segunda-feira, 16 de maio de 2011

Outra alegria mais clara: Fausto Nilo

[s/i/c]


Da versatilidade frásica de Fausto Nilo, poeta


Há um trovador provençal. Seu estilo era hermético. E seu nome, Peire Raimon de Tolosa. Seus versos mais famosos são:

Atressi cum la candela
que si meteissa destrui
per far clartat ad autrui,
chant, on plus trac gren martire,
per plazer de l'autra gen.

Que podem palidamente ser traduzidos como:

assim como a candeia
a si própria consome
para esclarecer gente alheia
canto fundo meu tormento
para o prazer de outra aldeia

Toco nisso, porque lembro do apreço que Fausto Nilo nutre pela poesia dos trovadores. Na verdade, em certo rumo, Fausto se converteu num deles. Lembro de haver, certa feita, escrito um artigo para O Povo, em que defendia a tese de que o canto de cisne, não só de Raimundo Fagner, como de todo o propalado Pessoal do Ceará, havia sido o magnífico – e elegíaco – álbum Beleza, de 1979.
Alguns dias depois recebi um imeio de Fausto. Ele, muito educadamente, como usa ser, contrargumentou que não era bem assim. Que eu estava fechando a questão um tanto sob um ângulo extra-musical. Ou extra-estético. Ou seja, que o fato de a música de Raimundo Fagner se haver tornado mais popularesca, ou mesmo cortejado o número, não impediu que também, eventualmente, fosse calcada em canções de grande voltagem musical e refinamento poético.
Depois do que lembro? De vagamente sair da Desafinado, certo lusco-fusco, conversando com Fausto a lhe indagar – provavelmente pela milésima vez – sobre a confecção do Beleza, ao qual além de contribuir com letras, ele também desenhou a capa. Seguíamos Dom Luiz acima, e, claro, devido ao horário, havia um tráfego medonho na avenida. Lembro que estava do lado exterior da calçada – das exíguas calçadas de Fortaleza – e, volta e meia, pisava a pista, desviando-me dos carros para evitar os transeuntes e o pessoal que esperava nos pontos de ônibus. Os automóveis, no entanto, passavam muito rente de onde meus pés. Eu fazia isso quase inconsciente, levando fé em minha capacidade de driblar obstáculos em caminhadas. Porém, numa das vezes em que estava com os dois pés na pista, senti uma mão puxando meu braço:
Não faça isso – disse Fausto – esse negócio é perigoso. Sei que você é jovem. Mas, repare, eu já vou para sessenta. A gente quando ganha em anos perde um pouco de reflexo. Inevitável ver uma fração a mais de perigo em tudo. Boa garantia é andar nas calçadas. Mesmo que se espere um pouco.
Aquele senso de cuidado, cautela e, sobretudo, de medida, de espaço, só poderia provir da conjunção dos dois ofícios de Fausto, que, de resto, causariam inveja a João Cabral (a despeito de este não gostar de música -- à exceção do frevo e do flamenco): arquiteto e poeta – embora Fausto reitere que não; não é poeta, mas letrista. Isso, contudo, é já outra discussão, longa e inconclusiva. Não para já.
Mas, sim, Fausto tinha razão. Há canções de grande requinte – e não poucas – da fase pós-Beleza. E em parcerias diversas, com Moraes Moreira, por ilustração. Mas, em especial, fico com duas, que me parecem extremamente bem conseguidas: “Pedras Que Cantam” (Dominguinhos/ Fausto Nilo) e “Palavra de Amor” (Manassés/ Fausto Nilo).
Teria muito pano para as mangas para tecer alguma prosa sobre a primeira. Mas seus dotes são tão evidentes que seria perda de tempo. Quanto a segunda, sim; essa segunda, ao mencionar o “romance de amor” – gênero medieval – lança Fausto na intensa direção de sua pesquisa em torno da música francesa. Recordo de uma vez – e passamos de anos sem nos ver – ele me indagar se por acaso eu tinha notícia de algum detalhe sobre uma história em versos, um "rumance" – muito popular no interior do Ceará – , que fazia alusão a um aluno, que havia morto a pedradas um pavão, bicho do afeto maior de seu professor, e, pelo crime, ficara jurado de morte.
Sim, na verdade, tinha ouvido essa história da boca de minha avó. Mas sequer recordava o teor dos versos. Senão uma vaga melodia. O sentido geral da trama. E o número de sílabas ecoando na cabeça. Aquele cavername de ritmo. A medida (forma) ecoava em minha mente mais do que a trama (conteúdo).
Depois consultando em casa, descobri que J. Leite de Vasconcelos, o eminente filólogo português, a tinha recolhido em algumas variâncias e que, de resto, ela também havia  sido muito popular no Norte do Brasil, da Bahia ao Piauí. E provavelmente durante mais tempo do que se imagina, antes de a televisão arrasar essas finas narrativas, plenas de arquétipos.
Fausto Nilo provém delas. É uma espécie de ponta do iceberg. Vem de um tempo em que um garoto de classe média, no interior, podia absorver essas delicadas formas populares apenas por uma forte intuição de o quanto eram importantes. Na verdade, eram provavelmente essas formas que de fato se apossavam de um indivíduo. Mesmo de um jovem indivpiduo, que ainda se emocionou, às raias do pranto mal contido, ao relembrar a partida e sua pequena cidade, resumida à janela do vagão, em uma entrevista, alguns anos atrás.
Palavra de Amor” aponta para algo que o clichê (e a telenovela) ainda não atentou: a afectividade entre sertanejos é contida. Pode ser de uma deliciosa reticência. De um laconismo. Daí a fatura do verso que o calar fala mais que o filosofar. 
E, aqui, é preciso lembrar que Fausto nasceu em Quixeramobim e, por uma dessas conjunções astrais, praticamente na mesma casa que viu vir ao mundo ninguém menos que Antônio Conselheiro. "Palavra de Amor" também aponta, como umas poucas de outras canções, para essa pequena obsessão de Fausto – que, de resto canta como um diseur: a música medieval, e em especial, a francesa. Esse interesse de Fausto estica-se de um trovador antigo, Raimon de Tolosa – que possui o mesmo prenome de Fagner – à modernidade de Leonard Cohen, o judeu-canadense, em cuja tradição de grande letrista Fausto também pode ser inscrito. Aliás, há algo de judeu no temperamento de Fausto Nilo. De algum modo, até mesmo em suas feições. Mas também em certo cosmopolitismo desabusado que o rádio lhe legou desde criança. O poeta norte-americano George Oppen dizia: “em algum lugar a meio caminho entre o fato de ser singular e o fato de ser numeroso está o fato de ser judeu”.

