terça-feira, 31 de maio de 2011

Entraram por um ouvido. Jamais saíram.

Cícero Dias, Mulher e Praia, serigrafia, s/d


Olha essa sobra, essa réstia de sol
-Duas amostras de canções escritas sob uma mesma propedêutica miscigenada


Entrou nos braços do rei
Rainha mais verdadeira
[Jorge Amado]



Geraldo Azevedo talvez seja injustamente mais conhecido por seu smash hit “Dia Branco”. Por alguma razão essa canção tornou-se enormemente popular entre adolescentes que tocavam violão na década de 80. E era comum que se dissesse, um tanto ironicamente:

–Toca “Dia Branco”!

Se quem estivesse na posse do instrumento seguisse a sugestão, algum olhar cúmplice podia, então, surtir da roda ao sugerente. E a cifra desse olhar era algo como: “de fato, o repertório do violonista é pobre". Ou ainda: “o cara fuma maconha, milita no movimento estudantil. A próxima que irá tocar: 'Pra não dizer que não falei das flores' usando só dois acordes: Lá menor e Sol”. Lembrem-se: nada causa maior enfado a um violonista brasileiro que pobreza harmônica. Ele até perdoa que não haja tanta inventividade na mão direita, nos harpejos; mas se a esquerda não inventar harmonia, o pinho vai pro brejo.

“Dia Branco” é talvez o maior sucesso de Azevedo. Não é má canção, aliás. Apenas tocou demais no rádio à sua época, saturou. E nem de longe está entre as preferidas dos violonistas mais exigentes. Azevedo, no entanto, escreveu belas canções, como “Táxi Lunar”, em parceria com Zé Ramalho e Alceu Valença. Ou “Bicho de Sete Cabeças”, com Ramalho e Renato Rocha. Mas, em especial, a trilogia composta pelas canções “Caravana – Talismã – Barcarola do São Francisco”. As duas primeiras, em parceria com Valença.

“Caravana”, por sinal, foi tema de Gabriela – a mais clássica das telenovelas. E era a segunda melhor canção desse folhetim televisivo. A melhor, sem sombra, sem dúvida, foi composta por Dori Caymmi sobre uma das vinhetas que Jorge Amado apôs aos capítulos do romance. Não sou propriamente o maior fã da escritura de Jorge Amado. Tive, porém, o prazer de conhecê-lo rapidamente, e constatar seu imenso carisma. Sua bonomia. Alguns de seus romances tiveram para mim o valor de ritos de passagem. Um valor propedêutico. E, logo, essa circunstância torna esse não ser fã ainda mais relativo, difícil de dizer. Está claro que ele sabia traduzir sua gente, sua terra. E não é isso bastante? Não gosto de telenovelas. Mas adoro Gabriela. Bem mais a telenovela que o romance, aliás. (Ou será que, aqui, há uma estranha suplementaridade entre ambas as formas?). O fato é que ao tempo em que assisti, era pouco mais que criança.

Além disso, Dori Caymmi escreve como Baden, Jobim ou Edu Lobo para violão. E, assim, essa inusitada parceria, que se chama “Alegre Menina”, tornou-se célebre na voz de Djavan, com um arranjo memorável do próprio Dori Caymmi, onde sobrepassam-se percussões, flautas (por vezes ao modo de apitos de caça) e esse violão, que oscila entre o berimbau, o tambor de côco, a viola sertaneja. A voz de Djavan, então, tenra e jovem, com aquele inconfundível, açucarado sotaque alagoano. É o único tema que consegue seduzir ainda mais que a “Caravana”, do pernambucano Azevedo. Reparem em como até as flautas em “Alegre Menina” soam como se fossem tambores, guardam eminentemente uma função percussiva. Ou seja, lembram as tradicionais bandas de pífaros.

Porém o tríptico de Azevedo, onde há alguma brincadeira com o tempo, também resguarda seu lote de charme. O arranjo orquestral por exemplo ou o solo de sax insinuando pentatonicamente algum sobretom fatalista e moçárabe – especialmente ao longo da enfeitiçante “Talismã” – que, de outro modo, começa já no refrão, com sua iteração hipnótica: “Diana, me dê um talismã, um talismã”. E, então: “Viajar, /Você já pensou em ir mais eu, viajar?”

Essse “ir mais eu” por “comigo” é da fala popular do Nordeste agrário que ora tende ao desaparecimento. Porém ainda se escuta em lugarejos remotos, nos subúrbios pobres das metrópoles. E é belo, quando dito espontaneamente, sem mediação do clichê televisivo.  E tão bem disposto o arranjo de cordas, e, em especial, o coro de sabor africano sobre um fundo de ciranda portuguesa, propondo a transição de “Caravana” à “Talismã”, que até se pode perdoar nem tanto a falta de jeito do guitarrista, mas a escolha do timbre -- e como são facilmente reconhecíveis, datados esses timbres de guitarra elétrica dos 70 a meados dos 80.

A transição é mediada por um coro que lembra um pouco o que Milton Nascimento plasmou das congadas de Minas Gerais aplicadas sobre harmonias estranhíssimas. E, então, depois de todas as reiterações e da ingente nostalgia de “Talismã”, chega-se ao terceiro movimento. “Barcarola do São Franciso” é o finale, uma escala simples descendo para os graves. Há nela um lamento indígena e uma leve insinuação de ritmos caribenhos. De resto, sugere um Rio São Francisco próximo à foz, porque tudo é tão litorâneo nesse trio de canções quanto os poemas de Joaquim Cardozo.

Canções como essas passam o recibo de o quanto algumas produções televisivas brasileiras na década de 70 possuíam uma trilha sonora à prova de qualquer suspeita. Os de língua não portuguesa podem, pelo exotismo, até apreciar mais A Escrava Isaura. Nós sabemos que Gabriela era muito melhor. E não menos por sua trilha sonora.

Há especialmente em “Alegre Menina” o conceito que os músicos brasileiros chamam de “pau-e-corda”. Ou seja, canções em que o violão reverbera algo da protagônica percussividade de tambores, caixas, berimbaus, pandeiros, recos-recos, caxixis, ganzás, triângulos, bel-trios, paus-de-chuva e, a despeito de um tremendo suíngue, com frequência, executa harmonias intrincadíssimas. Ou seja, é um violão que flerta em justa medida com a inexaurível polirritmia da música brasileira. Uma alusão e uma tradução da miscigenação que por aqui se deu e se dá: muito mais profunda e historicamente consolidada que em qualquer outro ponto das Américas. Essa música é um derivado dessa miscigenação – queira ou não o “politicamente correto” ou as teorias da Ford Foundation.

Gilberto Freyre, aliás, disse coisas mais originais e criativas do que o “politicamente correto”, do que a Ford Foundation. Ou mesmo do que sociólogos mais recentes, como o português Boaventura de Souza Santos.

Trazia na pele o bronze do sol do Nordeste quando ouvi essas canções pela segunda vez. Elas sumariam minha primeira viagem longa pela região. As imensas dunas dos Lençóis Maranhenses. O Delta do Parnaíba. As barras do Timonha e do Camocim. A mítica paisagem de Jericoacoara e depois. Canoa Quebrada. As salitrosas costas do Rio Grande do Norte e a verdura da Zona da Mata adensando-se na Paraíba. Os rios -- Persinunga, Pirapema, Sirinhaém -- e canaviais de Pernambuco. Olinda, sempre. Os coqueirais do norte de Alagoas. Os mangues de Sergipe. São Cristóvão. As ladeiras da Bahia, e a atmosfera africana pairando sobre elas.

Entraram por um ouvido. Jamais saíram. Escuto essas canções de muito em raro. Para não perder o sabor da surpresa. Para não "gastá-las". Hoje bem compreendo que as ouvia por instinto, e por isso menos sábio sigo.

Para quem desejar conhecê-las (ou relembrá-las):





Nota – como sugestão escute ao menos uma vez de olhos fechados para perceber a música em cada uma delas sem a impedância que a imagem causa. E de preferência de fones de ouvido – que é quando se escuta música, de fato. Em "Alegre Menina" repare em seus cinco pontos cardeais: o violão de Dori Caymmi, a flauta, as percussões, a voz de Djavan e uma linha de baixo que amarra toda a conversa. Na suíte “Caravana – Talismã – Barcarola...” vale a pena atentar para o como é bem tramada a transição de um para outro tema. De início, com um coro de vozes africanas, depois com esse flébil solo de sax no arremate de uma boa orquestração.


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Que cria sua própria duração: Le Clézio

Nicolas de Staël, década de 50


O duplo olhar


C'est regard des autres est en partie a l'origine du regard qu'on porte sur soi-même. […] Le regard de l'autre est devenu regard de soi. […] C'est cette action se retournant sur elle même, ce état de schizophrénie partielle, qui constitue la première étape vers la lucidité. La conscience de soi reste sociale pour une bonne parte; mais elle est aussi une accomplissement de soi. On est spectacle pour soi, comme on est spectacle pour les autre. Comme tout acte, l'acte de pensée n'est effectué vraiment qu'a partir de l'instant où il est devenu exact. C'est-à-dire a partir de l'instant ou il est senti comme acte créant sa durée. Il n'y a point de pensée. De même qu'il n' y a point de paroles, point de gestes qui ne soient comme tels. […] Etre, ce être soi par l'autre. Ce être doublement.

[J.M.G. Le Clèzio, L'extase matérielle]

[Esse olhar dos outros está na origem do olhar que temos sobre nós mesmos. […] O olhar do outro se torna um olhar de si. […] É essa ação revirando-se sobre si mesma, esse estado parcial de esquizofrenia, que constitui a primeira etapa até a lucidez. A consciência de si resta social em boa medida, mas ela é também uma conquista pessoal. Nós a representamos para si, como nós a representamos para os outros. Como todo ato, o ato de pensar não se efetiva verdadeiramente senão no momento em que se torna exato. Quer dizer, a partir do instante em que ele é pressentido como ato que cria sua duração. Não há um apoio para o pensar. Assim como não há um apoio para as palavras, apoio de gestos que são como são. […] Ser é ser-se através dos outros. É ser duplamente.]


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domingo, 29 de maio de 2011

Graças a Messi & Cia.

The Goalkeeper, 1930s (colour litho) / National Football Museum, Preston, UK



Barcelona. Ainda bem.

Está provado, graças a Messi & Cia., que um futebol vistoso também pode ser efetivo.

Houve no Brasil, desde Rubens Minelli, uma sorte de gauchização do futebol. E não na linha do esplêndido Internacional bicampeão brasileiro nos anos 70, mas no jogo físico, na fisicalidade. Conta-se que Minelli estendia um fio de 1,75 m. E dizia:

–Quem passar por baixo não joga no meu time.

Messi não jogaria.

Depois de Minelli, tivemos a proeminência dos treinadores gaúchos. E da filosofia de jogo mais pragmática, do ganhar jogando feio, do escalar uma penca de volantes brucutus, que foi absorvida entre outros pelo paulista Muricy Ramalho. Há pencas de treinadores gaúchos por aí. Nos grandes clubes. Na seleção das últimas duas décadas: Falcão, Scolari, Dunga. Mano Menezes, o atual treinador da seleção, é, por sinal, gaúcho.


Está claro para qualquer fã de futebol que lamentou a derrota daquele Brasil de 82' que o Barcelona de agora parece redimi-lo. Parece ser o oposto do mesquinho futebol resultadista que se tem praticado no Brasil desde então.  


E vão-se trinta anos.



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Esse abstrato "você" que povoa o Brasil

O alemão Michael Arndtn, dispondo de algum tempo livre, fez um protótipo de F-1 com palitos de fósforo.


