quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

É stupendo: Oscar Niemeyer (1907-2012)






Acima, cinco aspectos do prédio da Mondadori, 1975, projeto de Oscar Niemeyer



ou Da Brasília Decalcada de um Recife da Ideia


Em Brasília, o edifício mais elegante é o Itamaraty. Mas já se escreveu um bocado sobre ele. De sua complexidade. Ou acerca das relações entre a estética de Niemeyer e o barroco mineiro. Ou, mais expressamente, o Aleijadinho. E, ao que parece, se o Prédio do Itamaraty não foi superado, enxertou-se em outro. Esse duplo encontra-se a milhares de quilômetros: o Palazzo Mondadori, em Segrate, próximo a Milão. Um edifício, concluído em 1975 - cinco anos após a inauguração do Itamaraty - e que é sede do maior grupo editorial da Itália (de momento, sob controle direto da família Berlusconi).
Com seu ballet de arcos irregulares na fachada – ao contrário da regularidade dos arcos de seu modelo, a chancelaria, em Brasília, que originalmente chamava-se Palácio dos Arcos – o prédio é uma maravilha que se destaca na paisagem lombarda, e é posto em perspectiva pelo extenso espelho d'água à frente. Parece um pedaço de Brasília, arrancado por marretadas imagéticas, e aplicado em plena Milão. O que não deixa de ser auspicioso. Pois, na mão contrária - e com efeitos deletérios - somos acostumados desde cedo a ver só o oposto. Ou seja, pedaços da Itália na América. Inclusive muito de arquitectura art déco, proto-fascista, disseminada pelo interior do país, do Oiapoque ao Chuí, na forma de prefeituras e prédios públicos da Era Vargas e após. Mas, em geral, os italianos babam de prazer diante do edifício da Mondadori: "Mi piace tantissimo! É stupendo!" - dizem. E é mesmo. 
Por outro lado, uma das críticas mais procedentes, e que se pode fazer a olho nu, da concepção arquitectônica de Niemeyer (1907-2012), é - a despeito de ele louvar as formas rotundas e naturais – a ausência de vegetação mais densa, árvores copadas ou pequenos bosques, junto a seus edifícios. Ou a impossibilidade disso. Os edifícios parecem comportar apenas gramíneas, arbustos ou plantas aquáticas à volta. Para, então, destacar-se na paisagem como monólitos. A vegetação os incomoda: será que atenta contra a escala deles?
Mesmo um leigo em arquitectura, mas com alguma percepção mais aguda de espaço, desse suplemento entre a vegetação e os conjuntos erguidos, acha o fim da picada o Memorial da América Latina, em São Paulo: pelado, sem vegetação ao redor ou sequer na área entre as edificações. O sol caindo em placa fervente sobre milhares de metros quadrados de cimento. O poeta norte-americano Robert Creeley, por exemplo, comentou, quando visitou o conjunto, que Niemeyer devia gostar de plantas em vasos. 
Procede.
De outro modo, alguns edifícios, como os dois citados - o Ministério das Relações Exteriores e o Palazzo Mondadori, além do Palácio da Alvorada ou do Congresso Nacional - são magníficos. Outros, nem tanto. Especialmente os projetos mais recentes. Como os museus em Brasília e Curitiba, além do Centro Cultural em Avilés, e o novo complexo administrativo do governo de Minas. E, no entanto, o Museu de Arte de Niterói, que é dessa última fase: uma beleza. O mesmo se pode dizer do Auditório em Ravello, que leva o nome do arquitecto. 
Não por acaso, nessas duas últimas obras, o que mais ressalta: o modo como convivem com a paisagem. Com o relevo mais que com a vegetação. E com um relevo similar: a montanha, o mar. Assim como também propõem-se como mirantes. Pontos através. Prédios devassáveis para se olhar a paisagem, além. A privilegiada paisagem que dominam, acima do mar. Para melhor fruí-la. Espécie de prédios-varandas. Ou esculturas avarandadas. Boas de olhar, tanto de fora, quanto (e em especial) de dentro deles para fora. Prédios-belvederes. De onde se pode melhor contemplar, em ambos os casos, a mesma paisagem de escarpas e mar, incluindo as bordas dos prédios, que ameaçam somar-se à natureza, depois de tão bem sugeri-la em quadro. (Como se permanentemente a natureza fosse posta sob o ângulo e o ponto de vista de melhor enquadro numa câmera que apenas a registrasse para criar algo que está a meio caminho entre o que ela é e como ela se encontra representada em filmes e vídeos).
Outra conversa é aferir até que ponto esses edifícios são, de fato, funcionais.  Ou seja, a vida deles quando se volta para eles, em si. Isto é, quando se está dentro deles e se olha para dentro deles, dia após dia. Se são possíveis e praticáveis também para observar obras de arte numa terra em que a arte parece estar mais lá fora, na natureza, caso de Niterói. Ou se há boa acústica num auditório desenhado para uma pequena cidade da costa amalfitana, Ravello, que se orgulha de sua pujança musical, etc. 
Sim, porque é possível lembrar que, por volta de 1997, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) passou alguns meses utilizando um dos auditórios do Memorial da América Latina para seus concertos, concentrados em dois programas semanais. Àquela altura, a Sala São Paulo era projeto em andamento.  E, quando a orquestra terminava de tocar, um  eco artificial e pavoroso ainda se ouvia, vazando a sala por segundos e fração. Um verdadeiro desastre acústico de entortar ouvido. Mas, quem sabe, o auditório em questão não haja sido projetado para audições de música. E, ainda assim, auditórios devem ser ambientes construídos com alguma mínima preocupação com o que será ouvido dentro deles. Afinal, eles são locais de escuta. Espaços onde a expectativa é a de quem está sentado na última fila ainda perceber bem a voz do actor que representa o Avarento, lá no palco. 
