quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um você ainda mais urgente

Cecilia Beaux, Le derniers jours d'enfance, 1885

Pelo modo como as mulheres enchem a boca ou não para dizer “você” é possível saber se estão apaixonadas. E o quanto. Tem algo desse tumulto – só que mais desesperado – na voz dos meninos: 

Você, Você (Uma canção edipiana)

Que roupa você veste, que anéis?
Por quem você se troca?
Que bicho feroz são seus cabelos,
Que à noite você solta?
De que é que você brinca?
Que horas você volta?

Seu beijo nos meus olhos, seus pés
Que o chão sequer não tocam,
A seda a roçar no quarto escuro
E a réstia sob a porta.
Onde é que você some?
Que horas você volta?

Quem é essa voz?
Que assombração
Seu corpo carrega?
Terá um capuz?
Será o ladrão?
Que horas você chega?

Me sopre novamente as canções
Com que você me engana.
Que blusa você, com o seu cheiro,
Deixou na minha cama?
Você quando não dorme,
Quem é que você chama?

Pra quem você tem olhos azuis
E com as manhãs remoça
E à noite, pra quem
Você é uma luz
Debaixo da porta?
No sonho de quem
Você vai e vem
Com os cabelos
Que você solta?
Que horas, me diga que horas, me diga
Que horas você volta?

Letra de Chico Buarque (para um tema de Guinga)

O modo como o amante da mãe é um monstro, Bicho-Papão que assombra a vida do menino, percorre toda a letra. Nesse estado de neurótica desconfiança, inquisição e ciúme, o menino não pode esquivar-se de estar mergulhado. Como esteve antes, no líquido amniótico. Ou de seguir perguntando. Compulsão. Antecipado interrogatório. E, pior, não há como competir. E há mesmo o ponto em que o autor não quis ser explícito, embora esteja lá: "quem é que você (ch)ama?" ("Eu ou o Lobo Mau?" bem podia ser a continuação da pergunta). E esse não tocar os pés no chão que está presente também nas impossibilidades de "Beatriz". A dolência do ritmo, as dissonâncias, a intrincada harmonia (marca registrada de Guinga) emprestam a essa anti-canção de ninar a feição daqueles “clássicos discretos”, como "Valsa Brasileira" (com Edu Lobo), “Trocando em Miúdos” (com Francis Hime), "Todo Sentimento" (com Cristóvão Bastos), "Cadê Você" (com João Donato); e, dele próprio, "Basta um Dia" ou "Futuros Amantes". O mais são rimas toantes (aprendidas com Cabral?) e destreza com palavras. 

Para uma versão com a cantora portuguesa Bruna Pintus:

Para a interpretação (ao vivo) do próprio Chico Buarque, antecedida pela explicação sobre a obsessão do neto, Francisco, pela mãe/filha:


2 comentários:

  1. Será poque o amor é uma fome, que enchemos a boca pra dizer você e nunca nos quedamos saciados?

    adorei o post, tenho grande admiração pelos clássicos discretos - como você tão bem os nomeou e um xodó especial pelas composições da parceria Edu Lobo/Chico Buarque (choro bandido, com todas suas referências à música como discurso de sedução é brilhante).

    Você conhece esse blog? http://tuliovillaca.wordpress.com/

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  2. saciação, fome, mistério. o sei-la-o-quê mais completo. doido é quem define

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