Uma leve assimetria (tão veloz quanto a F-1)

Parece que há uma leve assimetria, uma extraordinária modéstia quando, hoje, na narração do Grande Prêmio de Mônaco, de repente, Galvão Bueno diz:

–Que fique muito claro, Burti e você no Brasil Inteiro.

Há algo de poético nesta frase. Como alguns milhões e eu não somos Burti, presumimos que fazemos parte desse abstrato “você” que povoa o Brasil inteiro. O Brasil que deve comportar dezenas de milhares de Mônacos. Então seria como se numa luneta invertida, Galvão obtivesse em resposta:

–Sim, tudo está muito claro, Burti e você por esse Mônaco de meu Deus.


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Decisões na era da 'indecibilidade'

Pedro Lopes, Volpi, 2009

Intrepidez ou o Coração como Filme B
Da importância de tomar decisões

É, e no fim há uma liberdade. Aquela que se morre de medo de implicar em decisões. E aquela pela qual se morre. Porque se tem o arbítrio de tomá-las. E a tomada demanda bem mais que um capricho ou uma volubilidade – estas sim, coisas mais de espíritos mimados, de chatos da vez. E porque também se reconhece que o efeito dessas resoluções é muito mais crônico. Mais político – no bom sentido, no único sentido do termo que vale a pena. É um parti pris. É de tomar partido. E não como se toma sorvete ou ônibus. Porque isso de ônibus e sorvete é quase automático. Há sabores já previamente feitos pela tua seleção natural de sabores e que sabem tão bem às tuas papilas gustativas; e há linhas já previamente determinadas pela engenharia de trânsito de tua cidade, cujos itinerários batem mais ou menos com o da tua casa, do teu trabalho, da tua faculdade, com o do teu mapa no meio do mundo. Há receios, riscos, trizes, temores, porque cada vez mais somos educados para pensar-nos incapazes de tomar decisões, uma vez que tudo é relativo e não se pode tirar conclusões. Então, que outras cabeças sejam pagas – e por vezes, muito bem – para tomar decisões por nós: o deputado, o juiz, o advogado, o psicanalista, o urbanista, o professor, o padre, o curador, o arquiteto, o pai-de-santo, o nutricionista, o médium. E, porém que se fale, aqui e sim, de tomar decisões conscientemente.

Como se reza ou se diz a uma amiga o quanto às vezes a solidão pesa.

Meio como se não tomar isso para si fosse deixar as coisas do coração bater à toa, à revelia; e receber um tratamento de filme B.



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O quanto é possível descomunicar-se com uma 'massa' afere a medida de sanidade de um texto

[s/i/c]


