segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Ei, Vilém Flusser... - sobre Flusser citado no twitter e certo rancor-ambiente

Oscar Niemeyer, Palácio da Alvorada, 1958, com a Capela de N.S. da Conceição à esquerda


Vilém Flusser no Twitter é fenômeno curioso. Os jovens tomam-no com grande reverência. Uma cifra nova. Novo jogo proposto. E é fácil topar jogar. Há uma linha de sedução que nem todo teórico distende. Em geral, os jovens seguem Flusser como fosse o flautista de Hamelin. Como tivesse composto uma balada pop que adoram. Ou meio como se lhes prometesse, nem que num futuro distante, levar a vida na flauta. Espécie de Arcano. Novo recado dos Deuses. Em Flusser não haveria fissuras: um todo fechado em perfeição: todas as respostas buscadas. E até algumas mais respostas, sobressalentes, a perguntas que ainda nem haviam formulado, ou mesmo pensado que pudessem existir. 
Como pode ser? A cabeça dá voltas. 
Desde Benjamin não surgia um teórico que fascinasse tanto os mais jovens, com a possível excepção de Deleuze - outro que fala uma língua que a moçada quer falar.¹ 
Além disso, os assuntos de Flusser são os assuntos mais atraentes aos mais jovens: o processo de maquinização digitalizada que assalta nossas vidas; como é de fato viver numa sociedade pós-industrial; o dinamismo da figura do migrante; as diferenças entre a escrita linear e a imagem técnica; as relações entre fotografia e memória; os conceitos de tradução (história) e retradução (pós-história); a razão pela qual imergimos em certos filmes sem questionar suas premissas de edição enquadramento, movimentos de câmera; a fotografia não mais como uma inovação recente - como fora para Benjamin - mas um meio corriqueiro (e até banalizado) de informação; o que são imagens redundantes e não-redundantes; a imagem técnica como algo antecipado, previsto, pré-antecipado, preparado pelo aparato (câmera), algo já pré-programado, pré-acondicionado nele; a incidência do impacto do microchip e da crescente velocidade de processamento das informações sobre um cotidiano destendível ao futuro, como tendência. E, assim, por todo lado em Flusser há sugestões, de resto, bastante úteis, para a compreensão da interferência de processos que ainda não existiam à época em que ele escrevia - tais como um recado no smartphone ou uma postagem de blog, e para além do modo como nosso senso comum as entende. 
São assuntos, em tempo, não só profundamente entranhados na experiência cotidiana, como a responder também por um apelo e um encantamento ímpares e permanentemente realimentados por sucessivos e, cada vez mais breves, aportes de novas soluções tecnológicas. Trambolhos e geringonças de última, "ultíssima" geração.
Quando muito, o livro, o disco, o filme analógico eram também fascinantes. E, a seu tempo, índices de modernidade. Embora fossem, em simultâneo, objetos muito mais distantes do ponto de vista da produção, da interação, da confecção, da modificação. Tão distantes quanto mais materiais fossem. Ainda semi-auráticos, digamos. Levemente mágicos, meio inviáveis, imponderáveis. Caros. Hegemônicos. Menos partilháveis. Cheios de um outro tipo de fetiche. 
Praticáveis, talvez, apenas pelos modelos: os ídolos. Coisas que "vinham de lá", e mal chegavam ao comum dos mortais. Não interagiam propriamente com esse comum dos mortais. E especialmente se esse comum dos mortais se encontrasse na periferia da periferia. Aí, então, lembremos, ainda não havia rede mundial de computadores que desse jeito. Que o resgatasse dessa periferia. E, portanto, era meio como viver um exílio sem sair de casa. E, por vezes, a televisão clássica, veículo nada interativo, apenas aumentava essa sensação de angústia, exílio ou segregação. 
Existia uma festa para a qual o espectador não havia sido convidado. Ele estava como que exilado daquele admirável mundo que confeccionava, editava e transmitia imagens. Porque, ao contrário da televisão clássica, o que caracteriza as novas mídias é o fato de elas facultarem, digamos, pré-moldados virtuais que permitem essas interações. De esses suportes possibilitarem certos níveis de enxerto a partir de determinadas plataformas. Ora, a televisão clássica não era desdobrável, plataformizável, aberta a enxertos. Ela não permitia que surgissem algo como podcasts, blogs ou vídeos no Youtube. Ela não se desdobrava para a geração dessa ilusão: o usuário está criando ou veiculando conteúdos. Está interagindo - esse ato que virou obsessão e sinônimo de comunicação "correta" ou "dialógica". (Mas que, ao fim de tudo, quase invariavelmente redunda em algo tão vazio quanto a retórica oca de certas comissões parlamentares, porta-vozes de Ong's ou diretivas departamentais na universidade).