Não é de hoje que os críticos apontam para três aspectos nada atraentes dos projetos arquitectônicos niemeyrianos: (a) serem caros (na construção e na manutenção); (b) dependerem excessivamente da engenharia estrutural (quer dizer exigirem uma verdadeira proeza técnica dos engenheiros de cálculos); e (c) devastarem o ambiente à volta como forma de sobressaírem desse ambiente a qualquer custo (ou seja, não estarem lá muito preocupados com o meio-ambiente do entorno). E não são críticas vãs.
Especialmente quando se pensa na suntuosidade geral dos projetos, e se conclui que Niemeyer desenhou edifícios para abrigar o poder, por excelência. E que não deixa de ser irônico que esse homem, unha e carne com o poder, fosse um comunista que pregava uma sociedade igualitária e humana, enquanto ele próprio transitava por ministérios, gabinetes presidenciais ou fartas festas em embaixadas. Inclusive, ironia extrema, cultivando amizades com líderes de governos tão ou mais ditatoriais quanto os da própria ditadura da qual ele estava fugindo num determinado momento. Caso dos regimes de Boumedienne, na Argélia; ou de Castro, em Cuba; que eram ditaduras ferrenhas e sanguinárias, para todos os efeitos, embora vendidas ao Ocidente sob outra dentição pelos Partidos Comunistas europeus e latino-americanos. Mais ou menos como o que se tenta fazer hoje em dia em relação a Chávez, na Venezuela - nicho, aliás, em que, surpreendentemente, a grife arquitetônica Niemeyer não adentrou ainda mais forte, sabe-se lá por quais razões.
De outro modo, por seu desenho heterodoxo, os edifícios de Niemeyer seriam inviáveis sem a estrita  colaboração dos engenheiros de estruturas. E, logo, parte do crédito por existirem passa por esses engenheiros, quase sempre postos num injustificado segundo plano, quando se pensa nessas obras. E, em especial, nas obras dos anos formativos e os da construção da Pampulha e de Brasília, quando o uso de computadores e supercomputadores para os cálculos ainda não era moeda corrente.
Parece que comparados à poesia e a pressa de alguns dos palácios brasilienses ou à requintada simplicidade de projetos como a Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha ou a belíssima Capela do Palácio da Alvorada, há um quê de puerilidade, de gesto gráfico vazio e grife nos projetos mais recentes. A tal ponto, que chega a ser heresia comparar o Palácio da Alvorada ao Museu de Curitiba. 
Há no Alvorada uma carga de sedimento histórico, uma gana de forma, um conhecimento de causa, uma ousadia, uma pesquisa, um arejamento, um lirismo que não se vai encontrar no museu curitibano, por mais que se busque. Ou por mais que neste a estrepolia, o salto mortal entre os trapézios pareça bem mais evidente. Até nisso ele perde. Isto é, em subtileza. Porque nada há no museu paranaense que indique essa encruzilhada entre passado e presente. Olha-se para a Capela do Palácio da Alvorada e paira sobre ela a sombra da Igrejinha de Nossa Senhora do Ó, em Sabará.
É, uma Igrejinha de Nossa Senhora do Ó, sim, só que posta sobre palafitas, como se debruçada às margens do Rio Negro, em Manaus. Olha-se para a Capela do Palácio da Alvorada, e imediatamente reconhece-se aventura e história em suas formas. O barro da estrada e a poeira dos terreiros. Nela há bandeirantes e candangos, mas também ladainhas em latim, mármore e coro de igrejas. Uma feliz conjunção de espaços, tempos, materiais, gestos. Como a indicar que vivemos num país de intensas e múltiplas simultaneidades, e cuja felicidade possível passa pelo compósito. E, claro, também de contrastes. E que deles advém nossa fortaleza. 
É necessário, sobretudo, notar que a arquitectura moderna brasileira, a arquitectura de Niemeyer - mas também de  Vilanova Artigas, Sérgio Bernardes, Lina Bo Bardi, Paulo Mendes da Rocha, e tantos outros craques - é irmã por excelência da Bossa Nova, do Futebol Clássico de 58-82, do Cinema Novo e da Poesia Concreta - e seu desdobramento neo-concreto no Rio. Esses influxos foram contribuições decisivas para o arejamento estético e a modernização definitiva do país. Para moldar-lhe um rosto. E definir melhor o modo como vemos e sentimos hoje. Eles compõem a utopia de toda uma geração. E é simbólico que só uns poucos dias separem na morte Décio Pignatari e Oscar Niemeyer. E quando se lembra que o manifesto da Poesia Concreta leva o significativo título de Plano Piloto.
Em outro mezanino, os vínculos do arquitecto da Pampulha com a literatura brasileira são notáveis. Basta lembrar que Joaquim Cardozo foi seu engenheiro calculista. E o que em Cardozo não é busca de burlar obviedades na direção de uma elegância que é simultaneamente novidade e reatualização profunda de um gesto coletivo, sedimentado em formas historicamente consolidadas? Basta ler sua poesia. E uma poesia que também estica-se ao teatro: para ser dita, em gesto dramático. Uma poesia que simultaneamente toma empréstimos de autos pastoris populares e da física das partículas. Não é pouco. O próprio Oscar Niemeyer repetia com todas as letras que Cardozo fora o brasileiro mais culto que ele conheceu. E Cardozo, que viabilizou em proeza as convulsões do concreto em curva dos palácios, assim expressou-se alguns poucos anos depois sobre a fundação da nova capital:


