terça-feira, 24 de maio de 2011

As ondas aferindo no lábio as extensões de frase




Aspectos do rio, em Camocim, maio de 2008 [Acervo Pessoal]

Camocim – um resumo de nove anos, primeiros


Camocim começa no quintal da Rua Senador Jaguaribe, 289.[¹] Mais precisamente a meio caminho entre o alpendre dos fundos e o pé de cajarana, nas ondulações daquela areia escura que acolhe as cajaranas maduras, antes areia de praia. Das praias do delta do Rio da Cruz, que hoje chamam Camucim ou Coreaú. Arenosas praias, pontuadas volta e meia por uma carnaubeira arrancada ao deserto. Ou, por contraste, praias de mangue. Exuberantes viveiros. Na margem da cidade, repletas de seixos, búzios, vieiras, amêijoas, cracas, ostras. Praias salpicadas de sambaquis. Grifadas por canoas que trazem talhadas na proa nomes de mulheres. E uma água salobre, de foz de rio, batendo em seus cascos. O ciclo das marés impregnado nas pessoas como um relógio. O fluir e refluir das ondas aferindo no lábio as extensões de frases. A medida da conversa. Da prosa – como então se dizia.
Porém tornando à areia escura do quintal, mais adiante há uma cacimba e, do lado direito, um comprido galpão onde o pai do menino cria galinhas. Ao lado do galpão há uma bomba d'água, um pouco para além do pé de cajarana. Depois há algumas ruínas do que devia ter sido dois pequenos depósitos, restos de parede não cobertas; e, então, um muro cheio de limo ressequido, com um portão vazado, para além do qual há um altíssimo coqueiro, urtigas e lianas sobre mamoneiras, como fosse uma selva; e tudo é misterioso e distante. Como o nome Camocim nunca deixou de ser: misterioso, distante. Por mais próximo que estivesse. Por mais que a retina o tocasse, e o corpo imergisse nas águas. O nome contém o essencial. Apenas. Algo que não consta em etimologias (de resto, fictícias), e está mesmo é no olhar: a imagem dos seixos no leito do rio vistos através da água translúcida. Isso é de não. É de não esquecer. Símile mais essencial para quem, desde cedo, desconfia de metáforas.
O nome da primeira cozinheira é Iracema. O da primeira babá, Fátima. Uma é índia; a outra, negra, que o avô materno trouxe ainda pirralha, em uma de suas andanças pelo Outro Lado.
A vizinha da direita chama-se Nair e é casada com um merceeiro. Dona Nair é mais velha. A mãe do menino, mais nova.
Para entrar em casa há dois degraus e um cumprido corredor cheio de sombras. Logo adiante de casa, há a casa cuja sala da frente faz as vezes de uma das duas bancas de revistas da cidade, o que é como ofertar mel a ursos: que trazes pr'a mim?
Do lado esquerdo não mora ninguém. É que o vigoroso inverno de 1965 deu cabo da velha casa vizinha, expondo todo o oitão da casa deles.
O menino é o mais velho. O mais novo leva o nome de Flávio. E a mãe espera um terceiro, que será ainda mais novo, irá nascer em setembro e chamar-se-á Eduardo.
O pai lê até mais tarde. E tarde é entre dez e meia e onze da noite, quando a eletricidade da termelétrica dos irmãos Cela se põe, após um piscar de alerta. Às vezes segue lendo à luz de uma grande lâmpada à querosene: uma Petromax – chamava-se assim. Até, extenuado, dormir sobre o tampo da escrivaninha. No mais, trabalha num banco, e dirige um jipe de quatro portas. A mãe borda, faz croché e cuida da casa e dos pequenos. Conhece receitas de bolos, doces, tortas, compotas. Sabe de dimensões para roupas. Quando ficam doentes, lhes quebra a frieza da água e lhes lê histórias de terras remotas. Às vezes toca bandolim e conta histórias, sem lê-las. Às vezes canta até que durmam, embalando brandamente o punho da rede. Há canções de uma dolência cheia de tenacidade e vida. Como se a voz passasse entre as palmas do coqueiral que oscila esbeltamente onde quer que se esteja na cidade –apesar de que seja melhor visto, em toda sua propagação e sombras, do mar para a terra.