Assim, o livro, o lp, a televisão, o filme analógico constituíam-se numa espécie de antípoda do blog, dos arquivos em MP3, dos vídeos em formatos digitais, câmeras e gravadores ultra-portáteis ou softwares de edição não linear: baratos, acessíveis a todos, democráticos, intercambiáveis, plásticos, passíveis de serem manipulados por praticamente qualquer um. E em profusão. Acessáveis a qualquer hora do dia, da noite. Plenamente partilháveis. Agora tudo parece tão próximo quanto incomensurável. Há uma excessiva disponibilidade. Agora é possível não só levar a Enciclopédia Britânica para a cama, mas toda a Biblioteca do Congresso. Cinamatecas inteiras, com milhares de filmes. E tudo acessível por alguns poucos cliques de mouse. E, então, que outra servidão esses novos meios, ditos "democráticos", nos impõem?
Mas, aqui, entenda-se antípoda quanto ao meio, mas não quanto ao conteúdo em si, que portam. No íntimo, esse "conteúdo" não é a maior mensagem. Não é o fundo que realmente conta. Só na aparência esse fundo é basicamente o mesmo. Ou seja, só na aparência, um livro e um blog possuem essencialmente o mesmo conteúdo: textos. Textos são justamente o que há de mais descartável diante dos formatos livro e blog. O que há de menos descartável é o processo em si de informação que eles desencadeiam atravessando um percurso social, uma trama social. Furando tempos, lugares e circunstâncias históricas. Suplementando a memória de certa coletividade. De que modo empreendem isso?
À diferença do livro, por exemplo, o blog pode ser escrito, ilustrado e revisado diariamente desde o quarto do próprio autor. E, então, seguir diretamente ao quarto do próprio leitor. Ora, muita coisa é limada nesse processo. Entre elas, as editoras, as distribuidoras, as livrarias, as bibliotecas, as bancas de revistas, os agentes literários, os tradutores, as equipes de revisão, de diagramação, de lay-out, os advogados de direitos autorais, os motoristas dos caminhões, os pilotos dos aviões ou dos navios que transportavam o livro convencional, etc. O bosque de madeira que fornecia a matéria prima. Ou a madeira reciclada. A fábrica de papel. A tinta. As máquinas de Offset. Mas também os rapapés literários, as noites de autógrafo, com seu cerimonial pomposo e meio oco; a biblioteca ou até mesmo a sala de aula, em certo sentido. 
Ou seja, a mensagem maior do blog, não é o que ele contém de textos. A dita mensagem dos textos. Mas poder desdobrar-se e infiltrar-se com tamanha eficácia. Tão capilarmente. É ter uma aparência costumizável, mutável, até mesmo camaleônica. É banalizar o livro ao extremo ao facultá-lo a todos. (E, muito especialmente, sua autoria). É poder infiltrar-se com muito mais porosidade, para propor essa autoria. É poder extinguir-se com uns poucos cliques. É poder citar ou reproduzir vastas quantidades de outros textos instantaneamente. Ou comportar comentários, críticas e observações imediatamente após o texto publicado. Assim, imagens técnicas, antes de significar, projetam algo. Projetam algo desde si. Elas não possuem prioritariamente conteúdos (significados) pois estão carregadas, em precedência, de formas (significantes). 
Essa conclusão está no último Flusser, o de No Universo das Imagens Técnicas (Ins Universum der technischen Bilder, 1985). Mas pode ser bastante aproximada das conclusões de MacLuhan. E, aqui, à guisa de ilustração é bom lembrar: blogs são inicialmente imagens técnicas. O universo virtual é virtual justamente por ser imagético e técnico (ou seja, tecnológico). Ou seja, uma das primeiras condições para se virtualizar algo é a conversão desse algo para imagem. Os novos meios são, numa primeira dentição, imagens que buscam certa semelhança com o mundo analógico (podemos, no entanto, imaginar o dia em que essa necessidade de semelhança será posta de lado, e os "objetos virtuais" ganhem, então, um design próprio que não necessariamente imita o analógico, que não toma por modelo o que está "lá fora", no mundo, na "vida real", como se diz já desde os tempos da telenovela de antes da digitália). 
Um exemplo disto é que a ferramenta de corte num dos principais softwares de edição não-linear ser representado por uma lâmina de barbear. Por uma gilete, como diz a voz corrente. Ora, o que se processa virtualmente, a separação da imagem no software de edição, pouco ou nada tem a ver com o objeto gilete. Ainda assim é esse objeto, o escolhido para representar o processo de separação virtual entre dois planos, que de nenhum modo pode sequer ser tocado pelos dedos de quem o opera, pois é totalmente virtual. Ou seja, pois a própria ferramenta já é apenas uma imagem. 
Para onde ambas as teorias - a de MacLuhan e a de Flusser - indicam: certo ponto de vista da passividade ou do progressivo enlanguescimento de emissor e receptor diante do dinamismo e do protagonismo do meio (isto é, da mensagem (MacLuhan) – ou, ainda seja, da imagem (Flusser)). Quer dizer, os elos humanos, nas pontas do processo comunicativo, seguem sendo progressivamente corroídos, superados, elididos e dominados pelo aparato e o maquínico. Ou mesmo assomam apaixonando-se por esse maquínico, como em Blade Runner (1982). 
Mas, antes disso, Kubrick já havia apontado para certa possibilidade de uma vida autônoma e até de um domínio da máquina sobre o humano em seu filme-distopia (2001: A Space Odissey, 1968). E, não obstante, a realidade se vem encarregando de nos devolver um futuro ainda mais aterrador e distópico que na fantasia de Kubrick - ou ainda antes dele nas fabulosas ficções de Bioy-Casares (La invención de Morel, 1940) ou H. G. Wells (The Invention of Dr. Moreau, 1896).
