quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Nenhum veredicto no espelho

Robert Smitson, Corner Mirror With Coral, 1968

Tu in ea et ego pro ea

Existem bicicletas de seis selins e pessoas como a Duquesa de Alba que, ao ver-se na imagem, não demandam do espelho nenhum veredicto, tão certas estão de algo. E se aparentemente qualquer homem parece demasiado jovem para María del Rosario Cayetana Fitz-James Stuart y Silva, isso não é mais que uma ilusão ótica. Seria difícil tão-só pôr seu nome completo num twitter. Acima segue apenas uma desprezível abreviação.
E o que seu nome carrega? Os mortos das guerras de Holanda? As úmidas tardes de Escócia?
Ela resolveu casar-se por mero gosto pela circunstância?
Sabia que as más linguas nas redes sociais iam trilar, ao alcance de seu olhos curiosos, azeitonados:
"E ao final da boda de Caetana de Alba o cura disse: 'Pode beijar a múmia!'".
Há grosseiros ao alcance de todos, Duquesa. Portugueses rudes a evocar certo passo d'Os Lusíadas. Filhos ingratos. Reis dispostos a lhe aconselhar seguir viúva. 
Bicicletas de seis selins equilibrando-se entre relógios. Bicicletas de seis selins são, digamos, como aqueles dias em que nada acontece. Ou se acontece, é lacunar. Jamais preenchem todos os seis assentos. Ou os ocupantes se põem a pedalar com o mesmo empenho. A vida de quase todo mundo transcorre um pouco assim. Oxidada, depois de algum tempo. Do contrário, com os seis lugares plenos e bem pedalados segue a vida de Cayetana Fitz-James Stuart y Silva. Há nela algo de monja?
Em verdade, quem sabe o que vai de selvagem alegria nessa mulher? Ela tem 85 anos, mas caminha com invulgar desembaraço após as bodas em meio à comoção popular: artistas, toureiros, apresentadores de TV. O clique posto-ali dos obturadores. O espocar dos flashes. Não esperem que seu vestido tenha mais dobras e babados que a pele. Não esperem uma pele de arminho. Ainda é começo do outono.
“Tu nela, e eu por ela”. E a duquesa espanhola por todas nós, pensou uma mulher sobre o mundo, numa terra estrangeira, vagarosa, ao revisar as fotos: "ela já está morta e deambula". E a duquesa – cujos lábios parecem pregas, hérnias, bordas de chagas sobre os olhos achinesados pelas plásticas – assomou bem mais à vontade que seu recém-marido, plebeu e um quarto de século mais moço.
Sim, uma espécime em franca extinção, a Duquesa de Alba com seus cabelos crespos. É o ser vivente com mais títulos nobiliárquicos na face do planeta.[¹] Sanguinolentos tiranos na linhagem. Poder. Chuvas e frios ingleses. Maquiavélicos conchavos em família. Crises de consciência. Autos-de-fé. Iâmbicos pentâmetros. Parques de caça privados. Chás. Águas termais. Patisseries. Saraus. Museus. Fundações. Festivais. Verões baleares. Cannes. Tédios. E o peso de tudo isso na aba de seu nome[²]. O peso de tudo isso, enfim, dividido em pacotes de 200g de alpiste dado aos dias, como pequenas misérias a um biógrafo. E, no entanto, após a boda, nos jardins do Palácio de Dueñas, descalça sobre as pedras,  e ao contrário das tartarugas marinhas, dos peixes-boi, das chinchilas ou dos tamanduás – que têm compungidos ambientalistas a lhes antecipar rascunho e obituário – Cayetana Fitz-James Stuart y Silva dança uma violenta sevillana.




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[¹]O titular da Casa de Alba conta com prerrogativas especiais como Grande de Espanha. Não precisa, por exemplo, ajoelhar-se diante do Papa. Ou pode entrar montado a cavalo na Catedral de Sevilha.

[²] Foi, de resto, com o pensar em um antepassado dela, também titular do ducado, que Virgilio Piñera escreveu um poema que traduzimos AQUI, em 2008.


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