Brasília oferece um exemplo de cidade nova, construída como por encanto. Uma cidade que não começou em torno de um burgo ou de um castelo feudal ou de uma catedral; ou, ainda, de uma praça de mercado; em torno de um pouso de peregrinação ou de um rush para a conquista do ouro. Surgiu no deserto, pelos meios únicos e modernos adequados ao seu surgimento. Surgiu, se expandiu, se desenvolveu a partir das margens das pistas de um aeroporto, porque foram estas as primeiras obras reais da sua origem, as razões do seu milagre. [...] O lago, como toda a cidade, é um prolongamento das pistas do aeroporto, cabeça de Brasília, que representa a síntese das possibilidades brasileiras no campo da tecnologia e da cultura. Os grandes trabalhos arquitetônicos de Brasília, que colocaram Niemeyer na vanguarda dos mais importantes artistas de todos os tempos, e que, entretanto, são apenas uma parte de sua imensa obra, só comparável, em volume, à do pintor Pablo Picasso, foram incompreensivelmente mutilados pela não execução do seu projeto para o aeroporto da cidade. Brasília nasceu como têm nascido muitas cidades: de uma posse, de um pouso, de uma parada para descanso ou orientação. Duas linhas cruzadas, duas direções, quatro sentidos, quatro pontos cardeais; um aperto de mão, um signo de paz, de compreensão, de cordialidade entre os homens." 
[Joaquim Cardozo, in Forma Estática, Forma Estética, coletânea de ensaios sobre Arquitetura e Engenharia - compilada postumamente em 2009]