Os novos meios, assim, parecem confirmar amplamente a força das intuições de McLuhan: eles são as mensagens. E as mensagens deles, em sua vocação capilar e micro, têm desestabilizado ainda mais as grandes narrativas que estavam à base do Ocidente, e foram por eles postas em xeque, já de acordo com os primeiros autores que, como Lyotard, sondaram as especificidades e a sensibilidade de uma época que assoma posterior ao modernismo e à indústria. E distinta deles.
Mas há também investido nesse fascínio por Flusser um reconhecimento, por parte dos mais jovens: a solidez, a sede moral do autor judeu-tcheco-brasileiro de língua alemã, a astúcia de seus insights. A reação generosa e positiva face à tragédia pessoal de uma vida marcada pela truculência do totalitarismo no entrecho da II Guerra. E, claro, Flusser pode ser convertido em assunto com extrema fluência e flaneria. E, logo, lançam mão de Flusser para passar por regiões que Flusser, ele mesmo, não passaria.² 
Nada de errado, um teórico da envergadura do autor de Por uma Filosofia da Fotografia há que se estender como ponte no rumo de vales e montanhas ainda não desbravados. E passar por terrenos inóspitos com a desenvoltura de um jeep com tração nas quatro rodas. Territórios ainda livres, não anexados por reterritorializações teóricas de segunda ordem - ou seja, diluitivas. 
Porém é igualmente preciso notar que não há um totalidade de respostas em Flusser. Quer dizer, no entusiasmo dos jovens, Flusser é tomado com uma espécie de panaceia. Como resposta até para questões que estão além da possibilidade de serem respondidas: seja porque, em dado momento, a teoria de Flusser é insuficiente, tanto histórica quanto conjunturalmente; seja porque, no caso, a questão tomada é muito mais profunda. O buraco é mais embaixo. E dessas questões profundas, existenciadas é que se faz não só uma juventude, mas uma vida.
Não obstante, na ambiência do Twitter, os alunos, em admiração – que não deve em nenhum momento ser descreditada ou subestimada, especialmente quando indica mais sinceridade que moda – citam, em geral, algo de bastante redundante em Flusser como se fosse a quintessência da novidade. A descoberta da pólvora. A chegada ao Santo Graal.
Não é. É apenas o naco, a migalha de Flusser, que determinado estudante ou leitor conseguiu filtrar, entender ou reter no meio de uma miríade de novos pontos de vista consolidados em conceitos. E conceitos às vezes opacos, que não se deixam revelar numa primeira leitura. E, então, plá, postam a coisa lá pelo Twitter, sob seus perfis. Como se propõe um barato novo: a citação reluz. Um vapor barato. Uma grife. E com isso, com esses retalhos, com esses vapores baratos, constroem uma espécie de Pop-Flusser, que nem sempre é instigante, porque composto apenas de rotos clichês. De lugares-comuns propostos como estupendas novidades. Como se nunca ninguém tivesse dito aquilo antes. Faz parte. 
Porém, as mais das vezes, não é bem assim. Isto é, o que escolhem de Flusser para citar, guardar; Flusser dificilmente citaria. Tomaria mais em modo "ouvidos de mercador". E aí então sobrevêm platitudes como as que se podem pescar indo ao Twitter hoje, dia 10 de dezembro de 2012: "toda imagem depende de dois fatores: da distância e do ponto de vista"; ou "se você não escreve, você não pensa por si próprio": o que há mesmo de original nessas afirmações?
Outro dia, “esquecer é uma função da memória tão importante quanto lembrar” era a citação Flusser da vez, lá pelo Twitter. Trata-se, evidente, de algo banal. Algo que já foi dito antes a três por quatro. Por diversos autores. De diversos modos. Em diversos tempos. Em profusas anterioridades e contextos. Debaixo de outras cifras e sóis. E até mesmo dentro de casa, num caco de provérbio qualquer, desses ditos por uma daquelas tias mais reimosas. Algo do tipo: "esquece de lembrar quem não lembra de esquecer". Uma fórmula proposta mais ou menos assim, calcada nessas dualidades, e que é mais que um hábil jogo de palavras, porque de alguma forma fica: dá o que pensar. Dá trabalho, ao invés de ser só um trocadilho. Ou como dizia o velho e bom Leminski é um trocadalho do carilho. 
Ora, isso vem em linha reta de Freud, que disse isso de esquecimento e de lembrança - mas também de trocadilho - com mais contexto, e quase cem anos antes de Flusser. Mas também essa noção do esquecer como algo providencial, salutar para a memória mesma, vai por quase todos os grandes textos sapienciais ou sagrados, tanto do Ocidente quanto do Oriente: dos mitos gregos aos Upanishads, passando pelas Mil e Uma Noites e muitas reticências depois. 
Já está, aliás, no Novo Testamento, quando Pedro nega Cristo três vezes, lembrando, apenas no último momento, que assim procede, porque canta o diabo de um galo, lá nos desvãos, na bacia da alma da consciência. No tempo extra da prorrogação moral.
Mas, se quisermos algo mais próximo - não traduzido, em bom português mesmo, e anterior a Freud - há, por exemplo, o Machado de Assis de Papeis Avulsos:

"Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito". 

E a observação de Machado, feita há mais de um século, é atualíssima. Se substituíssemos lousa por tela, ela poderia frequentar qualquer discussão teórica contemporânea sobre comunicação sem dar na vista. E, no mais, quando na modernidade se pensa nesse esquecer que preserva – ou pelo menos nos preserva tanto quanto a memória – imediatamente se pensa no trauma ou no recalque. Aqueles mesmos, que o trabalho de análise visa justamente desrecalcar, destraumatizar. Relembrando-os, esconjurando-os. Ou, de certa forma, reexperienciando-os, revivendo-os, para esvaziá-los ou debilitá-los. Como? Por (inter-)meio da palavra, que é uma das poderosas ferramentas que movem o mundo nessas lábeis fronteiras entre o lembrar e o esquecer.
Talvez mais que um tábua para a inscrição de citações que, no geral, não passam de sovados clichês, o Twitter é mais bem um trampolim para sítios dedicados a textos de Flusser (e sobre Flusser), na rede. O que é já um mérito não pequeno.
De outro modo, há no Twitter uma exclamação - não sobre Vilém Flusser, é preciso frisar, porém muito mais sobre o modo  como  ele vem predominantemente sendo lido por nosso modelo capenga de universidade - que diz um bocado também de um justificado ressentimento. Está lá, à disposição de todos que leem o micro-blog:

Vilém Flusser, chupa meu pirulito!”³ 


ªUma reflexão sobre tradução a partir de influxos flusserianos, embora Flusser não seja nomeado
__________________________
¹Os comentadores de Deleuze e Guattari assomam, por vezes, como desdobradores de profetas que administram um imbróglio. Quer dizer, o imbróglio em que se converteram suas próprias teorias, incapazes minimamente de se proporem como auto-inteligíveis em não poucos casos. E, assim, eximirem o leitor de uma compreensão que se processe excessivamente tutelada ou dirigida pela figura do especialista. Do mediador. E mediador ex-orientando ou ex-aluno do Filósofo. Ou ex-orientando ou ex-aluno de ex-orientando ou ex-aluno do Filósofo, etc. Há, aqui, um apurado senso de seita. O conhecimento tem de ser mediado pelo especialista. Ou não pode ser compreendido de outra forma, mais pé no chão. Ou heterodoxa. Ou via o texto. O texto em si - mesmo com todo o valor que atribui à escrita um autor como Derrida, por exemplo. O que não deixa de ser um paradoxo que fere a intenção inicial de Deleuze e Guattari. Que intenção? A de serem grandes anti-especialistas e empreenderem essa espécie de bricolagem filosófica da era pós-industrial a partir de temas micro – apenas propondo o desejo entre interstícios sociais - ou lá onde Foucault, antes deles, havia divisado, em predominância, o poder. Ou ainda Freud, antes de Foucault, apontado para impulsos violentos que tinham a ver com morte e sexo. Ou, entre outras, com a pulsão violenta e ressentida que percorre o Complexo de Édipo. Lembrar disso, é lembrar também que há esse ressentimento entre o jovem leitor e o teórico em questão - seja ele qual for. Porque o teórico em questão assume inadvertidamente o papel do pai.


²Como, por exemplo, querer empregar Flusser para analisar questões relacionadas à Angst adolescente ou à questão última da existência. Digamos, diante da questão: "O que significa existir"? Infelizmente não há respostas completas. Não há definições acabadas para o que é a existência, mesmo em Flusser. Não há sequer em Flusser uma metodologia de procedimentos ou "melhores empregos" das imagens técnicas. No sentido de que é, por exemplo, impossível reivindicar uma estética cinematrográfica à Flusser. Do mesmo modo que um tradutor não pode reivindicar estar empregando o "metódo Benjamin" de traduzir. Ainda aqui, a visão que, por exemplo, Flusser tem do nordestino enquanto imigrante em um de seus livros é ainda bastante tosca e a-histórica, pois vem em linha reta de um europeu sem a leitura de Euclides da Cunha ou outros filtros que o imunizam contra estereótipos fáceis. Todas essas circunstâncias devem ser tomadas em conta ao se ler um autor devotado a um tão amplo leque de disciplinas e temas. Ou seja, é preciso também estar consciente de suas (não pequenas) limitações. Por exemplo, toda a teoria de Flusser esteia-se na diferença entre escrita linear e imagem técnica. Há, no entanto, quem, como Friedrich Kittel, discorde dessa tese de Flusser. Kittel afirma que não há uma cisão tão abrupta entre escrita linear e imagem, desde que as próprias imagens são geradas por uma escrita. Esta escrita, contudo, ao invés de estar registrada em papel, encontra-se registrada em minúsculas placas de silício (microchip) onde se encontram os códigos de programação dos novos aparatos:  


Teóricos da mídia, Marshall MacLuhan e, depos dele, Vilém Flusser, esboçam uma distinção absoluta entre a escrita e a imagem que, em última instância, baseia-se em conceitos da geometria. Eles contrastam a linearidade ou unidimensionalidade de um livro impresso com a irredutível bidimensionalidade das imagens. Simplificada dessa forma, é uma distinção que guarda alguma verdade, mesmo quando a tecnologia do computador pode dispor textos em linhas, como é comum hoje em dia. Mas essa distinção também silencia sobre um fato simples, sublinhado faz algum tempo e não fortuitamente, por um autor do Noveau roman, Michel Butor: os livros usados com mais frequência – a Bíblia, algum tempo atrás, e hoje mais provavelmente a lista telefônica – não são certamente lidos de forma linear.
[Kittel, Perspective and The Book, 2oo1] 



