sábado, 1 de dezembro de 2012

O que do Rei não perdeu a majestade


A Via Anchieta (São Paulo-Santos), em 1969, ano da composição de "As Curvas da Estrada de Santos" e da inauguração dessa estrada, que, ao que tudo indica, não é a da canção.

Há os que dizem, no entanto, que a estrada da canção é, na verdade, a chamada Estrada Velha de Santos (foto), já desativada, e que também corta a Serra do Mar entre São Paulo e Santos.

A Rio-Santos (BR-101, que depois emenda com a SP-55), cortando uma das mais belas paisagens litorâneas do país, parece ser a estrada de "As Curvas da Estrada de Santos". Ela passa por locais paradisíacos como Angra dos Reis, Paraty, São Sebastião e Ilhabela. E o que não escasseiam são curvas. Dirigi por essa estrada  em duas ocasiões. Na primeira delas,  em 1997. Inclusive ouvindo "As Curvas da Estrada de Santos", num determinado momento. 

Lembro que a primeira vez que fui ao Rio o clima estava ameno, com ares de inverninho, embora já fosse outubro. Chovia quase todo dia. E o dia todo. E, pela noite, as minas do Leblon iam para os barzinhos de gola roulé: 14ºC na Cidade Maravilhosa. No mínimo era algo mediterrâneo, mas parecia até mais. Quer dizer, até menos no termômetro. Era o cúmulo. Eu saíra de São Paulo com o desejo febril de pegar uma praia, e levara um calção de banho na mochila. Sem chance. Inútil paisagem.
O Cristo permanecia encoberto, lá em riba, por brumas que, com certeza, eram mais espessas que as de Avalon. O Centro antigo da cidade revelou-se uma maravilha. E entrar em certos locais - a Leonardo da Vinci, a Colombo, o Gabinete Português - um sonho. E os serviços, em geral, um pouco mais bagunçados que em São Paulo. E, no entanto, parecia que definitivamente a gente estava mais no Brasil. Desde que o samba é samba, etc. 
Especialmente na Lapa, à noite, num boteco contemplando os arcos. E imaginando ao tomar umas e outras, as outras mesas ocupadas também por quem já as haviam ocupado: Manuel Bandeira, Jaime Ovalle, Sérgio Buarque, Noel Rosa, Mário Lago ou Madame Satã. Havia grupos de chorinho no Carioca da Gema. E num tempo em que era impossível manter-se sóbrio por mais de oito horas.
No Bairro Peixoto, ali entre Copacabana e a montanha, onde me arranchei, todo mundo parecia morar em prédios de apartamento. Havia padarias, praças com playgrounds, babás de avental, crianças, totós, lulus e uma sossegada ambiência de bairro, além de belas garotas debaixo de pulôveres e cardigãs, voltando da faculdade. Por conta disso, dessa onda de frio temporã, o meu Rio de Janeiro, para todos os efeitos e até hoje, ficou sendo uma cidade “temperada”. Uma cidade à beira das ondas. Porém meio fria, como Floripa. E que nem sempre dá praia. 
Mas, então, certo fim de tarde, em que o sol abriu com mais pormenor e promessa, fomos caminhar pela Urca, com um olho na marina, outro na enseada, um terceiro no Pão de Açúcar, etc. Há muitas direções para se olhar em quase qualquer parte por onde se passa no Rio. E foi então que alguém disse apontando para um condomínio antigo, de não muitos andares:
-O Roberto Carlos mora aí.
Imediatamente começamos a cantar: “Se você pretende saber quem eu sou...” E depois, emendamos, com “As Canções que Você Fez Pra Mim”; e, em seguida, tornamos a “Quero que vá tudo pro inferno” - esta cantada com uma particular ênfase. E a coisa foi rendendo pelo menos até o Cassino, sob o qual passa a avenida do bairro. O prédio foi recuperado recentemente. Mas à época encontrava-se fechado. E com aquela autoridade muda de quem viu coisas do arco da velha. Mas ainda não era propriamente o inferno. E estávamos quase dois meses entrados na primavera.
E, logo, a noite veio caindo sobre aquela cidade cinza e fria, úmida; de montanhas e mar. Quase tão inóspita quanto Liverpool.
*
À semelhança dos Beatles, Roberto Carlos é um gênero musical. Uma espécie de ubiquidade brasileira. E, no entanto, não todo ele, mas expressamente o que registrou os discos que vão de meados dos 60 até dez anos adiante, e a constatação de que "É Preciso Saber Viver", aí por 74. 
Oito a dez álbuns para antologia. Ou, por outra, muito ao pé do ouvido, aqueles bolachões gravados de 68 a 72, ouve-se praticamente sem ter de pular faixa. Eles respondem por uma onda meio soul, com órgãos Hammond cumprindo solos, guitarras e violões base descoladíssimos, além de certos empréstimos vindos não só dos Beatles ou dos jovens cantautori italianos, mas sobretudo em linha reta da Motown - caso dos naipes de metais e seus ataques incisivos ou dos coros femininos em modo soul. Um suingue que vibra no corpo de cada instrumento. Algo também cristalizado em composições de Tim Maia registradas pelo Rei, mas não só. Uma actualidade fascinante. E gestada pelos melhores session musicians brasileiros - o que não é pouco.
Isso para não falar daquela ambiência um pouco sombria, existencial, de uma sopesada angústia, que salpica as letras dessa fase. Letras ditas numa voz levemente nasalada, mas limpa e distinta, embora carregada de pesar. Desassossego de quem aparentemente ganhou na vida mas perdeu no amor. Tristeza de amor recolhido, que sabe bem: merecia mais. E então semeia dobras de blues na voz. Nem todas são de autoria de Roberto Carlos, ou são parcerias com Erasmo, mas invariavelmente soam como se fossem. E, sem embargo, há coisas ali que já pedem orquestra, mas são levadas à base de guitarras, baixos e tambores, como “As Flores do Jardim de Nossa Casa”. E muito bem levadas.
Ou atravessando a planície dessas levadas, noutra direção, chega-se a certa sensação de inevitabilidade, abandono, que é plasmada, por exemplo, na neurótica “Agora Eu Sei”. Há paixão, violência e juventude, como nas “Curvas da Estrada de Santos” ou em “Sua Estupidez”; ou de forma mais direta e ingênua em “Nasci Para Chorar”, "Se você pensa" e "Quero que vá tudo pro inferno".¹ E há os grandes hinos românticos: “Como Vai Você”, “De Tanto Amor”, “Detalhes”. E há já revisões prematuras e uma atmosfera amarga, densa, fatalista e até uma citação na maior delas: “As Canções Que Você Fez Pra Mim”.
E dá vontade, mesmo a nós, que não sabemos fazer canção ou sequer concluir uma progressão em ré maior ao violão: trancar-se num estúdio, dia após outro, por pelo menos uma hora, ao longo de meses. E aprender a tocar, e gravar uma porção de canções bacanas, que a gente bolou para quem nos quis. Para quem nos quis nem que pelo espaço de quinze minutos.²
E, no futuro, então, esse "quem nos quis", possa, assim, imediatamente lembrar de nós, quando, ao acaso, escutar as canções que a gente fez. Ou mesmo se um outro cabeludo aparecer. Talvez. O certo é que éramos todos cabeludos. O que quase ninguém é mais. E aparecíamos mais nas casas uns dos outros. Ou mais para o mundo também, de acordo com a disposição, o empenho e o talento de cada. Mas certamente todos sonharam ser Roberto Carlos um dia. Até Chico Buarque confessou isso. E, afinal, já havia um Roberto Carlos entre os detentos de Pixote, o filme de Babenco, que é de 1981. Acreditem.