Do(i)s métodos: hiperconcentração-maníaca & minimalismo-barroco


A hiperconcentração-maníaca é outro método de escrita ao qual tenho me entregado. Ou melhor, método de criação. Ele quase se contrapõe ao minimalismo-barroco, porém surgiu de modo completamente distinto. A maníase, vamos chamá-lo assim, surgiu de um método de escrita que tem a ver diretamente com os editores de texto, enquanto o minimalismo-barroco utilizava esses editores de texto como simples meio de transcrição.
Na maníase a escrita começa com muito pouco. E então, por camadas e mais camadas de obsessiva revisão – em geral, feita em voz alta, ao se ler o que vai na tela – segue formando texto que, em si, guarda muito da neurose hiper-referencial do tempo digital. Das tecnologias da informação.
Nesse rumo, a maníase é violentamente mais barroca que o minimalismo. Porque sua ironia, seu humor nasce da profusão das referências e do contrastes entre elas e o que realmente importa: uma experiência mais individualmente vivida, que se pode sentir no âmago, na idiossincrasia de cada um, porque todos somos diferentes. O que realmente importa: alcançar novas formas de auto-conhecer, de reconhecer a esterilidade e vastidão solipsista em que cada um de nós encontra-se imerso, nutrir uma compassividade que ameaça desaparecer da face dos dias convertida como está sendo em idolatria pelo dinheiro, o corpo, o prazer e, sobretudo, o poder.
A maníase é o minimalismo-barroco afetado pela informação. Mas “humanizando” essa informação mediante sua transformação em gesta, piada, anedota, paródia, crônica ancilar; mas também em algo muito mais cheio de membranas, tendões e nervuras.
Talvez seja difícil fugir dela. O conceito me ocorreu quase espontaneamente depois de reparar o quanto meu método de compor um texto havia se modificado radicalmente. Em especial, na última década. E foi na última década que, em vez de compor, com lápis e papel, me lancei a escrever diretamente nos editores de texto.
Quer dizer, as possibilidades de manipulação do texto tornaram-se, então, tão devastadoramente mais amplas, que a maníase, ao incorpoarar apenas uma ínfima parte dessas possibilidades e alternativas – ainda que revelando isso em frustração e resentimento paródico: o que ela se apropria é apenas um insignificante porção das possibilidades de manipulação de textos, que só se darão à vista com mais nitidez (se é que, aqui, se pode empregar a palavra nitidez) nos próximos anos -- sabe que é, em si, extremamente parcial e descartável.
É desso jogo com a sua própria desimportância inicial e descartabilidade que se nutre a maníase.
Foi um pouco para apontar algumas amostras dessa nova possibilidade de escritura, centrada não no bloco inicial de texto, do qual se sai desbastando o não essencial; mas, do contrário, no princípio, propondo um bloco ínfimo de texto que segue sendo enxertado por referências e associações (embora não tão fortuitas ou aletórias como no surrealismo), que foi escrita em predominância a prosa postada, por aqui, neste maio. E em especial alguns relatos: "Veja se agora você descobre outras coisas", "O Presente". "O Equilibrista", "Adoro quando a Mariana fala"; todo o ciclo em torno dos '17 relatos começados com pronomes definidos' e, ainda depois deles, coisas como "A Certidão", "Toda uma História", "A Glosa", "Um Sergipe do Espírito" entre tantos outros. Os mais recentes tendo sido: "A Sonhadora", "O Engenheiro", "Colágeno" e "Duas Vinhetas para um Fim de Tarde". Alguns (poucos) deles, inclusive, não se encontram, aqui, mas no blog coletivo português É tudo gente morta.
Essa profusão de relatos ficcionais em prosa baixou como um surto neste maio e afugentou alguns leitores. Ou assustou outros tantos, pela garrulice. Melhor assim. Ela é um experimento. Está mais interessada em ser experimento, do que acomodar-se a gostos já constituídos. Ou render-se aos assuntos. Opta, nessa via, por pelo menos destacar que o modo de contar empata com o contado. E, ao que tudo indica, havia uma necrose quanto a isso por aqui. Daí que, como não tenho qualquer compromisso com o tempo do mercado, se haja passado os quatro primeiros meses do ano praticamente sem postagens. À exceção de uma realmente importante e que é dedicada a Francisco Carvalho, em provocação. Porque quase todos os escritores cearenses que eu conheço (de uma geração mais velha, da minha geração -- ou seja aí chegando aos cinquenta nos próximos anos -- ou da turma mais nova) fala mal de Francisco Carvalho. E a maioria sem o haver lido. E, convenhamos, Carvalho é um poeta um bocado interessante de ler. Muito mais interessante que os que falam mal dele, diga-se de passagem. E chegamos ao ponto.
Desde que admiti que jamais entro na internet para “fazer amigos”, porque não creio – salvo em situações especiais – que há algo como “amigos virtuais”, ou uma “afetividade virtual”, meu interesse vai mais pelas possibilidades de descomunicação. Ou o quanto é possível, através de uma guerra de guerrilhas, descomunicar-se com uma “massa”. Ou seja, entrar num grau de contato outro. Inteiramente diverso do normativo. Desnormativo. Do que está proposto pela maioria dos meios de que lançamos mão para nos comunicar “em massa”.
No fundo, como sempre, a maníase – como antes dela o minimalismo-barroco – será em breve uma abandonada e frustrada tentativa de encontrar o impossível: uma individualidade do outro lado do largo e intransponível mar oceano não pacífico que são esses processos contemporâneos de contato via TI. E de diversas formas, porque a gravação digital e a edição não-linear de filmes são o equivalentes no campo do cinema ao que os editores de textos ou as publicações eletrônicas são para a literatura. Quer se queira, quer não, a forma é ditada por eles, pelo modo de sua tecnologia, enquanto somos e seremos cada vez mais apenas "massa de modelar", objetos na mão desses sujeitos digitais que são esses novos aportes da tecnologia da informação. Qualquer forma de "dialogismo" proposta pelas TI's é também uma forma falsa. Porque ninguém dialoga essencialmente para ser notado por outras pessoas que não as que estão envolvidas diretamente. Atadas pela fala.
E o espaço virtual, o que é, senão a casa do Big Brother decomposta para comportar fragmentos mínimos de exposição de uma suposta individualidade em público? Uma individualidade devidamente filtrada pelo 'personalidadismo' de nossos dias. Ou seja, em que todos querem afirmar suas próprias personalidades por meio do consumo que fazem de bens e produtos? E, aqui, tanto faz se uma sopa desidratada ou a obra de um cineasta de vanguarda.
Conversas assim são chatas. Prometo não me estender demais.
Agora, algo que me deixou de cabelo em pé foi o de perceber o quanto esse método de composição por revisão maníaca, agregando paródias e referências de uma pré-mídia, já era algo mais ou menos consolidado por escritores como David Foster Wallace ou Zadie Smith, para ficar só com dois exemplos ilustres. E não de uma forma torpe ou farsesca. Como se deu lá fora com o Mont Python, e, aqui, com A Turma do Casseta & Planeta, seus devidos epígonos. 
O termo guarda-chuva que tenta dar conta dos esforços desses autores, que lançam mão da ironia, dos acrônimos, das referências cruzadas em leituras outras, etc. se denomina em inglês: realismo histérico [hysterical realism].
E, passando para outros campos da criação, fica muito claro, hoje, que um filme como Vilas Volantes, em sua limpidez quase ática, vem em linha reta do minimalismo-barroco; enquanto Encruzilhada Aprazível é filho dileto da maníase ou do realismo histérico. Quer dizer, a partir de um texto mínimo, cultiva uma série de subtextos em torno, que ecoam a “mediocridade”, a “mesquinhez”, desse texto inicial. Aliás, faz isso com uma consciência e senso de ritmo bastante curtido, equilibrado. Para diferenciá-lo de filmes que, a meu ver, são muito mais amorfos, como Sábado à Noite.
Fred Benevides uma vez me disse que estava seguindo para estudar em sua pós-graduação o como as implicações afetivas – as teias de amizade e o conviver entre amigos – praticamente ditavam as formas de produção gestadas em um determinado local. Nunca lhe disse, mas vou dizer agora: sempre achei mais proveitoso o contrário. O ensaio que consiga analisar as formas ao largo dos afetos mais íntimos. E simplesmente porque essas formas são suprapessoais.
As formas, ao contrário dos afetos mais imediatos e especiosamente urgentes, ficam. Há pessoas que convivem com a gente muito intimamente. Mas que só vão chegar a nos entender minimamente muitos e muitos anos depois. Faz parte.
O fato de as formas serem suprapessoais, no entanto, não quer dizer que não sejam profundamente engajadas e políticas.
A misantropia, quando bem empregada (como por Herberto Helder, talvez o mais alto poeta vivo da língua) é uma forma política.


Em suma, o quanto é possível descomunicar-se com uma 'massa' afere a medida de sanidade de um texto. Porque o texto não visa conveniar-se com a massa --- essa abstração das teorias da comunicação tornada leviatã vivo e resfolegante pelos doutos em marketing. O que o texto visa, no fim, é outro ser humano que pode eventualmente ser encontrado na probabilidade de se visar um exoplaneta habitável --- em que há oceanos, nuvens chuvas --- a 20 anos-luz da Terra.