A ideia da arquitectura para Niemeyer, assim, passa perto das tardes translúcidas e aquáticas do Nordeste. Guarda um débito diante desse sentimento mineral transfixado. Desse sonho geométrico de clareza. Da ideia de ordem em Cardozo e João Cabral. No João Cabral, que em um de seus livros inaugurais - intitulado de O Engenheiro (1945), justamente para reforçar a noção de cálculo, a dimensão construtivista da linguagem, da escrita - nos diz que o "Engenheiro sonha coisas claras:/ superfícies, tênis, um copo d'água. [...]. Mas também descreve uma atmosfera em que podemos adivinhar ele e Cardozo, deambulando por um Recife em seu instante mesmo de modernização: "(Em certas tardes nós subíamos/ ao edifício. A cidade diária,/ como um jornal que todos liam,/ ganhava um pulmão de cimento e vidro)". 
Não são as tardes de Brasília, sob o amplo céu do Planalto, filhas dessas tardes do Recife, translúcidas, claras, magras, tal como surgem nos versos desses dois visionários? Pois, se há uma cidade que antecipa Brasília essa "cidade, diária como um jornal", é o Recife. E não só o Recife real, que se via ou  ainda  se vê. Mas o Recife como uma ideia abstracta, como uma utopia ou pós-lugar. O Recife tal qual passava feito filme nessas cabeças privilegiadas, e que refracta história e uma espécie de ideal. O Recife tal como apreendido pela sensibilidade, pela leitura e pela bagagem desses mestres. O Recife tal como contado por hábeis mãos, tanto na sociologia de Freyre quanto na história de Evaldo Cabral de Mello. 
Ora, todos falam de Minas (arquitectura colonial barroca e Aleijadinho) e do Rio (montanhas, mar, a sensualidade das cariocas) como anterioridades de Brasília. Mas talvez a nova capital federal esteja ainda mais prevista nessa ideia de clareza e ordem dos poetas modernistas pernambucanos e seu saudável senso de sobriedade e cálculo. Eles conformaram-na, anteciparam sua modelagem, como que a pré-esculpiram por imagens. Eles adivinharam-na, antes mesmo que se falassem em sua construção. Pois foi essa ideia, em suas cabeças, que propiciou o cálculo e a construção dos palácios brasilienses. E não apenas simbolicamente. Mas literalmente, no caso de Cardozo. Essa é uma ideia preciosa. A reter. Ela é o veio mais novidadoso, transiente e verdadeiramente vanguardeiro de nossas letras em meados do século passado. O  veio que se interpôs como ideia magra, esbelta e barrou energicamente a verbosidade bacharelesca da Geração de 45. Quando se admira as linhas essenciais de um edifício como o da Mondadori, não se está mais que reverenciando uma das encarnações possíveis dessa ideia. Uma de suas concreções:

O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.

Os edifícios, os palácios brasilienses de Niemeyer, devidamente calculados por Cardozo, são uma tentativa de chegar a esse mundo não encoberto. A essa solução de espaço que também é uma declaração de autonomia estética - e, por tanto, segue sendo admirada mundo afora, porque não copia, mas inventa a partir. Chegar a esses edifícios diáfanos implica na retirada de véus, que é a imagem clássica da Verdade. Para os gregos: varrer os obstáculos de impedimento, aqueles obstáculos que cegam, encurtam ou deformam a visão. Desencobrir, desnudar, destapar, remover os véus. As carapuças. Daí a sensação de translucidez, de transparência, de transfixidez que nos repassam esses edifícios. De certo paradoxo: estruturas levíssimas a sustentar a solidez. Mas apenas porque são muitas. São numerosas. Capilares. Simultâneas. E funcionam em conjunto, como as esbeltas colunas dos palácios brasilienses, que mal tocam as superfícies que suportam. Ou que mal se escoram no chão, porque querem flutuar. Transparência e colectividade estão por trás da concepção dessas caixinhas de vidro que abrigam o Poder. (E logo Quem: não são paradoxais?). Edifícios vazados, quase tão líquidos quanto os espelhos d'água que os reflectem. Elegantes em seu minimalismo.
De outro modo, sobre Niemeyer, o homem, o simpatizante comunista, ortodoxo, que jamais retrocedeu ou disse palavra mais forte contra o stalinismo, não vale a pena perder muito tempo. E ele foi amigo pessoal de ditadores. Caso de Fidel Castro, que certa feita lhe enviou cuidadosamente, acondicionadas num caixote, as luvas de um boxeador cubano, de quem o arquitecto era fã. O regime argelino, à época que lhe encomendaram os projeto de universidades em Constantine e Argel, também não era lá dos mais democráticos. Para dizer o de menos. Mas para que julgar os homens por seus erros, quando se pode ficar predominantemente com os acertos? E quando se contempla os arcos à fachada de um edifício como o da Mondadori, com seu ritmo elegante, sucedendo-se em continuidades e quebras - ora esguios, ora espaçados: não se está diante de um clássico acerto de nosso passado recente?

Um comentário:

  1. Esse é o melhor texto que li sobre Niemeyer na rede, depois de tantas homenagens justas, boas ou francamente tolas, no correr da semana.

    Um beijo. E obrigada!

    Ana Clara



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