quinta-feira, 26 de maio de 2011

Que discrição se pode obter num mundo devassado

Edward Ruscha, Eye (litografia), 1968

Possibilidades e impossibilidades do ver


Além de se exporem, de se darem a ver o tanto quanto bem desejam, quando e do modo como querem – à contagotas, em pequenos tragos, doses cavalares ou suicidas overdoses – as pessoas deveriam ter a noção de que isso não é recíproco. De que há pessoas que não desejam nem ser vistas tão amiúde, nem tampouco ver tão amiúde. E não ser vistas ao menos por aquelas outras (poucas) pessoas, no círculo de intimidade de qualquer vivente, que o bom-senso indica: uma maior distância seria prudente, saudável. É o mínimo de discrição que se pode obter num mundo devassado por câmeras e redes sociais e servidores de imeios e telefones móveis por todos os poros. Ao ponto de se sonhar em chegar às terras nas quais implicitamente ainda haveria o aviso: “sorria, você não está sendo filmado”. Essa discrição mínima não seria jamais uma lei, um artigo do estatuto dos direitos de imagem, mas uma espécie de compaixão visual de foro íntimo, para com o próximo. Mesmo nesses tempos virtuais, em que se pode saber da vida das pessoas a qualquer momento, com um simples clique. Retaliar. Quer dizer, deixar bem claro que há algum desassossego quando a gente se sente monitorado diariamente no mundo virtual. E esse mundo virtual está longe de ser o mundo dos sonhos ou do faz-de-conta ou da bela-adormecida ou da gastronomia francesa ou de uma visita à Alhambra. Porventura, porque, no fundo, a vida real (longe de tudo isso) comporta uma pletora de riscos. E, logo, retaliar é apenas uma forma de dizer a certas pessoas: “porque você não vai passear em outros campos do Senhor; ver se eu estou ali na esquina; ou cuidar do próprio nariz; ao invés de estar sempre por aqui ou pensar tão unilateralmente – após haver lido um artigo de um escritor norte-americano de vanguarda (e entendido tão pouco) – e, desse modo, deduzir que todos podem ficar auto-secando-se o dia inteiro, nas telas de cristal líquido? Que todos tem o direito de ver, de ler qualquer pessoa toda vez que lhes der no juízo?” Quem não começa a cansar de ter zilhões de imagens na retina dia após dia deve ser um zumbi, ter o corpo fechado, à prova de imagens, sons, texturas. Pois até o banal extremo e a obtusidade ganharam centenas de canais de TV na economia imagética do espírito. A que não corre riscos.



Não seria isso, essa onipotência onívara do ver, a própria definição pós-contemporânea para espelho? E, então, empenhadamente nas folgas do trabalho consulta-se por anônimos pc's aqueles espaços da desconfiança, que antes, por Mac, de casa eram acessados. E a medida de auto-iludir-se, sabe-se, é muito maior que essa hiperdiarreia de imagens vertendo-se sobre o rosto dos dias. Cuidado, tantas imagens assim furtivamente visadas podem piorar enxaquecas.


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