segunda-feira, 17 de setembro de 2012

It Makes No Difference

Simplesmente A Banda, em foto de 1969


é provável que hoje goste mais dos dois primeiros discos de The Band do que qualquer coisa dos Beatles, antes ou mesmo (durante e) depois do Peppers. Há uma qualidade de plangência e blues, caminhos e amores que não deram em nada, desilusões, rematados fracassos após esforçadas tentativas, pó de estrada, roupa encardida, cadeira de balanço no umbral e o deserto, estragos e mochila rota, safras goradas, batalhas perdidas, que tornam esses dois discos absolutamente incomparáveis. E seus criadores parecem encarnar o espírito do Lancelot de Bresson. E após o sem sentido da vida e dos combates, alvejados, eles e seus cavalos sangram no bosque. E o bosque é o Diabo. Mas eles têm uma ideia. E uma paixão. E não precisam mais que isso. Ainda que também a distorção disso possa representar a matriz de todos os males.
E, como se não bastasse, há um repercusso da terra e da gente que nela mora. Um senso de história. Algo da ordem de se estar próximo, rente de onde se deu e dá a real coisa: Dixie. Sem importações. Sem adaptações britânicas ou europeias - que também não soam menos instigantes. Mas é coisa de outra ordem, bem entendido. Há bastante terra em seus bandolins, pífaros, rabecas, acordeões, gaitas, clarinetas, pianolas e naipes de metais. Nós que somos da América, de alguma forma nos entendemos. Por alguma cifra, apesar das imensas distâncias. (E às vezes não esquecemos disso?)
Há também o itinerário mais errático, trágico, violento da banda, que repassa bem a ideia do que é a cena pop menos o glamour. Eles são mais efetivos, como músicos, em espetáculos ao vivo que os de Liverpool. Disso me convenci primeiro. E foi apenas um passo para concluir que no estúdio se dá o mesmo. Em geral, session musicians são virtuoses a serviço de outros. Outros não tão bons tecnicamente, como músicos, mas mais inspirados como compositores ou performers. O ponto é que nesses discos iniciais, eles conseguiram ser as duas coisas. Ou pode-se dizer que foram session musicians de si mesmos. Ou uns dos outros. E depois em The Band há os cinco músicos que eu gostaria de ter sido. Pegando algumas qualidades aqui, lá, e montando o Frankenstein sonoro. 
Na primeira margem, as arrepiantes vozes de Helm, Danko e, em especial, Manuel.   E, melhor, acompanhadas da vasta gama de instrumentos que cada um toca, e que eles revezam entre si, como também o protagonismo da voz. Manuel cantava como se os prazeres e chagas do viver fossem, não postos em perspectiva, mas presentificados em seu timbre temperado a tabaco e bourbon. Mas isso só pôde durar pouco mais de dois discos, pois a carga auto-corrosiva de uma vida assim não podia deixar a voz ir mais longe. Os preços que se tem de pagar por certos pactos.
Na economia geral da Banda, é ainda notório o esforço que Robertson faz para aparecer. E nem precisava. Não é um tremendo guitarrista. Mas é suficiente guitarrista. É o guitarrista de The Band, e um belíssimo compositor (e não menor letrista: se duvidar, escutem “Whispering Pines”). E pode ser que uma guitarra menos gárrula tenha aberto espaço para uma maior variedade de solos propostos por outros instrumentos. E, no entanto, Robertson tem aquele impulso (meio judeu?) de exorbitar-se na vendagem de si. Por exemplo, fazia de contas que cantava os apoios, quando seu microfone seguia desligado durante os concertos. Puro jogo de cena.
Do contrário, na margem de lá, o outro que não cantava, simplesmente respondia pela música em seu grau mais elevado. Uma espécie de concepção geral do arranjo. E, então, nessa  outra margem, no campo da pura música, há certa ambiência feérica criada por Garth Hudson. Algo entre o acordeon francês e os temas de parquinho de diversão, que sempre nos deixa no prejuízo, atirados à nostalgia. Ou então, pode pender para uma sonoridade que evoca a do harmônio, num coro de igreja. 
Talvez Garth seja um primo do alagoano Hermeto, que se perdeu lá pelo Canadá. Só que um pouquinho mais disciplinado. Ou melhor, mais domado, mais  rente ao senso comum, e voltado para um trabalho em prol de um grupo de rock. No início mesmo da colaboração, ele dava aulas de música aos demais. Como fosse um George Martin que efetivamente fizesse parte da banda.
Há um momento que ilustra isso. É na performance ao vivo de “It Makes No Difference”, tal qual está registrada em The Last Waltz, o legendário filme de Scorsese.
Durante a execução dessa balada, Robertson contorce-se todo, e finge que canta. Ou entre os versos, lança-se a solos de guitarra. Apenas bons licks. Nas mesmas vezes, Garth responde lá detrás, em continuidade, numa perícia e desenvoltura incomuns em prol não de si, mas do todo. Como a insinuar a invisibilidade da música, que, feito o espírito, sopra onde bem entende e quer. E, ainda assim, Garth o faz totalmente a serviço da canção. E para, então, ao final, propor um solo de sax soprano de levantar a audiência e os pelos.
Garth Hudson parece um gnomo. Disforme e, talvez, desagradável à primeira vista. E até a segunda. Ele vive à sombra. Ou melhor, parece com música, aquela arte aparentemente insubstancial, da ausência, que surge do inesperado, e talha o tempo. 

E ilumina o mundo.


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Em seis anos de Blogue, por um pudor calculado, jamais postamos um vídeo sequer. E, já que é inevitável que o vídeo adentre a cena do hipertexto¹, seja cada vez mais parte dele, aí segue o primeiro:





NOTA À NOTA
¹Que lamentável termo - e esses termos quase sempre não duram muito. Minha aposta vai por ele retornar a texto, que desde sempre é (e foi e será) amplo o suficiente para receber bem mais que vídeos.
OUTRO ADENDO INDEPENDENTE DA NOTA
A quem quiser mergulhar melhor no processo de feição desses discos - mais especificamente do segundo: há um documentário na íntegra, em cinco partes, no youtube: "The Band: How 2nd Album Was Made".

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