domingo, 9 de outubro de 2011

Converte-se em borra indistinta e fria: Tranströmer

Theo Van Doesburg, Composition in Gray (Rag-Time), 1919



Spår

På natten klockan två: månsken. Tåget har stannat
mitt ute på slätten. Långt borta ljuspunkter i en stad,
flimrande kallt vid synranden.

Som när en människa gått in i en dröm så djupt
att hon aldrig ska minnas att hon var där
när hon återvänder till sitt rum.

Och som när någon gått in i en sjukdom så djupt
att allt som var hans dagar blir några flimrande punkter, en svärm,
kall och ringa vid synranden.

Tåget står fullkomligt stilla,
Klockan två: starkt månsken, få stjärnor.


Tomas Tranströmer



Tracks

2 am: moonlight. The train has stopped
out in the middle of the plain. Far away, points of light in a town,
flickering coldly at the horizon.

As when a man has gone into a dream so deep
he'll never remember having been there
when he comes back to his room.

As when someone has gone into an illness so deep
everything his days were becomes a few flickering points, a swarm,
cold and tiny at the horizon.

The train is standing quite still.
2 am: bright moonlight, few stars.

[Versão de Robin Fulton]


Pistes

A deux heures du matin: clair de lune. Le train s’est arrêté
au milieu de la plaine. Au loin, les points de lumière d’une ville
qui scintillent froidement aux confins du regard.

C’est comme quand un homme va si loin dans le rêve
qu’il n’arrive à se souvenir qu’il y a demeuré
lorsqu’il retourne dans sa chambre.

Et comme quand quelqu’un va si loin dans la maladie
que l’essence des jours se mue en étincelles, essaim
insignifiant et froid aux confins du regard.

Le train est parfaitement immobile.
Deux heures: un clair de lune intense. Et de rares étoiles.

[Versão de Jacques Outin]


Linhas

Duas horas: luar. O trem parou
no meio da planície. Ao longe, os pontos de luz da cidade
pulsam friamente no horizonte.

É como quando um homem vai tão longe no sonho,
que sequer lembra de ter estado lá
ao voltar para o quarto.

É como quando alguém vai tão longe na doença,
que o que seus dias foram um dia converte-se em borra
indistinta e fria no horizonte.

O trem segue perfeitamente imóvel.
Duas horas: luar intenso, poucas estrelas.

[Versão Brasileira, Herbert Richers]


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NOTAS

Tomas Tranströmer é o poeta sueco que ganhou o Prêmio Nobel três dias atrás.

Na versão em francês de "Spår" [a pronúncia é algo próximo de como a gente diz "expôr" em português do Brasil - ou seja, carregando as tintas no "i" por "e" ao início, e mudando o "x" em "s"] não há título, senão uma indicação de que o texto é um extrato de Bálticos (Östersjöar, 1974). Portanto, o título da versão em francês foi acrescido por nós apenas para manter certa unidade editorial entre as versões e o original. O mais provável é que o próprio Tranströmer haja posteriormente titulado um trecho de poema longo como poema curto. Ou mesmo um poema curto ohne Titel. Mas isso é apenas hipótese.

A versão Herbert Richers é, sobretudo, um cotejo entre as soluções para o francês e inglês. E também uma escuta de como soam as palavras em sueco.

A solução menos ortodoxa de todas, na versão  H. R., foi a de lançar mão do termo “borra” [2º v. , 3ª estr.], quando mais aproximadamente, em prudência, deveria ser “enxame” (“svärm”) ou no máximo “colmeia”. Outra opção foi, já na linha inicial, suprimir o “da manhã”, já que logo em seguida vem “luar”. Mas isso faz parte do incontornável jogo de perdas e ganhos da tradução. Ter de escolher entre "borra" ou "enxame" ilustra bem aquele inevitável, clássico conflito: optar ou pelo impulso do momento ou pela racionalidade (às vezes estéril) da revisão. O impulso venceu esta (e isso é bom, porque ele tem vencido poucas e boas nos últimos tempos).

E venceu contra muita coisa. Inclusive contra a tendência de ser o mais literal possível. E, logo, "enxame" seria a solução. E até pela proximidade fonética com "svärm" [que também reverbera nas outras duas línguas "swarm", "essaim"]. Mas algo me disse para não ser "enxame". (Algo que não sou eu -- apesar de não haver outra pessoa ao redor) Para preferir "borra". Ou mesmo "feixe".