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Tudo é mistério, e se explica

Alfredo Volpi


Miúdo exercício de equilibrismo

Corre o ano de meia oito. Talvez seja meia nove. Difícil precisar o tempo quando só se tem cinco ou seis giros da Terra em torno do Sol. Esse tempo não se presta à impertinência dos inquisidores. Dos relógios. Dos bedeis. Dos compiladores de artigos acadêmicos. E o mundo pegando fogo. Se purifica. Revoluções mais violentas que as da Terra em torno do Sol explodem planeta afora. Vero atesto do que Hegel chama de Geist: o espírito do tempo? Eu não me importo. Passo ao largo delas. E bem. Meu tempo, sem ser ouro nem dinheiro, é outro. Muito mais preciso, não no sentido numerário, mas no outro sentido. No sentido que a maioria, os desavisados, os que sempre chegam depois, porque não foram os últimos, os “espertos”, colhem de “preciso” na fórmula famosa: “navegar é preciso, viver...”. As revoluções que ao meu tempo se dão são pessoais, intransferíveis. Tenho minha própria utopia. Meu ritmo. Jogo bola. Ando de bicicleta. Tomo banho de mar. Conheço o regime das marés. Vejo westerns. Ouço histórias -- as pessoas sabem contar. Rezo antes de dormir. E durmo fácil. Moro em Camocim. Nas férias, viajo de trem para Fortaleza.

O tempo é demarcado com aconchego, precisão. Datas importantes. Liminares. Recomeços. Marcos balizando espirais: Natal, Carnaval, Sete de Setembro, alguns aniversários e, claro, as festas juninas. A capital dos festejos juninos é o dia 24. O São João talvez concentre mais fogueiras, balões, bandeirolas, fogos e potes de aluá que as outras duas datas reunidas. É uma comoção mais renitente em toda cidade. Há rastros de São João por toda parte. Não é algo para calendários turísticos – à época, quem pensa nisso – mas uma estranha vibração que vem de dentro, que está entranhada nas pessoas como as secreções ou sentimentos. Então há essa epidemia, essa epicidade do São João. Sua epifania. Suas luzes profusas. Embora os devotos de Santo Antônio sejam mais inflamados. Como torcedores de times pequenos. Meu avô paterno é um deles. Assim, o dia 13 tem endereço certo. E um belo fogo amarelo e azul brule, ano após ano, com renovada intensidade, em frente ao alpendre da casa de meu avô. E os fogos que se queimam em torno daquele fogo são mais fantásticos que qualquer software. Ele é o meu “de todos os fogo o fogo”. E segue para o sul numa auto-estrada sem fim, a sonhar com o norte. Com o norte que nós só temos. Até o ponto futuro em que a ninguém seja dado envergonhar-se por nascer nessa "terra crescida, plantada/ de muita recordação".

Mas, em 1968, há um motivo especial para desfrutar o São João. E até mesmo preferi-lo ao Santo Antônio. Justo eu, que venho de uma linhagem de "antoninos". Eu, que vejo tias e tias, das enormes famílias da era Vargas, desfiarem simpatias no dia do santo das núpcias. Eu, que tinha cinco anos e estava assoletrando o mundo. Esse motivo tem olhos densos, castanho-claros, belo nariz, cabelos castanho-escuros, presos em fitas, que recortam gentilmente o ar no ritmo dos baiões de Luís Gonzaga: A. Um mistério. Frequentamos a mesma escola. O pré-primário. Só que nessa época, sem tantos prés ou pós, chama-se a isso, genericamente: alfabetização – e como o termo soa melhor, até hoje! O São João será, para a gente, o golpe de sorte dentro de uma contida versão-mirim de amor-cortês.

Há grande atrativo nos lábios de A. Nos entreolhamos, cúmplices, no seguir da quadrilha. Uma certa tensão no passo da troca de pares. Aquele giro parece demasiado longo. Mais longo do que, de fato, é. Uma volta da terra em torno do sol. E, finda a rotação dilatada, estamos juntos outra vez. Restituídos. Há muitas cores, fitas, chapéus. Há sabores de carimã e aluás. Há dinâmicas e timbres que não se ouve todo dia. Mas a mais serena alegria mora na menina dos olhos dela. E por um breve instante, no centro do carrossel humano, aperto-a contra mim. Seguimos juntos. Posso ouvir o rumor de seu pequeno coração. A doce gentileza de seus olhos, em entrega. Os pés deslizando sobre o cimento liso da quadra. Tudo é cor de cinabre. Tudo mistério, e se explica. Fogo amarelo e azul. Posso sentir o contato gentil de seu pequeno rosto, naquela longínqua noite de fogueiras. Ópio e memória. E sequer adivinho que antecipamos e reproduzimos o destino de tantos. Dizem que é possível. Porém só porque há estrelas que, em vez de restarem imóveis, riscam o céu. E assim concedem pedidos. O que seria do mundo sem isso. Riscos e promessas.

Ela muda-se para a capital nas férias de julho. Prossigo habitando aquele braço de mar emoldurado por mangues. Velho Rio das Cruzes. Coreaú. Camucim. E jamais confesso a meu avô da minha preferência pelo São João. Nem mesmo no dia em que, irritadiço, me recuso a lhe tomar a benção. E isso é algo tão grave que, ao chegar em casa, meu pai, que nunca triscava em nenhum de nós, me acerta as pernas com algumas merecidas vergastadas de cipó de azeitoneira preta, que ele colhera no caminho de volta, e viera fleumaticamente desfolhando.

Em todas essas voltas a mais em torno do sol, nunca paro para pensar realmente a sério o que nos leva a contar histórias. E, veja bem, todas elas são com agá. Ficção? Estória? Isso existe? Arrisco dizer que os instantes que vivemos, os de mais intenso gozo ou pesar, nunca são absolutos. Sublimes é como são. Por vezes, meio pensos prum lado. Deliciosamente assimétricos. E contar histórias, como andar de bicicleta: miúdo exercício de equilibrismo.


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sábado, 28 de maio de 2011

Uma grande completude

Aspecto de uma lagoa sazonal e capela na Taíba, 2009 [Acervo Pessoal]


Duas vinhetas para um fim de tarde



α. Cinco da Tarde


Há uma varanda branca suspensa nessa tarde azul e taibana. Uma varanda debruçada sobre canteiros de boas-noites, um abacateiro, um oitizeiro, pés de cajarana, jambo, abacate, graviola. Há todo um pomar, as casas somadas. E de manhã os bicos-de-lacre gostam de passar por ele.
Na parede do quarto, que se abre para a varanda, reproduções de Miró, Klee, Cela, Volpi, que são quase extensões do que segue lá fora; e só por isso estão cá dentro. Na varanda, duas redes balançam seu móvel conforto. E a aragem da tarde sacode as varandas das redes.
É possível vislumbrar o quintal, onde, ao fundo, uma goiabeira reponta na luminosidade lavada de maio. Naturalmente é sábado. Mas um canário-da-terra nada sabe de sábados, e desanda a cantar ainda mais que em dia de semana. Faz contraponto a um concerto grosso de Corelli, que a agulha sulca, dentro do quarto, mesclando à música aqueles ruídos de rugas no acetato que acabam incorporando-se, e são esperados com a mesma previsão por pouco imediata de certas passagens mais caras ao ouvido. Na cozinha os panos de prato estão dependurados, como deve ser. As panelas arejadas. Os pratos limpos. Os talheres ainda pingam no escorredor. Há uma ordem nas coisas. No bico, quase ornitológico do bule, e nos sulcos sobre a chapa da caçarola, no vapor resfolegando à boca da chaleira. Uma toalha de renda branca à mesa posta, onde ao centro um vaso de argila sustenta o solitário cactus.
Se a casa foi feita por muitas mãos, também o foi pelas mãos da mulher que ora está deitada na rede, lá, acima. A casa é uma espécie de casca proposta ao ar e mediada apenas pelos alpendres. Casca proposta a esse ar aberto, com grãos de água de mar e de lagoa em cada mínima partícula.
Porém, a casa, embora pareça, não está suspensa no espaço. Não é uma invenção metafísica. Anjo flutuando no ar. Balão de hidrogênio atado à mesa do bolo de aniversário. Tem endereço, código postal: fica na Taíba e de uma de suas faces mira as altas torres da usina eólica. As hélices movendo. Parando. Seus beirais alargados devotam-na a um para-sol aberto sobre a intempérie dos pântanos, lagos, lagoas, dunas, mar e rio. Rio. O mesmo que só uns poucos quilômetros adiante vai dar no Atlântico, muito domado e modesto, como usam ser os antes impetuosos rios brasileiros, pelo maltrato dos homens: tímido à foz. Assoreado por crescentes bancos (os pescadores dizem “parrachos”) de areia.
A meio-caminho do curso, alguém plantou eucaliptos, casuarinas, no baixio que antecede as dunas. Árvores exóticas. Exóticas no sentido de terem vindo de fora. De muito longe. Outras terras. Outro mar. Da Austrália, da Nova Guiné. Mas os coqueiros também vieram da Malásia, segundo alguns; e nem por isso são menos belos. Ou menos “da terra”. E então todas elas estão em casa. Na varanda, vasos de samambaia equilibram a última necessidade de sombra na tarde que morre.
Há um jasmineiro no jardim da casa vizinha. E um renque de papoulas calcadas contra o muro. Crianças jogam um futebol improvisado, utilizando uma dessas bolas grandes, profusamente coloridas. É agradável o ruído da bola chocando-se contra o chapisco cinza do muro. E suas vozes intensas e absorvidas, exaltando-se:
Passa essa bola, mã'ch!”
Há tanta vivacidade nessas vozes, porque sem se dar conta, eles olham o mundo com a força de sementes ainda não germinadas na menina dos olhos. A garotinha menor, que os observa, vez quando, escanchada nos galhos, quase no olho do jasmineiro, trajando uma miniatura de macacão jeans – e aquela naturalidade de gesto em árvore de criança do interior – não tem muito tempo de pensar em táticas de futebol, porque logo seu olhar é fisgado. Ou pela pipa, de longa cauda e altíssimo curso, que oscila lentamente, como uma indicação meteorológica – faz tempo bom na Taíba; tudo vai bem; há muito areia nas dunas; e muita água no mar; e algumas crianças no futebol sob um céu azul e ouro, sem a mínima véspera de nuvem. Ou pela camioneta que passa na estrada e levanta uma pátina de poeira atrás de si, e que se mancha inteira da oblíqua luz do ocaso. Ou então ela olha para baixo e percebe que, de cima, o mundo é visto sob um prisma tão outro. Tão mais preciso, no veio. Mais assemelhado a esboço que a cor, embora a cor também esteja.
Estou em casa. E assim me sinto. O rio chama-se Siupé. Conheço-o melhor que muito geólogo por aí. Suas águas estão tatuadas em meus braços. E entre olhadelas no jornal e nenhuma necessidade de atender telefonemas, me entrego à lassidão contente deste instante. Abro uma cerveja em lata: preta, cremosa; cujo gosto me transporta para outra latitude, temperos e acentos no ar. Do banheiro me chega esse rumor de água vertendo-se para os azulejos depois de amortecido pelo corpo curvilíneo de minha mulher. Posso entrevê-la. O triângulo negro em seu centro. Os seus tendões, nervuras. A sossegada graça de seu mover-se. E grossas nódoas de xampu atingem o piso em úmidas pancadas.
São cinco horas e um quarto.


