhas, descomunicar-se com uma “massa”. Ou seja, entrar num grau de contato outro. Inteiramente diverso do normativo. Desnormativo. Do que está proposto pela maioria dos meios de que lançamos mão para nos comunicar “em massa”.
No fundo, como sempre, a maníase – como antes dela o minimalismo-barroco – será em breve uma abandonada e frustrada tentativa de encontrar o impossível: uma individualidade do outro lado do largo e intransponível mar oceano não pacífico que são esses processos contemporâneos de contato via TI. E de diversas formas, porque a gravação digital e a edição não-linear de filmes são o equivalentes no campo do cinema ao que os editores de textos ou as publicações eletrônicas são para a literatura. Quer se queira, quer não, a forma é ditada por eles, pelo modo de sua tecnologia, enquanto somos e seremos cada vez mais apenas "massa de modelar", objetos na mão desses sujeitos digitais que são esses novos aportes da tecnologia da informação. Qualquer forma de "dialogismo" proposta pelas TI's é também uma forma falsa. Porque ninguém dialoga essencialmente para ser notado por outras pessoas que não as que estão envolvidas diretamente. Atadas pela fala.
E o espaço virtual, o que é, senão a casa do Big Brother decomposta para comportar fragmentos mínimos de exposição de uma suposta individualidade em público? Uma individualidade devidamente filtrada pelo 'personalidadismo' de nossos dias. Ou seja, em que todos querem afirmar suas próprias personalidades por meio do consumo que fazem de bens e produtos? E, aqui, tanto faz se uma sopa desidratada ou a obra de um cineasta de vanguarda.
Conversas assim são chatas. Prometo não me estender demais.
Agora, algo que me deixou de cabelo em pé foi o de perceber o quanto esse método de composição por revisão maníaca, agregando paródias e referências de uma pré-mídia, já era algo mais ou menos consolidado por escritores como David Foster Wallace ou Zadie Smith, para ficar só com dois exemplos ilustres. E não de uma forma torpe ou farsesca. Como se deu lá fora com o Mont Python, e, aqui, com A Turma do Casseta & Planeta, seus devidos epígonos. 
O termo guarda-chuva que tenta dar conta dos esforços desses autores, que lançam mão da ironia, dos acrônimos, das referências cruzadas em leituras outras, etc. se denomina em inglês: realismo histérico [hysterical realism].
E, passando para outros campos da criação, fica muito claro, hoje, que um filme como Vilas Volantes, em sua limpidez quase ática, vem em linha reta do minimalismo-barroco; enquanto Encruzilhada Aprazível é filho dileto da maníase ou do realismo histérico. Quer dizer, a partir de um texto mínimo, cultiva uma série de subtextos em torno, que ecoam a “mediocridade”, a “mesquinhez”, desse texto inicial. Aliás, faz isso com uma consciência e senso de ritmo bastante curtido, equilibrado. Para diferenciá-lo de filmes que, a meu ver, são muito mais amorfos, como Sábado à Noite.
Fred Benevides uma vez me disse que estava seguindo para estudar em sua pós-graduação o como as implicações afetivas – as teias de amizade e o conviver entre amigos – praticamente ditavam as formas de produção gestadas em um determinado local. Nunca lhe disse, mas vou dizer agora: sempre achei mais proveitoso o contrário. O ensaio que consiga analisar as formas ao largo dos afetos mais íntimos. E simplesmente porque essas formas são suprapessoais.
As formas, ao contrário dos afetos mais imediatos e especiosamente urgentes, ficam. Há pessoas que convivem com a gente muito intimamente. Mas que só vão chegar a nos entender minimamente muitos e muitos anos depois. Faz parte.
O fato de as formas serem suprapessoais, no entanto, não quer dizer que não sejam profundamente engajadas e políticas.
A misantropia, quando bem empregada (como por Herberto Helder, talvez o mais alto poeta vivo da língua) é uma forma política.


Em suma, o quanto é possível descomunicar-se com uma 'massa' afere a medida de sanidade de um texto. Porque o texto não visa conveniar-se com a massa --- essa abstração das teorias da comunicação tornada leviatã vivo e resfolegante pelos doutos em marketing. O que o texto visa, no fim, é outro ser humano que pode eventualmente ser encontrado na probabilidade de se visar um exoplaneta habitável --- em que há oceanos, nuvens chuvas --- a 20 anos-luz da Terra.



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