quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Cidade queimada de sol


Antônio Bandeira, Urbanisme, 1955




Decolagem com Antônio Bandeira
Fortaleza é um tabuleiro de xadrez colorido, em que o sol dá xeque-mate à tristeza o dia todo.
[Herman Lima]


Então vem o melhor de Fortaleza: o nome de certas ruas emolduradas por oitizeiros, porque é preciso sombra para caminhar e algum quebra-luz para limpar os olhos da cal e do sol.
Mas antes Fortaleza vista de cima: uma coleção de lagoas, o mangue, e ruas riscadas por Mondrian. Não há vestígio do que é recurvo, desvio no tempo, ladeira, azulejo, voluta.
Do avião, tudo assoma bem mais funcional: fronteira entre mar e cidade. A leste, o distrito rico, que prossegue baixando de altura da Beira-Mar para o Sertão.
Para o sul, serras. E a oeste – um oeste vasto – a planura dos bairros pobres, onde, se o sobrevoo é noturno, o lá embaixo é penumbra sem andares, e luzinhas piscando inúteis anelos.
À noite, o mar.
Aterrissar em Fortaleza: calor. A fala cearense – que contem riquezas não menos concretas que “água quebrada a frieza”.
Chegar em Fortaleza é ter sede. Beber. Mijar. Aceitar uma boa sugestão de o quanto tempo e lugar são só um. E tão fortes. Como habitar uma cidade assim?
A paisagem agora segue embaçada. Ou são os olhos? Partir outra vez. O que diria Camile, Maria Helena. O que diria Wols. Sim, o que veria Wols?
Prosseguindo em travelling mental, literal.
Podia ainda falar dos pregões. Do Abrigo Central e do refresco de pega-pinto. Da engenhosa aleatoriedade com que molhados e secos são dispostos do interior para a fachada das lojas, no Mercado. Couros, palhas, pacientes alvíssimas rendas; equlibristas esculpidos em levíssimo buriti. O excesso de doçura nos confeitos. De cadências de triângulo: os vendedores de chegadinho. Da carne das frutas e do regime das marés. Do campanário da Igreja do Carmo. Da chuva que aplica glacês sobre a textura das dunas, estriadas pela relíquia de passadas chuvas. E, ainda uma vez, do desperdício de nomes bonitos pela cercania: Messejana, Parangaba, Iparana, Mucuripe, Paupina, Sabiaguaba, Precabura, Tiaia, Passaré, Sapiranga, Aquiraz, Parreão, Maraponga, Opaia, Araxá. Todos que, em maioria indígena, nomes de gente não são. Ou dos crepúsculos mínimos. Ou da sutileza que o tempo quase não estaciona-se em quatro. O de como amena sopra a cruviana em agosto.
Mas é pontual dizer: o segundo melhor de Fortaleza é partir.




Nota – este pequeno texto foi publicado em O Povo no aniversário da cidade de Fortaleza, no dia 13 de abril de 1997. Para uma resenha sobre o livro de memórias Imagens do Ceará, de Herman Lima, clique aqui. Algum tempo atrás, intrigado de haver tantos nomes sem nenhuma maior relevância para a memória e a história local, enquanto não havia uma única menção ao memorialista e contista de Tigipió, arrisquei escrever um pequeno verbete sobre Lima para a Wikipédia. E que pode ser achado aqui. De resto, o pintor Antônio Bandeira, a exemplo de Herman Lima, foi uma daqueles raros espíritos que conjugaram local e universal com uma desenvoltura que deveria ser melhor apanhada, como sugestão, pelas novas gerações. É o que hoje faz gente como Diatahy Bezerra de Menezes, em toda sua discrição. O próprio título de uma de suas obras, em dois volumes, dá atestado disso: O Pensamento Brasileiro de Clássicos Cearenses. [grifos nossos].


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