Não infrequente, nos longes da madrugada se ouve o apito do trem. Ou, certas tardes de sábado, em que o pai lhes leva para observarem as manobras, as locomotivas a cambiar de linhas pelo mover das agulhas, resfolegando, a ressoar na gare com estrondo de trovões.
Afora a praia e o lago, o passeio não vai muito além da chácara do avô, que se chama Oriente, entanto não exista placa, e o menino secretamente desaprove essa omissão – embora goste do sítio, do caramanchão à entrada, onde se enroscam fios de fruta-da-paixão.  E dos tios que ainda são solteiros e confeccionam enormes caminhões de madeira com amortecedores de lata de óleo de cozinha. E mais peões, arcos, zarabatanas e baladeiras. Joga-se muito futebol sob as fruteiras a meio-caminho da Rua Humaitá.
As baladeiras são para matar calangos, porque o avô gosta de passarinhos e os quer soltos. É o homem mais alto do mundo. E também muito solene, quando desce, de chapéu sobre a meia-calva, metido em seu impecável terno branco, de linho, a consultar o relógio de bolso, na direção da igreja.
A Igreja do Bom Jesus é o centro da vida – mesmo que as procissões de São Francisco deem mais gente que as do padroeiro. As atribulações são muitas. E a fé parece maior que todas.
No Natal há barquinhos de balançar na Praça do Mercado, um carrossel de cavalinhos de madeira, e um sem-número de tendas que não destoam do cinema. Coisa de árabe. Gravura do Tesouro da Juventude. Muito cedo, e a cidade já era só metade real; porque o resto, de tão formoso, só na ficção podia estar.
Um dia, a costureira de sua mãe, após tomar-lhe as medidas, lhe faz uma camisa de volta-ao-mundo. Um dia, o sapateiro de seu pai, após tomar-lhe as medidas, lhe faz um cinto e um par de alpargatas. Um dia, seu avô materno, João Evangelista Ximenes, lhe põe na garupa do cavalo e segue até sua chácara, que confina com o campo de aviação. Um dia, seu pai lhe presenteia com uma bicicleta que é uma réplica perfeita de uma bicicleta de adulto. Um dia, Tia Jacintha lhe leva para ver o navio, no porto. E o menino segue feliz. Um dia. Mais um dia. Outro dia. Suas medidas não cessam de mudar. As novas palavras soam carregadas de pesos e mistérios: volta-ao-mundo, alpargata, garupa, navio.

Ergo, cresce, se cria. Até então, nada de torto. Aprende a nadar, subir nos cajueiros, andar de bicicleta, jogar bola. Aprende a ler. A desafiar os colegas: quem nada para mais longe da praia à meio-caminho das ilhotas de mangue, por pura valentia, numa baixa-mar dessas? Na escola, gosta de História e Português. Com Lavínia, dança o São João. Com o irmão Flávio inicia uma coleção de gibis.

E vê muitos filmes de caubói.






[1] Soube que há coisa de uns cinco anos, para homenagear um político local, vereadores mudaram o nome da rua, que há mais de um século era conhecida como Senador Jaguaribe. Para mim, ela continuará sendo Senador Jaguaribe. Quando saímos desse endereço para morar na Rua Engenheiro Privat, também 289, praticamente à beira-rio, eu tinha 5 anos. Lembro-me mais da Engenheiro Privat, que era conhecida também como Rua da Estação, porque começava flaqueando a bela estação ferroviária da cidade, que data de 1881 e é  uma das mais bonitas do Brasil. Mas esse primeiro endereço, na Senador Jaguaribe, tinha sabor das primeiras coisas.



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