terça-feira, 24 de maio de 2011

Para onde mais uma vez fora, difícil dizer

[s/i/c]

A Sonhadora

No extenso subúrbio para onde a cidade crescia, plano e recente, pleno de shoppings e do novo tipo de vida, ainda mais americana, em torno de uma avenida congestionada, zonas comerciais condensadas, endentadas no meio de condomínios de casas e o tudo resolver de automóvel, ela vivia. E, por vezes, chegava em casa tão cansada que, ao abrir o capítulo de A Língua Absolvida, deitada na rede do quarto, o dicionário ao alcance de seu delicado braço, não mais que página e meia percorria antes que o sono a colhesse para o estranho passeio de um sonho recente.
Era terça-feira no espelho. Era quarta-feira. E nas prateleiras, junto à janela de seu quarto, havia alguns livros. Não com as lombadas à vista, como nas bibliotecas, mas empilhados uns sobre os outros; porém numa feição aparentemente ordenada. Na prateleira inferior, de vidro, havia dois ou três porta-retratos, algumas miniaturas e uma boneca russa, daquelas que porta muitas outras dentro de si, à medida que se a vai descascando --- ao modo de um cacho de personalidades menores embutidas em uma maior. Será que assim também são os bonecos de carne e osso, feitos de barro, e com vida assoprada em suas narinas? Quem o saberá, Princesa.
Ela não me ouve. Tão extenuada chegou do trabalho que só teve tempo de tomar banho e um copo de Coca-Cola com uma nédia fatia de bolo de chocolate, antes de atirar-se à rede para absolver a língua e deixar-se tragar pelo vasto espectro do sono, com o sonho dentro dele, mais ou menos temperado pelos ruídos da TV, ligada em volume baixo, e o invariável ciciar dos grilos, lá fora.
Para onde mais uma vez ela fora nos sonhos, difícil dizer. Para praças, florestas, ruas, piscinas que nunca saberemos. Para o fundo do mar, o tempo marinho e calmo, onde, não raro, fazia seu caminho por entre extensos arrecifes de coral com sapatilhas macias e um pendor por desfrutar amêijoas, vinho branco e lagostins. Quem o saberá. Para serras e vales sem geografia. Para aquelas simultaneidades de lugares e có-fusões de pessoas que só possíveis nos sonhos.
Mas havia um lugar onde sempre ia.
Parece que para a Alhambra.
Nos sonhos, era amiga de uma das preferidas do Emir. E costumavam sentar juntas, à amurada, e trocar alguma confidência, a contemplar a mesma ravina por onde o Darro escorria, na cava do vale. Às vezes passeavam lentamente ao longo das ameias de onde, de quando em vez --- era ao cair da tarde --- os sentinelas alternavam senhas e ordens, em tom áspero, na algaravia de r’s e m’s e l's sobressaltados.
Sua amiga então, lhe falava da tediosa vida no harém dos abencerrage. E de como elas tinham de inventar jogos para suportar a reclusão tamanha. E qual eram o teor desses jogos. E quem se dava melhor com eles. Sua amiga tinha profundos olhos negros, quase tão crueis e tentadores, quanto aquilo que não mais se lhe via do rosto, sonegado pela astúcia do veu. No diáfano podia-se adivinhar-lhe o afilado do nariz, a tez morena contrastada por um luminoso sorriso branco. Mas os olhos, apesar de crueis e belos, eram por igual tristes. Com o globo ocular nadando, suspenso, sobre aquele excesso, um lago branco, sublinhando-o e que, dizem, faz prenunciar as mortes violentas.
E então, conversavam aquelas coisas de mulher. Aquelas coisas de mulher que, hoje, por muitas inversões de valores depois, são cada vez remotas, cada vez coisas de homem; pois ao feminismo, apesar de aportar tremendas conquistas, lhe coube um defeito: não cavou um veio próprio, uma solução diferente, um lugar alternante, profundamente original para a mulher --- ao convertê-la, como o homem, em apenas mais um ser alucinado por poder. E nesse certo e definitivo rumo, as mulheres ficaram apenas mais parecidas com homens. E, porém, à hora do sonho, as duas ainda falavam de tecer, de fiar, da textura de certas sedas, de ter filhos, criá-los, das bençãos de Alá, da beleza do Alcorão e, sobretudo, claro, do amor e seu terabytes de ressonância.
Sobretudo, trocavam receitas e versos. Quase de cor. Confeitos de marzipã, ovos à flamenca, salmorejos, vinagres de jerez, a manteca de cerdo, a ternera, o pringá, as pavías. Ou versos de uma poetisa que só viria à luz muitos séculos após, e, mais ao norte, escreveria: 

El namorado está de min... ¡o deño!
i eu namorada del.


Depois de um fundo suspiro, abraçavam-se e se despediam, pois a noite havia galopado pelo vale do Darro e caído sobre as muralhas; e o toque de recolher vibrava já, pela terceira vez, por toda a fortaleza. E, logo, ao despedir-se da amiga, ela afastava-se pelo alfazar entre as oliveiras. Deixando para trás a profusão de entalhes, arabescos. Os ladrilhos e os azulejos. A sobreposição dos arcos e a prodigalidade das cores. O jogo de sombras e luzes ainda a velar ao ocaso. A densa simetria dos pátios. As piscinas e os chafarizes. As bicas e aquedutos. O último que ouvia, pelo alfazar afora, era o murmurinho das fontes. E depois um estranho silêncio a poupava, para tornar a fazê-la ouvir o murmurinho sob outra clave, e naquele breve instante, mágico, em que se está na encruzilhada, no limiar entre sonho e consciência. Modulando o ouvido para passar, após pequena vertigem, do interior ao exterior por meio do labirinto. 
De volta ao quarto, no subúrbio recente, quantas vezes não acordava à madrugada em curso e, em vez, do murmurinho das fontes, a chuva era que caía, sem aviso prévio, lá fora. À prazo. Num fim de maio. Temporã.
E, então, ela depositava A Língua Absolvida - que dormira sobre seu corpo - no tampo da escrivaninha, ao lado do Macbook, e, depois de despir-se em jubilante desordem, e saltar a janela do quarto, para o pequeno quintal, lavava a alma sob a maciez fria da chuva. As gotas a reanudarem em seus cabelos, suas feições, uma linhagem e um semblante que só se reconheceria na graça das mulheres merínidas.

* * *

2 comentários:

  1. Então essa era a surpresa!!!
    Nem preciso dizer o quão lindo achei este post :o)

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  2. P.S. E por muitos motivos eu leria esse livro, porque afinal:
    "Canetti é alguém que sentiu de forma profunda a responsabilidade das palavras; e muito de sua obra esforça-se por comunicar algo do que ele aprendeu a respeito de como prestar atenção ao mundo."

    Susan Sontag

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