Alguns desses  candidatos a Roberto Carlos, alguns desses Roberto Carlos virtuais, aliás, já estão calvos. Outros trabalham na Receita, na Petrobrás, no Banco do Nordeste. Um é já Professor Emérito na Universidade Federal. Outro perito forense. E todos já contam os dias para se aposentar, coçando os ventres proeminentes. Depois, evidente, virá o pijama de bolinhas, a casaca de madeira. Morte de facto. Porque a morte de direito, sabemos, já está aí de há muito. Entre nós. Mascando as tardes. Comendo pelas beiradas. A comandar, pós-graduar, bacharelizar nossos dias.
Mas, para além, outros ainda optaram por carreiras menos ortodoxas: são curadores de arte, videoartistas, dão palestras, concorrem a editais e mantém ONG's. (Estes, já meio calvos, grisalhos, um pouco raquíticos é verdade; mas com o indefectível rabinho de cavalo e, se possível, cavanhaque ou aquela barba rala e meio sebosa). Um dos mais brilhantes morreu de cirrose. Mas a vida segue. Uma das mais brilhantes foi parar na Dinamarca. E lá comeu o pão que Hamlet amassou. Outra foi morta no cruzamento da Padre Antônio Tomás com Via Expressa, na estupidez de um assalto. É, a vida segue. 
A ideia das gravações, no entanto, parece auspiciosa. E especialmente porque nunca foi tão fácil gravar. E compartilhar - esse verbo, sórdido, no sentido tal qual foi pinçado pela moda - o gravado com quem de direito.
Agora, auspiciosa mesmo era a própria música de Roberto Carlos entre 68 e 72. Acontece que quase nunca era como a ouvíamos, porque ela fazia muito sucesso. E se não atentávamos para sua imensa qualidade e capacidade de companhia, era porque ela dissolvia na paisagem. Ficava camuflada, como o Platypelis grandis ou o Gongylus gongylode. Dissimulada, lá, onde não existia a distância do senso e do crítico. Mimetismos. Escondia-se entre o riso da garota e a onda quebrando contra o casco da canoa. O bustiê cobrindo só em parte, e a primeira vez em que a gente disse o nome. Os quadrinhos de Disney e o Sítio do Pica-Pau Amarelo - ainda o livro. A primeira Coca-Cola e os casais evoluindo na pista de dança do clube, com um terraço abrindo-se ao rio. Como um gênero que rodava diferente dos demais. Talvez para um outro lado, em dissimulação; e, por isso, não devêssemos nos ocupar dela.
Anos depois, já mais crescidos, se quiséssemos um pouco mais de sofisticação harmônica, era bandear-se para a Bossa Nova, Jobim, Edu Lobo, os mineiros. Se quiséssemos mais das letras: Vinícius, Caetano, Chico, Fernando Brant, Belchior. Se o caso demandasse mais a presença de pura música: Baden, Hermeto Paschoal, Gismonti. Ou se balanço, o caso fosse: Luiz Gonzaga, Jackson, Simonal, Jorge Ben – que depois trocaria de nome. Nas vozes, havia Elis e Milton. E para aprender algo com uma sensibilidade de saias: Dolores Duran, Dona Ivone Lara, Sueli Costa, para além de Rita Lee.
Tudo muito claro no Panteão, na Sala de Justiça, exceto o seguinte: havia uma zona que era distinta de tudo isso e, ao mesmo tempo, podia nos receber com opulentas canções. Um estado da federação da música que era bem menos demarcado que esses outros estados, e pelo simples fato de estar sempre presente. 