Fausto é alguém que caminha nesse limiar entre o singular, o numeroso. Como arquiteto. Mas também como um homem com uma permanente canção. Sua memória de velhos sambas, de velhos reisados pastoris é prodigiosa. E quem quiser comprovar sua fertilidade com as letras – onde, no caso, além das lais francesas entra uma pitada de García Lorca – escute a canção abaixo. Há a habitual plangência da voz de Fagner e a perícia pop dos músicos do Roupa Nova nessa rendição de “Palavra de Amor” (Manassés/Fausto Nilo) no velho e bom tube, além da íntegra da letra, mais abaixo:



Palavra de Amor


Na divina claridade 
Em que você se iluminou,
O calendário seria 
Um dia de cada cor,
Futuro, ah, como eu queria
Te cobiçar, ventania,
Num romance de amor --
E a lua ainda mais clara
Queria escutar tua fala
Com palavra de amor.

Meu amor quando se cala
Fala mais que um pensador.
Me ensinou que a vida vai
Onde a saudade ficou
E enquanto a vida não pára,
Não pára nunca esse motor.
Outra alegria mais clara
Seria escutar tua fala
Com palavra de amor.

[Fausto Nilo]


CODA -  acho lindo o modo como a percepção musical de Fausto aplica o terceto final de redondilhas, cuja sonoridade é ostensivamente aberta e solar ("Outra alegria mais clara/ Seria escutar tua fala/ Com palavra de amor".) e melodicamente o expõe, como se na voz de cantadores sertanejos, à melodia de Manassés. Isso soa como -- lá sei -- um cego de feira. (Posso ouvir lá, ao fundo Cego Oliveira cantando esse terceto com a mesmíssima inflexão). Pode-se ouvir esses cantadores mesmo bem ao fundo da sofisticação pop - especialmente dos teclados - presente no bem apanhado arranjo do Roupa Nova. Louve-se também a interpretação de Fagner, cujo acento equilibra-se entre o sertanês (ou interiorano rural) e o cearense  culto (que são dois dos mais belos sotaques do português). Acho particularmente interessante o modo como ele pronuncia o terceiro verso, "um dia de cada cor". E por duas razões. Primeiro porque trata-se de um das imagens mais bonitas, esses dias coloridos de forma diversa no calendário. Segundo e muito mais importante, porque o canto aproxima-se bastante da fala, do coloquial. E então Fagner pronuncia o verso com todas as aliterações em "d" e a palavra "cor" é dita de forma tão rápida que parece murchar ao fim da frase. Penso que, em geral, os cearenses, piauienses e alguns potiguares falam assim, quase pondo em implícito esse "r" final de "cor", "amor", "pensador", "motor", etc. E, logo, muito diverso de como nos querem fazer falar nas telenovelas.
[de resto, não entendo como esta postagem moveu-se do dia 12 de maio para hoje, depois deste acréscimo ao final. Mistérios da meia-noite informática]

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