³Ou seja, é necessário que venha alguém quebrar um pouco com essa adoração, sisuda, acrítica, promovida nas pós. Um rato que desconfia do modo como se vende o flautista. E, claro, para que a adoração não se converta em mero culto gnóstico ou moda vazia, oca. Ou uma vivência somente livresca, acadêmica. Um culto para iniciados, que falam através de um dialeto particular, opaco aos demais mortais. (Uma espécie de língua do p da faixa-etária pós-graduar-se). E julgam-se, então, possuidores de verdades inacessíveis aos demais. Algo de bando, de turma, de seita, de facção, de galera, de moda, que tanto compraz aos jovens - esses especialistas em gírias, cifras, coisas efêmeras e charmosas - e aos deleuzianos. Embora Flusser, por temperamento, seja menos siderado por essa possibilidade de gnosticismo, de seita, de criar uma nova terminologia conceitual opaca, só para inciados, que Deleuze. (E, bem mais do que Deleuze, que certos deleuzianos – que constituem o lado pé-no-saco de Deleuze). Da mesma forma, é necessário, como no caso acima, que alguém traduza, expresse o ressentimento por estar começando a lidar com a obra de um importante pensador, de um teórico da comunicação. E nem sempre compreendê-la. E por mais aplicação que ponha nesse empenho, nessa leitura. Pois a obra de Flusser - como tudo que realmente vale à pena - nem sempre se rende propriamente fácil, à primeira leitura. Embora seja um tanto mais acessível que Deleuze, do modo como proposto pelos deleuzianos. 
Ou então, que pensadores tais como Emmanuel Levinas ou Jacques Derrida, para quem o mal-entendido conta tanto que chega a ser empregado como método. (E, então, é preciso saber divisar esse mal-entendido, e entender que ele cumpre uma função expressiva, etc). Ou por outra, o pensamento de Flusser é, no geral, mais acessível que o desses pensadores, porque foi gestado mais próximo de nós - tanto no tempo (se tomarmos Benjamin ou MacLuhan como analogia) quanto (e ressalte-se bem esse último quanto) no espaço. E, portanto demanda menos aportes históricos e culturais de nossos jovens leitores. Como, por exemplo, conhecimentos mais precisos de história, de filosofia, de literatura, de teoria da comunicação e, claro, de línguas e da destreza de traduzi-las ou transitar por elas. Ou ainda da mística judaica, no caso específico de Levinas. Ou da filosofia de Santo Agostinho e de Husserl no caso de Derrida. Ou da filosofia de Heidegger no caso de ambos. E etc. e etc. 
A dificuldade de apreender algo - e, em especial, mesmo depois de uma orientação de leitura - pode gerar ressentimento. E há o seguinte tuíto de uma garota: "sai Pierre Bourdieu para entrar Vilém Flusser e foder com a minha vida". Esse ciclo de vida medido por autores - nem sempre escolhidos pelos jovens, mas volta e meia impostos a eles - é algo inescapável ao pós-graduando. Um rito de passagem. E num momento em que, curiosamente, alguma escolha é já possível. Tenuamente possível, ao contrário do segundo grau, e mesmo da graduação - onde ele já foi devidamente acostumado a que lhe impusessem praticamente tudo. Mas, para seu desespero, na pós não há ainda a possibilidade de uma escolha mais ampla. Especialmente se ele não cumpriu um programa pessoal de leituras alternativas nas etapas anteriores. (Ditadas, depois de algum tempo, por ninguém menos que seu próprio nariz). E, evidente, não deixa de ser engraçada, tanto no caso da garota que é "fodida" quanto no caso do garoto e de seu "pirulito", a forma como esse ressentimento está posto. 
Será que Freud explicaria?



Um comentário:

  1. Que grosseria! Ninguém merece. Muito menos o Flusser!

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