Um estado de espírito, que nascera no Espírito Santo, mas sua capital desde sempre fora o Rio, essa cidade fria e cinza, como depois constataríamos. E sua melodia passava soando ao fundo de tudo isso. Trilhasonando tudo. Esse filme editado na íntegra, que era a vida da gente, e que rodava por muito longe da Estrada de Santos, com suas curvas bruscas. Mas, ainda assim, talvez mais perto do que se imaginava. Pois quando se passou em frente à casa dele, na Urca, pela primeira vez, cantou-se “As Curvas da Estrada de Santos” quase em piloto automático. Numa homenagem não menos sincera que anônima.
Roberto Carlos Braga. Um estado de espírito, que nos acercava desde o serviço de alto-falantes no interior – com sua pracinha e as meninas circulando à volta. E depois pela Feirinha do Bairro de Fátima, já na capital, passando pela Volta da Jurema. Ou uma célebre Praça Portugal, que ficava acesa até o dobrar da madrugada. Atravessando esses espaços, assim como a sala de casa, e seguindo até o pátio do colégio com sua algazarra, à hora do recreio. Ali também esteve o Rei. Nas festas de família e aniversários. E, depois, na faculdade. Nas reuniões de músicos e poetas no CA da Psicologia, trepado num sobrado que imitava um castelo, ainda que caindo aos pedaços. E posteriormente no mall, mais bem cuidado e macio, calçado a granito polido, dos primeiros shopping centers. Ou, antes, dos barzinhos da Praia de Iracema. Ali, Sua Majestade esteve também. Assim como nos exílios: lá fora ou em Santas Cecílias,  Belas Vistas, Vilas Clementinos, Perdizes, Pompeias, Florianópolis. Uma ubiquidade majestosa, egrégia, que respondia por uma trilha sonora mais ou menos natural disso tudo. Ou seja, de nossas vidas, lugares. Cicatrizes. Canudos e Vietnames da alma. Eldorados. Carandirus, onde atuamos ao mesmo tempo como os detentos, os agentes prisionais e a polícia de reforço. Cotidiano mais impressentido. 
E, apesar de tudo, ainda é nosso dever tentar triar trigo, joio. Mesmo que sabendo: o buraco é mais embaixo nesses casos a joeirar. E é por isso que não se deve abrir mão de acercar-se de certos sedimentos preciosos. E por divisar neles uma fase mais luminosa. Como nessa galáxia Roberto Carlos, a constelação que responde pela fase 68-72. 
É possível, no entanto, que uma das maiores dificuldades em ser Roberto Carlos, deva ir pela solidão. E, aqui, a coisa não é tão simples. Não é só a impossibilidade de ir a locais públicos. Afinal, há viagens e outros países. É mais que isso. Quer dizer, por exclusão, Roberto Carlos não pode ter por ídolo a figura que o resto do país tem: Roberto Carlos. Isso é que deve ser terrível. Perguntado por artistas que admira, ele cita Chaplin, os Beatles, Elvis Presley, Nelson Gonçalves, João Gilberto, Tito Madi. Mas também há um outro, sempre mencionado. E que vem até antes de todos esses outros. Este ninguém mais quase conhece: Bob Nelson. 
Bob Nelson, o Vaqueiro Alegre, era o nome artístico de Nelson Roberto Perez, um cantor de Campinas, que fez algum sucesso à época do rádio. Vestia-se como um caubói dos filmes, gravou uma versão de "Oh! Susanna" em português e misturava ritmos sertanejos à música country com influxos do yodeling. Em 1974, Erasmo Carlos gravou uma canção (feita em parceria com Roberto) em sua homenagem: "A Lenda de Bob Nelson". Perez morreu em 2009. Mas foi quem despertou num jovem capixaba de nove anos o desejo de ser músico. E cumpriu, assim, um papel de fundamental importância: ser o Roberto Carlos de Roberto Carlos. 
E seguem, por fim, de chapéu nas mãos e cachimbo na boca (só pelo charme, mas devidamente apagado), dez motivos para celebrar a grandeza de Sua Majestade:


É difícil olhar o mundo e ver” -
As Canções Que Você Fez Pra Mim” (1968) -

Peça alguém pra me contar sobre seu dia”-
Como Vai Você” (1972) –

Se você pretende saber”
As Curvas da Estrada de Santos” (1969)

Você vai ter que ouvir” -
De Tanto Amor” (1971) -

Na longa estrada do tempo que transforma todo o amor” -
Detalhes” (1971) -

Quem sabe menos das coisas, sabe muito mais” -
Agora Eu Sei” (1972) -

Conte ao menos até três” -
Sua Estupidez” (1969) -

Relembro a casa com varanda” -
O Divã” (1972) -

Não me interessa o que de mais existe” -
Quero Que Vá Tudo Pro Inferno” (1965) -

Sem resposta, digo adeus e vou-me embora” -
Nasci Para Chorar” (1964) -

Uma saudade imensa, de alguém que pensa e morre” -
E Por Isso Estou Aqui (1967) -



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¹Reza a lenda que o então Arcebispo do Rio de Janeiro protestou junto ao jovem cantor contra esse negócio de mandar tudo pro inferno. E, então, no disco seguinte, Roberto, um hábil conciliador, abria o álbum dizendo justamente que daria o seu amor, mas também o céu à amada ("Eu te darei o céu"). De outro modo, aos poucos os arranjos foram perdendo essa pulsação soul para ganhar em sofisticação até resvalarem, como os 70 a meio, para algo mais previsível e francamente kitsch. Em "Detalhes" essa opulência dos arranjos conhece um auge. E pode-se dizer que os detalhes estão até mais na música que na letra. A onda, então, já é mais latina, menos Motown. E há um bocado de coisas acontecendo ao mesmo tempo. Uma procissão de pequenos solos, provindos de xilofone, cordas, piano, flauta e violão.
²Agora, imagine - ainda que só por um pouquinho - que esse "quem nos quis", não refere tão só a cada um, individualmente, mas a toda uma geração. Aquela geração que cresceu ouvindo as canções que Roberto Carlos fez para nós, e que não quer, de jeito nenhum, abrir mão delas em nome de qualquer cinismo mais rasteiro,  das distâncias e ironias, ou de uma insidiosa maturidade pós-graduada. Pois já nos basta haver crescido no espaço estreito, no gargalo existencial entre o Golpe de 64 e o impeachment de Collor. Ou levar nos ombros o karma e a canga de ter de oscilar - modo maniqueísta - entre o Pasquim e a UDN. Ou entre células de guerrilha e o General Mourão. E, então, ler entrevistas com todos aqueles exilados de esquerda, quando ainda estavam lá fora, aí por volta de 1979. E cheios de uma atenciosa e ingênua esperança: a de eles serem, de facto, diferentes. A de as coisas só poderem ir para muito melhor, quando voltassem. E só para depois perceber concretamente quem eles eram. Quem era Miguel Arraes em Pernambuco ou Leonel Brizola no Rio. E o grau de aliança espúria que tinham de fazer para governar. Ou, ainda mais recentemente, José Dirceu ou José Genoíno. Ou as pensões estatais de Jaguares, Ziraldos, e por aí vamos. E entender, então, o grau de patriciado, de reserva de mercado da esquerda, que esse pessoal compunha e compõem. Ou seja, com poucas e notáveis excepções, o modo como eles praticamente apenas constituem a outra face do mesmo patriciado de direita. Só que na esquerda. Com um discurso de esquerda. E, no entanto, com os mesmíssimos vícios e cacoetes dos políticos de direita: privilégios, clientelismo, corrupção, tráfico de influência, etc. E inclusive com  várias dessas prerrogativas mantidas no exterior, quando foram banidos. Quer dizer, mantidas não a todos, evidente, mas à elite desses exilados, já que os privilégios não se estendiam à maioria daqueles que amargaram essa experiência traumática do exílio. E que, portanto, viveram-na sem as benesses reservadas a essa suposta "elite do bem", a esses "estadistas ilustrados", reunidos à força no exterior - e dela fazia parte, não esqueçamos, um futuro presidente eleito do país. E, quem olha assim, apressadamente, ainda hoje, até julga tratar-se de estadistas. Porém, entre os próprios exilados há quem discorde, e denuncie a comodidade de fazer parte dessa elite no exílio. É o caso de Sérgio Kokis, um dissidente brasileiro que inicialmente morou na França, e depois migrou para o Canadá. Kokis trabalhou muitos anos como psicólogo e acabou naturalizando-se. Ele é hoje um dos principais escritores do Québec, expressando-se em francês. Guarda, contudo, uma visão muito pouco lisonjeira da elite de esquerda brasileira no exterior. Visão que ele vaza para o próprio Brasil enquanto projeto social ou construção histórica. Seu ponto de vista, todavia, é praticamente desconhecido por aqui. Talvez porque não haja interesse que seja divulgado. Ainda que somente para ser discutido, ou mesmo contestado, relativizado - pois há ressentimentos pessoais e de classe a descontar em casos assim - seria importante que fosse conhecido. Os curadores de Bienais do Livro ou de encontros e simpósios literários, no entanto, preferem empenhar-se na vinda de intelectuais estrangeiros - por vezes de um peso até menor - mas desde que não incomodem tanto a esse cardinalato de esquerda ou a seus herdeiros políticos. 
Não haveria, aqui, algo de mal resolvido? Ora, especialmente num momento de inquérito, como o nosso - de revisão, em que arquivos são reabertos e há grandes gestos pós-anistia, no sentido da apuração da justiça - outra forma de apurar essa justiça não seria conhecer melhor - e de modo mais matizado - a história desses brasileiros no exílio? E especialmente do ponto de vista daqueles que não compunham propriamente o núcleo ou mesmo a periferia dessa elite? Ainda hoje quando se fala em pluralidade, infelizmente parece não se falar em algo que seja amplo o suficiente para entrar em escrutínios que possam manchar a imagem da esquerda institucional. Como se pluralidade fosse sinônimo ou monopólio dessa esquerda institucional. E tudo isso não indica, no fundo e apenas, o quão próximo encontram-se a direita e a esquerda no Brasil?

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