β. A Noite Completa


Há uma grande placidez nessa tarde que fecha. Uma preguiça fundamental que alastra-se pelas paredes caiadas, antenas parabólicas, telhados vermelhos e o céu acobaltando. Bem-vinda arte de ficar em casa. De acender o fogo para um café. Apreciar, na chama, seus amarelos e azuis. Tirar um ré no violão. E ficar brincando de alternar os baixos.
Que esses amarelos e azuis de ultramar foram captados misticamente por Veemer, todo mundo sabe. E o aroma do café encorpa também por isso. Cada mês tem um cheiro. Porque sabe, à sua vez, dessa exaltação, cerca de espinozista, que mundo é. E bonito demais. Como o aroma do café que se acabou de coar, forte e cheio de cheiros. Depois subir à varanda, e servi-lo. Há algo mais digno que servir nesta vida? Se servir vem do coração mais do que de uma tirania ou capricho?
A rede move brandamente. É a única forma não imóvel neste momento de suspensão. Um friso antepôs-se a tudo. E é como se o tempo estivesse preso por um grampo ou clipe. Como se tudo fosse a blusa branca dela, posta sob o pegador no varal. E que, agora, nesse solene instante sem brisa, nesse instante em que a cortina de um dia de veraneio fecha-se para a limpidez de uma noite com muitas algas e águas ao redor, algo de sol ainda toca coisas. Um resto. Uma inércia. E põe reflexos rubros nos muros caiados; e então o rápido crepúsculo de maio finda nas luzes acesas no topo das torres da usina eólica. Estrelas. 
Ao longe, os fachos de luz sobressaindo-se do interior das casas propõe algo de remoto, visceral aconchego. Alguns derramam-se sobre as lagoas e parecem despertar o coaxar monótono dos sapos. 
Excessivamente lerdo para escrever cartas. Não movo um só lance de xadrez da sintaxe. Nem mesmo em favor das pretas – uma simpatia que vem da infância, e responde por metade das estratégias em um jogo assim, como é de domínio público. As coisas vão tão estacadas na perspectiva dessa varanda. No alvedrio da pausa de brisas e no travo aromático do café. Há um extenso ético na paisagem. Tudo, até a pequena capela rural, ainda em construção, branca e um pouco acachapada parece dizer, em salmo: “Prove e veja que...”
E provo. E vejo. E que.
Vejo o manguezal, e o jardim vizinho, vazio de futebol. Sob o pé de jambo, o tapete púrpura. Lá, ao longe, ondas que não se cansam nunca de rebentar e refluir sobre a arenosa praia.
Pela porta, dentro da casca, no bolso da noitinha, vejo a mesa, na penumbra do quarto, perto do miúdo cactus, onde há já uma luminária acesa, uma leitora sob ela, além de espalhadas em espaçada, graciosa desordenada ordem: palavras cruzadas, revistas em quadrinhos, velhos exemplares do Asterix, anuários de fotografia, livros de Bioy-Casares com diferentes marcações de leitura, o croqui de uma mulher deitada, cartas que de longe vieram com belos selos coloridos e variados carimbos sobrepostos. Coisas se acumulam. A felicidade é o contrário disso. É essa desacumulação de tudo, mesmo ao crepúsculo, pois tão melhor surte à luz, inaugural de um amanhecer. Mas coisas se acumulam, eu dizia. Tenho meu próprio ritmo de resolvê-las. E hoje não quero pôr olho em papel.
Abençoada seja esta noite em que não preciso de meus óculos de presbiope. Em que não preciso ler outra coisa senão o mundo. E, por breves lapsos, nem isso. Sono. Há uma grande completude em minha vida.
Agora não existe saudade. Ou então, a ansiedade de que coisas se resolvam. Tudo apaziguou-se. Os amigos que já não estão comigo, estão comigo. Outros lugares a conhecer. Há tempo. Vários sotaques, com certeza. E a beleza das diferenças. Talvez não mais saia de casa hoje à noite. Pelo menos não sem antes tomar uns tragos a mais dessa cerveja preta e cremosa. Mas do que adianta falar sobre o que se planeja. Não é muito proveito. Nada há de perfeitamente simétrico, de verdadeiramente analisável no futuro, para além de uma boa temperança que brota do coração. Uma experiência indizível que, ao fim, dá em coisas boas, em coisas ruins, em coisas mais ou menos; em coisas boas, em coisas ruins, em coisas mais ou menos boas; em coisas. E as pétalas à volta do estame parecem firmes não ter fins.
Ora me basta esta varanda taibana e nenhum silogismo. Há um sumo favor de silêncio provindo do lago, formado pelas águas de muitas chuvas, que tecem veios, que ressuscitam nascentes, que se ajuntam por pequenos fiapos de água, caminhos de rato úmidos, até irem fechando a teia, o tecido, o pano de água, ao longo dos meses. E suscitando essas belas lagoas sazonais que brotam da terra para secarem no estio, de julho a dezembro. É perto delas que os gaviões da praia nidificam. E sobrevoam suas margens, demarcando território com guinchos audazes.
E há essa suspeição que acabei de morar em uns versos de hai-kai. Acho que não se escreve mais assim. Porque neles há demasiado consórcio com paisagem. Deve soar tão simples. Como a lógica líquida e certa das intuições e formas de sentir que só crianças. O olhar delas não teme paisagens, em certo sentido. E é esse destemor uma das coisas que o mundo adulto mais teme, mais sente pavor quando examinado à lupa. Porque as crianças o desmontam. O deixam completamente desarmado. Quem, em seu ciúme, dor, constrangimento, solidão, desamor, frustração, ódio, pode, no fundo, desejar mal a alguém?
Sol-posto.
Esta rede de fibra branca, pristina, que acolhe a pele como uma carícia, um cafuné de corpo inteiro, é o que me faz digredir. E já nem sei se essa brisa vem de sueste. Ela move as varandas. E às vezes quer morar nelas. Mas são apenas brisas. Passam. Ou no vaso, perto da luminária abaixo da qual a atenta leitora acabou de passar a página; compensam-se um pouco nos ramos da samambaia-cabelo-de-moça, mexendo folhas miúdas, plenas de uma cerrada, misteriosa simetria.
Hoje é lua nova.
Há uma grande completude em minha vida.


* * *

Que só se guarda para quem de direito

 Aspecto da Praça Tiradentes em Ouro Preto [Eduardo Tropia]


Vila Rica


A chuva transia a serra de uma friagem agradável. A. pôs a tiracolo a pequena sacola jeans, com sua câmera fotográfica. E desceu do ônibus, sob o pulôver vermelho e preto, o short cáqui. Troquei os tíquetes de bagagem. Apanhei as mochilas de náilon. E com um aceno dispensei o auxílio do carregador.
O táxi desceu a colina, tomou à direita, pela Padre Rolim, os faróis roçando as muretas de pedra, onde numa espécie de nicho, está a pequena Igreja das Mercês de Cima. Cartão de visita inicial que parece te dizer: “ei, amigo, um tal de Aleijadinho andou esculpindo formas e riscando umas plantas por aqui. Veja se você acha alguma graça nelas”.
Eu seguia fumando no banco da frente, tentando mediar entre o diálogo com o motorista e o impacto do contato inicial com a cidade. Ela prosseguia calada. Discutíramos forte, aos sussurros – por sermos de discreta temperança – durante o quarto final da viagem. Motivos: aparentemente trívias; mas que deviam envolver uma polpa bem mais densa do que, então, nos era dado supor.
Cruzamos a Praça Tiradentes, onde, em torno do monumento, ao centro, cachos de pessoas conversavam sob guardas-chuvas. Abaixo dos beirais de cachorro e das rótulas das janelas, pendia uma infinidade de placas. E passantes metidos em capas chapinhavam sobre as poças d’água em busca das estreitas calçadas.
Na pousada, tomamos banho, jantamos, assistimos telejornal. Depois descemos para um passeio rápido sob a chuva rala. Um negro alto, robusto, meia-idade, envergando um boné de feltro, apregoava confeitos e recitava redondilhas:
Ouro Preto é o berço
Desta nação brasileira...”
O rosto dela crispado. Quando retornamos ao hotel:
Amanhã”, ela disse, quando a procurei. Quando a toquei mais íntimo, com toda a devoção daquele toque que só se guarda para quem é de direito quando se tem vinte e poucos anos. E, então, ela deslizou irritada e hesitante para as cobertas: “Tenho minhas razões.”
O quarto era pequeno, um pouco improvisado, despido. No primeiro andar de um velho sobrado em que alguém deve ter conspirado a independência do Brasil. Mal cabia a cama de casal, e abria-se por meio de uma sacada para a praça. Havia uma luminária em forma de rosa no forro de madeira. Mesmo os lugares mais charmosos pagam seu tributo ao kitsch. E é quando o kitsch acrescenta um contraponto agradável.
Desci uma segunda vez. Contrariado.
Tomei ladeira abaixo a Conselheiro Quintiliano como quem vai para a outra cidade, ao alcance do trem – aquela que, apesar de menor, é a sede do bispado. Coração batendo forte. Sentindo o latejamento das têmporas em fluxos de sonhos não digeridos. Tudo em volta era cartão-postal: Ouro Preto lá embaixo, luzindo vinte ou mais igrejas que nem vi direito. Andei pra mais de dois quilômetros.
Depois rezei. Fumei. Calmei.
Qual razão dessa paranoia descomunal que nos cerca à altura dos vinte. Dói muito mais do que se traduz, rapaz. E é muito mais prazerosa que o dizível. Ainda que nos fosse dado descrever em um in-fólio de incontáveis volumes passíveis de renovação ano após ano. E especialmente naquele tempo, em que uma caminhada dessas – cheia de drama e desejo – jamais, jamais poderia ser alterada por um toque de telemóvel.
Àquela hora, ponderei: ela devia estar dormindo. E eu ainda não havia esquecido o quanto ela estava bela ao entrar no táxi. Sua pele úmida, gelada, que beijei. As faces brancas, quase rubras devido à friagem serrana. entreabrindo a porta do táxi e acomodando-se no banco, sem nunca perder nesse ínterim a peculiar elegância de sua figura longilínea. Havia tanta intimidade que se estava cerca de prever quando o outro ia piscar os olhos. Essas intensidades inaugurais que a gente finge reencontrar depois. Mas, no íntimo bem sabe: não é a mesma coisa. Não é mesmo a mesma coisa.
De volta, a temperatura caíra. E minhas mãos tremiam ao revolver a chave na porta do quarto. Despi-me como num acesso de malária, e colei-me ao corpo dela. Abraçando suave suas costas. Beijando-lhe o dorso do pescoço, os ombros. Toda a sacrossanta nudez de seus dezenove anos.
Um murmúrio de falsos protestos empestou o quarto. Pelas venezianas réstias de luz drapejavam as paredes. A dialética do estar junto nunca mais seria a mesma, depois daquela viagem a Minas. Fora um rito. Uma viragem. E certas intrigas, mesmo quando aparentemente contornadas, tornam-se algo mais que acidentes de percurso.
Na manhã seguinte, quando abri a janela, Tiradentes permanecia impassível no alto da coluna. E a chuva que se fora, levara junto o lundu da gente. Após o café, quando fomos à feira, as faxineiras do pequeno hotel, que por acaso também se encontravam por lá, quase nos seguiam. E nos entrolhavam com indisfarçada inveja, sussurros, reprimidos risinhos.
Uma jardineira azul cruzou a praça.
Tudo seria diferente.

* * *

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Se tudo passa, até uva

Tancredi Parmeggiani, Composition, 1955

Silogismo

se tudo passa, até uva
melhor é partir o pão
nem que fruta
se o passarinho bicou
o figo da figueira
e o dia apertou a fome
na subida da ladeira
se o apressado come cru
a noite é boa conselheira –

se conselho fosse remédio
simpatia, sinecura
genérico, dado de graça
nos postos da prefeitura
pr'aquela dor de corno
que parece não ter cura
se os sábios fossem ricos
e falassem sem frescura
e os ricos deslizassem
pelo olho da que fura
e se, na metamorfose
que a má hora acupuntura
por a mais b for provado
sem baixar de viatura
que kafka e raul bem que
empatam na loucura
então, quem merece
morar na rua da amargura?


* * *