Sim, e há o título que também poderia ser "Mãos" ou "Pistas", tal como usamos corriqueiramente no contexto do tráfego. Ou ainda "Faixas". Mas a transposição mais literal vai mesmo por "linhas". No sentido das "linhas férreas", das "linhas ferroviárias" que tão obviamente apontam para o verso, por igual.

O fato de não haver traduções de Trasntömer no Brasil reunidas em livro - há para o português europeu[¹],  embora decalcada da tradução alemã - passa recibo de nossa negligência. Nos Estados Unidos, ele foi traduzido por poetas renomados como Robert Bly e Robert Hass. Este último, aliás, pode ser encontrado, em tradução, aqui por Afetivagem

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[¹] Causa certo arrepio pensar que um dia nossa variância de português venha a ser chamada de "brasileiro"; e como uma língua autônoma. "Brasileiro" parece ser mais profissão que língua [como funileiro, padeiro, jornaleiro, carvoeiro, mineiro, violeiro]. E sequer figura entre os gentílicos mais usuais, que terminam em -ês, -ense, -ano, -enho, -ão, -ino, -ol, etc. De outra forma, há uma distância ainda maior, entre o português europeu e o brasileiro, que entre o inglês britânico e o americano. Com a ressalva de a variante brasileira provavelmente soar mais agradável e cool que a europeia aos ouvidos de quase qualquer falante de outra língua; e ao reverso do  inglês - em que os americanos têm, aqui, um permanente complexo de inferioridade. E digo isso por experiência. Ou seja, pelo depoimento de falantes de outras línguas. No plano pessoal, escuto tantas e diferentes belezas nas mais diversas variantes do português, que seria difícil escolher só uma. Até mesmo aquele sotaque caipira do interior de São Paulo [Sorocabano], cujo peculiar "r" vem da dificuldade de certas tribos indígenas[ª] em pronunciar o "r" aspirado, tem lá suas belezas e uma linda pronúncia do "s", para compensar.

[ª] Isto é, de seus descendentes mamelucos, reduzidos pelos jesuítas. Grosso modo, os guaranis e as tribos mais afins deles.

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APPENDIX

"Spår". O nome de Tranströmer tem algo de transtorno. Assim como sua poesia  mística, musical.  E, ainda assim, contida. Fria. ["O escritor está a meio caminho de sua imagem"]. Fria na superfícíe, talvez. Pois como diz uma amiga em mensagem recente: "homens contidos e discretos, que têm um vulcão por dentro".  Um poema desses bate com a descrição. Um poema desses situa-se "a meio caminho de sua imagem". Não se deve deixar passar em branco.

Ele me lembra outro poema. De Júlio Castañon Guimarães. Não estaria o poema de Castoñon Guimarães um tanto circunscrito -- de uma forma boa -- dentro do poema de Tranströmer? E é mais que provável que Castañon passasse longe de Tranströmer quando escreveu este poema:


Estudo para ontem


tanto quanto se sobe a Mantiqueira
tanto quanto noite adentro
a Mantiqueira te envolve com o frio
tanto quanto à noite no alto da Mantiqueira
os perfis escuros das árvores
marcados contra a noite
assim quase imóveis na cerração que corre
tanto quanto na Mantiqueira
se chega a tal ponto


a tal ponto da memória
em que ao longo das curvas
lento se recurva sobre si o corpo
contra ele próprio envolto
e uma espiral desaba desenvolta
até os confins de outra cerrada cerração
tão remota tão sem repercurso
que sequer se pode entrever
a manhã clara e o espaço aberto
dentro em pouco sobre a Mantiqueira


a noite sim a noite insiste sempre adiante
tanto quanto se sobe a Mantiqueira
para que melhor se desfie a espiral
que desce até quando
o corpo sobre outro se envolvia
até mesmo quando lá no alto
em meio às árvores
ainda eram desde sempre
os únicos personagens do horizonte
mergulhados num silêncio
tanto quanto se sobe a Mantiqueira
a cada curva da espiral
num silêncio que subsiste
concreto como uma sombra

Júlio Castañon Guimarães
(do livro Matéria e Paisagem, 1998)



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