quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Tamanho amor ao mi, si, sol, ré, lá, mi


Capa do álbum Baden, 1968



A Pessoal Impessoalidade do Mago das Seis Cordas

-Ou Baden Powell e a possessão pela música


Roberto Baden Powell de Aquino, o garoto de Varre-Sai, cidadezinha do norte fluminense, quase no Espírito Santo, parece ter sido tocado por esse Espírito e varrido com seus dedos de mago com tamanho amor as seis cordas de seus robustos violões Hopf, desenhados especialmente para ele, que quase é preferível nada dizer, senão ouvi-lo. Em 26 de setembro próximo, e nove anos que ele nos deixou. Mas também nos deixou a inconfundível beleza de sua música.

Não é fácil explicar Baden. Ele sempre caminhou entre muitas fronteiras. Entre popular e erudito. Entre choro e Bach – um pouco ao modo de Villa-Lobos. [Mas de um Bach abrasileirado até a raiz dos cabelos]. Entre a Europa e os Afro-Sambas. Entre o romantismo derramado de Chopin e a imobilidade contemplativa, minimalista, calcada nas progressões de escalas, contrapontos e fugas da música barroca. Entre a compaixão cristã e o animismo dos orixás. Tudo isso encruzilhava-se no violão de Baden. E não há outro violonista brasileiro que sequer possa chegar perto do que ele realizou. [Talvez Rafael Rabello, se não tivesse morrido tão jovem].

Baden é inexplicável. O som que arranca do pinho é ao mesmo tempo sujo, porque ele não tem nada dos maneirismo asuavizadores da técnica clássica, e, no entanto, transparente e cristalino como água de rio depois de um dilúvio de chuvas. E essa transparência só revela um formidável desejo de traduzir [e renovar] uma tradição musical que, nele, parecia inata.

A magia de seus dedos sobre as cordas eram a confirmação de que “a inspiração é uma tensão das faculdades da alma que torna possível o grau de atenção indispensável à composição em planos múltiplos”, como quer Simone Weil. E, em algumas de suas performances é quase impossível juntar no ouvido o modo como ele consegue colar os baixos típicos do choro aos elaborados dedilhados derramando-se sobre as primas, tão característicos da música erudita ao violão.

Em quase qualquer outro país, um músico dessa envergadura seria cultuado como um patrimônio nacional, esculpido em praças, nomeado em avenidas e/ou escolas e edifícios públicos, tema de incontáveis teses em universidades.

O único documentário sério sobre Baden, no entanto, foi produzido pela TV Alemã, chama-se Canto on Guitar [e pode, aliás, ser visto em três partes, na íntegra no Youtube]. O filme documenta a feição do disco homônimo e traz interessantes cenas de bastidores, de um jovem Baden exultante com o resultado dos takes gravados. Ou brincando com seus músicos de apoio.

Mas é também no Youtube que se pode achar um de seus momentos mais sublimes: a execução de seu Prelúdio em Lá Menor para uma plateia polonesa em meados dos anos 80. A longa peça, de nove minutos, se assemelha a alguns dos Estudos de Villa-Lobos. A peça é de desafiar qualquer mão direita ao violão. É sólida, extremamente bem construída. Mas muito mais comovente é a interpretação de Baden. O modo como ele explora a dinâmica da coisa verte todo o amor que ele nutria pelo violão. E uma concentração absoluta parece atravessar seu corpo franzino como uma entidade. E, então, ao final, o cansaço, a expressão de humildade em seu semblante, ao tirar os vastos óculos de hipermétrope e debruçar-se sobre o tampo do instrumento, em contido agradecimento: pura poesia. [Para assistir essa performance, clique aqui].

Este ano o Cine Ceará homenageou Che Guevara. Para quem não sabe, Guevara executou a sangue-frio dezenas de simpatizantes de Fulgencio Baptista contra os muros de Havana durante as escaramuças da revolução em Cuba. Mas é homenageado, no Brasil, em Fortaleza, num festival de cinema. É de se sonhar um dia em que alguém da grandeza de Baden Powell, que ao mundo só legou beleza e poesia, possa ser um nome homenageado em eventos assim. Quem sabe quando gravarem um único filme de respeito sobre ele produzido em seu próprio país.

E é ainda Simone Weil quem nos diz que “o poeta é uma pessoa; no entanto, nos momentos em que atinge a perfeição poética, é percorrido por uma inspiração impessoal. É só nos momentos medíocres que sua inspiração é pessoal; e então não é verdadeiramente inspiração.” Na vasta maioria de suas performances, o autor de “Berimbau” parecia percorrido por essa pulsão impessoal.

Saravá, Baden!


* * *


3 comentários:

  1. Olá, rapaz

    Texto muito justo. Bem como o comentário abaixo sobre o poema de Cabral a Joaquim.

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  2. ah, de onde é essa citação aí da weil, daquele mesmo livro?

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  3. sim, ambas as citações são de 'o enraizamento' [l'enracinement']

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