domingo, 30 de dezembro de 2012

Cristais de Sal: o amor segundo Stendhal e um exemplo em Benjamin



                                                  “A vida é feliz e é preciso sorrir sempre”
                                                                                      [Uma imigrante armênia na Grécia]

Há aquele trecho de O Narrador em que Benjamin nos fala de um conto de Hebel. Um mineiro que às vésperas de casar morre no interior da mina por conta de um desmoronamento. Estamos em pleno séc. XVIII. Por uma fortuita combinação química, o corpo do mineiro é preservado. E, assim, descoberto, intacto, décadas depois, já no século seguinte. E, por esse acaso, à sua noiva - então já uma senhora idosa - é aberta a possibilidade de reencontrá-lo de novo. Porém jovem e intacto, exatamente como às vésperas das malogradas núpcias. Ela o contempla fascinada. E morre só uns poucos dias depois. Mas o modo como o narrador – no caso, Hebel – procura dimensionar a passagem de tempo do desastre até o inusitado reencontro é marcado por um longo inventário de factos (de certa ressonância pan-europeia):

Enquanto isso, Lisboa foi arrasada por um terremoto, e acabou-se a Guerra dos Sete Anos, o Imperador Francisco I morreu, e a ordem dos Jesuítas foi dissolvida, a Polônia foi retalhada, e morreu a Imperatriz Maria Teresa, Struensee foi executado, os Estados Unidos tornaram-se independentes e as potências aliadas da França e da Espanha não lograram conquistar Gibraltar. Na Hungria, os Turcos aprisionaram o General Stein na Grota dos Veteranos, e o Imperador José também morreu. O Rei Gustavo da Suécia tomou dos russos a Finlândia, e começaram a Revolução Francesa e as grandes Guerras, e o Rei Leopoldo II também morreu. Napoleão conquistou Paris e os ingleses bombardearam Copenhague. Os camponeses semearam e ceifaram. O moleiro moeu. Os ferreiros forjaram. E os mineiros cavaram atrás de veios preciosos, nas suas oficinas subterrâneas. Porém quando em 1809, os mineiros de Falun...”

Benjamin nos chama a atenção para duas coisas. Primeiro, para o modo hábil com que Hebel inscreve o tempo largo, dos grandes acontecimentos históricos, no tempo privado e subjetivo de uma história de amor. Mas também para a recorrência da morte, que brota a todo instante no inventário com uma precisão metronômica.

E, no entanto, algo ainda há aqui. Algo que não creio haver sido apontado antes. E na atmosfera, na ambiência mesma. Pois Benjamin vai buscar exatamente no fundo das minas essa metáfora de preservação. Notem que tudo isso surge bastante rente à imagem do amor num dos romancista que versou mais insistentemente sobre o tema: Stendhal.

Há o famoso conceito de “cristalização” em Stendhal:

Aux mines de sel de Salzbourg, on jette dans les profondeurs abandonnées de la mine un rameau d'arbre effeuillé par l'hiver; deux ou trois mois après, on le retire couvert de cristallisations brillantes (…) Ce que j'appelle cristallisation, c'est l'opération de l'esprit, qui tire de tout ce qui se présente la découverte que l'objet aimé a de nouvelles perfections.
[Stendhal, De L'amour]

Ou:

Au moment où vous commencez à vous occuper d'une femme, vous ne la voyez plus telle qu'elle est réellement, mais telle qu'il vous convient qu'elle soit. Vous comparez les illusions favorables que produit ce commencement d'intérêt à ces jolis diamants qui cachent la branche de charmille effeuillée par l'hiver, et qui ne sont aperçus, remarquez-le bien, que par l'œil de ce jeune homme qui commence à aimer.

Parece que esse conceito de amor como algo cristalizado na escuridão e pureza das minas é algo expressamente caro ao Romantismo. E, claro, há em Benjamin essa nítida inclinação, essa predileção por autores românticos. Esse fascínio por coisas jogadas de lado como trastes e depois resgatadas como tesouros ornados por vestes imperiais em sua mais elevada pompa.

Não pensem que há algum preciosismo na analogia que traçamos. Ela é apenas uma intuição. Não foi pinçada, em retalho, num seminário de pós-graduação. (Se bem que agora começo a ficar em dúvida).

O conceito de cristalização em Stendhal vulgarizou-se, virou moeda corrente. Algo tão vulgar quanto o “complexo de Édipo”. E como esse Édipo, evidente, há um verbete sobre ele na Wikipédia, em mais de um idioma. Ou seja, é algo que segue na boca de todos, embora poucos tenham ido até Freud ou Stendhal para verificá-lo, ponderar, saber do que se trata, de facto. E até mesmo Serge Gainsbourg irá compor uma canção – um pouco tonta, em tom de asneira e parodia – chamada C'est la cristallisation comme dit Stendhal. Talvez Gainsbourg apenas achasse irritante ter de ler Stendhal no colégio, e resolveu vingar-se. Essas vendetas que adiamos desde a adolescência, e também seguem adormecidas em minas interiores até despertar quando menos se espera.

Ou, ainda seja, se visto à lupa, o conceito de Benjamin, tomado a Hebel, não é mais que uma cristalização literal – ou no caso, carnal - da cristalização metafórica, de Stendhal.

Paro por aqui.

(Mas quem sabe, se eu fosse um ambicioso scholar, versado em literatura francesa, ou morasse num país meio periférico e sem nenhuma importância nas franjas da Europa (digamos, na Rumânia) ou na América Latina (digamos, em qualquer um), talvez fosse mais adiante. E escrevesse toda uma tese de doutorado que, posteriormente, pudesse ser refundida em best-seller ao agregar, quem sabe, algumas sugestões de Denis de Rougemont, além de certas bobagens e clichês da psicanálise e uns dois ou três conceitos pegados às pressas em Derrida ou Deleuze: bons elementos para um Frankenstein. Borges, se vivo fosse, bem que podia escrever um romance disso, em meio a gargalhadas tanto maiores quanto mais floreasse o estilo, para deixá-lo ainda mais acadêmico e afrancesado.

É mais ou menos como essas coisas são feitas hoje em dia. São “pesquisadas”, "defendidas".  (Será que há nelas um mínimo de prospecção próxima da que existia nas antigas minas? Alguma vida para além da múmia?) E há tolos o suficiente para comprá-las de olhos bem abertos. Aqui como alhures).


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