terça-feira, 11 de outubro de 2011

Tua caligrafia em parelho com a voz um pouco tremida

[s/i/c]


Crônica com um crônico excesso de e's

Naquela vez em que estivemos na Taíba, num duplo surto -- de brejeirice, acanhamento -- tu disseste que costumavas fumar maconha em passeios de carro pelo entorno do Recife à época da ditadura. 
Através da janela, desabilitada pela cortina ao modo de para-sol, vinha música, que, no proceder de brisa, soprava em permanência pela casa, impregnando-a. E antes parecia tocar meu ombro de tão efetiva e Bach. E antes fazia-se ouvir até na ausência. (Ou mixava-se ao aroma do único café adoçado que eu gostava na face da Terra, apesar dos protestos de A. Lembras?). E do leste, o marulho. Ou o alvo das altas dunas sucedendo-se no breu, com seus avanços e recuos, em recortes lúbricos, a cavar pequenas enseadas onde canoas oscilam, como redes, sua sinuosidade móvel. E, antes, os meandros do Siupé riscando as dunas.
Na tua boca, até Barthes. Toda aquela algaravia dos franceses soava graciosa. 
E falamos do poeta. Das vendetas literárias. Dos que se tomam a sério. Os infelizes. Dos teus livros sobre o poeta. Daqueles paulistas filhos de uma égua e de um senhor provincianismo. E dos livros que não publiquei. Nem publicarei. Porque o melhor de um livro: estar sempre a escrever. 
E rias a despregar bandeiras.  
E tudo isso foi bom. Mas não foi o melhor.
E foi quando brincamos de dizer as palavras que mais gostávamos ao longo da noite. Só para jogar conversa extremamente fora. Extremamente. 
Não era o poeta que tu gostavas que gostava de terminar o verso na desorientação sintática de um advérbio que não se sabe se avulso ou se vai com o precedente da frase?
E logo tu conjugaste uma fazenda inteira no interior da Paraíba. Com seus pastos, várzeas, bichos -- com uma menção honrosa aos patos -- açude do meio, canaviais. Manhãs amenas, tardes agrestes, ocasos ligeiros. Nomes a confinar pequenos distritos. Sítios. Velhas cercas¹. Vontades de gente. E a necessidade de percorrer as alamedas do jardim. 
Fazias isso de improviso e patins. Como fosses uma estréia, a cada de novo. Novas em folha eram tu, a situação, a manhã. 
E quem mais, prezada amiga, podia ter palavras assim a dizer, e como senhas de uma sociedade secretíssima, de códigos impermeáveis aos falsos esnobes? Bingo!
(E passarinho me disse para não me ocupar com semelhantes metafísicas)
E ficamos na varanda jogando cartas até a mesa impregnar-se de salsugem. Jogando cartas e sempre a colher maduro. O jogo era apenas o pretexto mais correto. Cartas eram mais que uma brasa através. E contaste como o cinema te fizera fumar. E as cartas, ao roçarem o tampo da mesa, nos devolviam aos dedos a umidade da maresia. O vinho seco atingindo aquele pico de sabor supremo a que chega só um pouquinho antes de avinagrar. 
Futebóis. Brinquedos. Veraneios. Pescarias. Patins. E o teu gosto pelas serras.
E o muito rir na tua voz um pouco fanha.  Nos t’s do teu sotaque. E a me dizer que em março próximo Murilo irá à tua casa. Instalará o Skype. E vamos poder esticar ainda mais para noite alta a prosa.
Faz tanto tempo. Uma eternidade até o recortado da infância. Uma viagem até o ponto imaginário onde a luz da estrela morta foi emitida quando o recortado da infância reanimou-se na noite taibana.
Um repuxo de preamar se fez ouvir quebrando forte sobre os recifes. E a tua paixão pela gramática. E tua caligrafia, em parelho com a voz, um pouco tremida. Um pouco contraída.
E veio em nosso auxílio o guincho do gavião do mangue estraçalhando vidraças nos longes da manhã. Para bater as horas. 
E então Mestre Bil, a trazer camarão, postas de arraia, bocados de cação. Ora, vamos, passar bem de vez em quando não é contravenção. Ora vamos passar bem de vez em quando. Passar bem.
E enquanto A. -- às reprimendas de "vão dormir, seus insanos" -- empurrava tua cadeira de rodas para dentro, uma luz intensa coava-se pela ampla janela da fachada. E ventos puídos ventos sopravam. E a casa de praia adernava entre areias. E uma ideia de veraneio passava pelo sono de todos com filigranas de se pegar aquele bagaço formidável, cheio de ases, reis, rainhas, melés.
E agora, que só te posso visitar nas cartas -- e elas começam mais ou menos com um: “graças a Deus, aqui vai tudo bem” -- marco a lápis algumas falas. Tuas pequenas civilidades, do tipo: “já estou lendo seu roteiro, mas não deu para terminar, aguarde mais um pouco”.  E melhor: “você ainda pretende voltar ao sertão para fazer mais fotos ? Se for, eu tenho uma ‘encomenda a fazer’”.
E, bem sabes: “e, molhadas nessas águas-imagens, impercebida e rastejante, uma insinuação de presenças invencíveis se propaga”.
E não esqueci: "o convento de Ipojuca é mais bonito que o de Sirinhaém". E agora, que atravessaste o rio, quem assumiu teu posto em Olinda, no Arquivo? Quem prova café na saleta do Rosarinho (Guarda o Lethe algo do Persinunga?) E, de patins, inauguraste a manhã. 
De patins.

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NOTA

¹"Cerca" aqui não tem o sentido usual de madeira trançada ou madeira e arame farpado demarcando uma propriedade. Mas o sentido -- muito mais sutil -- que os antigos (diga-se umas quatro gerações atrás) ainda tinham de "cercas nativas". "Cercas nativas" não são só cercas vivas, sebes, mas algo no trecho de vegetação espessa que demarca um determinado terreno. Vegetação espessa só existe nas serras, no Ceará. E nas serras e no litoral da Zona-da-Mata, no restante do Nordeste, excluído a banda do Maranhão que é já  Amazônia.


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