O Eremita
Perdeu os pais e a filha. A mulher, os sócios, a casa de praia. Uma das vistas para o mar. Uma das vistas. O hábito de sorrir.
Em desoras andava pela Rua Carlos Vasconcelos com o rosto envolto em molambos. Não tinha amigos.¹ Nem credores. Nem ninguém.
A casa, um sobrado à esquina, arruinou-se. Alguns mendigos tentaram se acomodar, infiltrando-se pelas janelas desguarnecidas. Ele os afugentou.
Poucos na rua sabem dele. E dizem que, quando mais jovem, fora professor. Não sabem mais que isso, para além de um lance ou outro de sua tragédia pessoal.
A ninguém permite que se “intrometa” em sua vida. Não vendeu a casa. Ou buscou internar-se numa clínica. Quando a ferrugem roeu de vez a bicicleta, não comprou outra. O mesmo havia feito com o carro.
Uma noite, não tinha mais dinheiro. Sequer para cigarros. E a chuva não lhe permitia catar baganas na rua. Relâmpagos davam à casa a luz que há tempos fora cortada.
Deitou no chão. O chão estava em poças. Goteiras soavam ao longo do velho sobrado, a percorrer sua ruína por corredores, vestíbulo, despensa. Ainda assim, conciliou o sono. E entrou a sonhar que fumava. E, verdade, nunca fumara melhores cigarros. Havia uma bela mulher que lhe entendia, lhe cobria de carinho. Havia vinho. E uma bancada de frios finos. A mulher nada exigia dele, que não fosse justo exigir. E em compensação: lhe dava tudo.
Na manhã seguinte, ao percorrer o quintal, a face oculta pelos molambos ao modo de um niqab, deparou-se com um pé de cigarros.
Colheu alguns.
Fumou.
E embora um estivesse verde, pôde confirmar que eram os cigarros do sonho.
__________
¹As mesmas garotas que choravam à assistência de Edward Mãos-de-Tesoura, achavam-no repelente. Podiam denunciar sua simples presença à polícia. Talvez seja essa a distância entre o mundo do faz de conta contado em filmes, óperas, livros; e o mundo do faz de conta real, que não é nunca tão glamuroso assim (descontado tudo que diz respeito à Duquesa de Alba e a uns poucos outros).* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário