sábado, 28 de maio de 2011

Que só se guarda para quem de direito

 Aspecto da Praça Tiradentes em Ouro Preto [Eduardo Tropia]


Vila Rica


A chuva transia a serra de uma friagem agradável. A. pôs a tiracolo a pequena sacola jeans, com sua câmera fotográfica. E desceu do ônibus, sob o pulôver vermelho e preto, o short cáqui. Troquei os tíquetes de bagagem. Apanhei as mochilas de náilon. E com um aceno dispensei o auxílio do carregador.
O táxi desceu a colina, tomou à direita, pela Padre Rolim, os faróis roçando as muretas de pedra, onde numa espécie de nicho, está a pequena Igreja das Mercês de Cima. Cartão de visita inicial que parece te dizer: “ei, amigo, um tal de Aleijadinho andou esculpindo formas e riscando umas plantas por aqui. Veja se você acha alguma graça nelas”.
Eu seguia fumando no banco da frente, tentando mediar entre o diálogo com o motorista e o impacto do contato inicial com a cidade. Ela prosseguia calada. Discutíramos forte, aos sussurros – por sermos de discreta temperança – durante o quarto final da viagem. Motivos: aparentemente trívias; mas que deviam envolver uma polpa bem mais densa do que, então, nos era dado supor.
Cruzamos a Praça Tiradentes, onde, em torno do monumento, ao centro, cachos de pessoas conversavam sob guardas-chuvas. Abaixo dos beirais de cachorro e das rótulas das janelas, pendia uma infinidade de placas. E passantes metidos em capas chapinhavam sobre as poças d’água em busca das estreitas calçadas.
Na pousada, tomamos banho, jantamos, assistimos telejornal. Depois descemos para um passeio rápido sob a chuva rala. Um negro alto, robusto, meia-idade, envergando um boné de feltro, apregoava confeitos e recitava redondilhas:
Ouro Preto é o berço
Desta nação brasileira...”
O rosto dela crispado. Quando retornamos ao hotel:
Amanhã”, ela disse, quando a procurei. Quando a toquei mais íntimo, com toda a devoção daquele toque que só se guarda para quem é de direito quando se tem vinte e poucos anos. E, então, ela deslizou irritada e hesitante para as cobertas: “Tenho minhas razões.”
O quarto era pequeno, um pouco improvisado, despido. No primeiro andar de um velho sobrado em que alguém deve ter conspirado a independência do Brasil. Mal cabia a cama de casal, e abria-se por meio de uma sacada para a praça. Havia uma luminária em forma de rosa no forro de madeira. Mesmo os lugares mais charmosos pagam seu tributo ao kitsch. E é quando o kitsch acrescenta um contraponto agradável.
Desci uma segunda vez. Contrariado.
Tomei ladeira abaixo a Conselheiro Quintiliano como quem vai para a outra cidade, ao alcance do trem – aquela que, apesar de menor, é a sede do bispado. Coração batendo forte. Sentindo o latejamento das têmporas em fluxos de sonhos não digeridos. Tudo em volta era cartão-postal: Ouro Preto lá embaixo, luzindo vinte ou mais igrejas que nem vi direito. Andei pra mais de dois quilômetros.
Depois rezei. Fumei. Calmei.
Qual razão dessa paranoia descomunal que nos cerca à altura dos vinte. Dói muito mais do que se traduz, rapaz. E é muito mais prazerosa que o dizível. Ainda que nos fosse dado descrever em um in-fólio de incontáveis volumes passíveis de renovação ano após ano. E especialmente naquele tempo, em que uma caminhada dessas – cheia de drama e desejo – jamais, jamais poderia ser alterada por um toque de telemóvel.
Àquela hora, ponderei: ela devia estar dormindo. E eu ainda não havia esquecido o quanto ela estava bela ao entrar no táxi. Sua pele úmida, gelada, que beijei. As faces brancas, quase rubras devido à friagem serrana. entreabrindo a porta do táxi e acomodando-se no banco, sem nunca perder nesse ínterim a peculiar elegância de sua figura longilínea. Havia tanta intimidade que se estava cerca de prever quando o outro ia piscar os olhos. Essas intensidades inaugurais que a gente finge reencontrar depois. Mas, no íntimo bem sabe: não é a mesma coisa. Não é mesmo a mesma coisa.
De volta, a temperatura caíra. E minhas mãos tremiam ao revolver a chave na porta do quarto. Despi-me como num acesso de malária, e colei-me ao corpo dela. Abraçando suave suas costas. Beijando-lhe o dorso do pescoço, os ombros. Toda a sacrossanta nudez de seus dezenove anos.
Um murmúrio de falsos protestos empestou o quarto. Pelas venezianas réstias de luz drapejavam as paredes. A dialética do estar junto nunca mais seria a mesma, depois daquela viagem a Minas. Fora um rito. Uma viragem. E certas intrigas, mesmo quando aparentemente contornadas, tornam-se algo mais que acidentes de percurso.
Na manhã seguinte, quando abri a janela, Tiradentes permanecia impassível no alto da coluna. E a chuva que se fora, levara junto o lundu da gente. Após o café, quando fomos à feira, as faxineiras do pequeno hotel, que por acaso também se encontravam por lá, quase nos seguiam. E nos entrolhavam com indisfarçada inveja, sussurros, reprimidos risinhos.
Uma jardineira azul cruzou a praça.
Tudo seria diferente.

* * *

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