quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Encontraste algum dia


Katerina Lanfranco, Dolphin in Wave, 2003



A Joaquim Cardozo


Com teus sapatos de borracha

Seguramente

É que o seres pisam

No fundo das águas.



Encontraste algum dia

Sobre a terra

O fundo do mar

O tempo marinho e calmo?



Tuas refeições de peixe;

Teus nomes

Femininos: Mariana; teu verso

Medido pelas ondas;



A cidade que não consegues

Esquecer

Aflorada no mar; Recife,

Arrecifes, marés, maresias.;



E marinha ainda a arquitetura

Que calculaste;

Tantos sinais de marítima nostalgia

Que te fez lento e longo



João Cabral de Melo Neto




Este é, talvez, o mais belo poema escrito de poeta a poeta da poesia brasileira. Não soa nada retórico ou derramado. É expresso no tom contido, sóbrio de Cabral. E nele a essência da poesia de Cardozo se faz presente, assim como sua própria personalidade: a discrição, até no pisar silencioso e leve [“sapatos de borracha”]; a inclinação à, com palavras, "pintar" marinhas, às vezes num levíssimo e translúcido guache de aguarela ["o tempo marinho e calmo?"; "teu verso medido pelas ondas"]; a estranha cifra que se esconde por trás de certos nomes de mulheres ["Teus nomes femininos:/ Mariana"]; a presença do Recife, que, aqui, se alça quase como um tropo de memória, história inscrita na individualidade ["A cidade que não consegues/ esquecer/ aflorada do mar;/ Recife”]; o padrão de cálculos para a sinuosidade, repleta de uma sensualidade ondeada e voluptuosa da arquitetura de Niemeyer, de quem Cardozo foi engenheiro calculista ["E marinha ainda a arquitetura/ que calculaste"]; a ausência de pressa no verso e na vida e - em geral, no verso, a predileção pela linha longa - ainda quando fatiada em versos menores por intermeio de um segmento do sentido, de encadeamento [“lento e longo”]: Cardozo publicou seu primeiro volume de poesia, Poemas [1947], aos cinquenta anos e por iniciativa de alguns amigos que praticamente cuidaram da edição quase à sua revelia. O livro conta com um instigante prefácio de Drummond. O poema-encômio de Cabral, acima, no entanto, é de uma rara perfeição. Ele não declara de fora, como num discurso o que o amigo é, mas o faz de dentro de sua própria singularidade. Diferente do tom laudatório ou excessivamente retórico de alguns poemas escritos - inclusive por gente da altura de Drummond ou Bandeira - para seus pares de ofício. É, portanto, mais que um poema de circunstância, a ponto de ser incluído em antologias, entre os melhores poemas de Cabral. Aliás, há mais de meia-dúzia de poemas escritos de Cabral para Cardozo, o que dá testemunho da enorme ascendência do autor de Signo Estrelado sobre o poeta de O Cão Sem Plumas. Em termos de paisagem, no entanto, os dois são quase antípodas: Cardozo é o mar, o mangue, as restingas, o litoral; Cabral, o agreste, o solo gretado e os engenhos de cana. O melhor site sobre Joaquim Cardozo em disponibilidade na rede foi organizado por Maria da Paz Ribeiro Dantas e pode ser encontrado aqui. O site disponibiliza praticamente toda a obra poética do autor de "Recordações de Tramataia". Maria da Paz Ribeiro Dantas é também autora de três instigantes livros sobre o poeta, além de tradutora e poetisa in her own right. Recentemente se publicou, pela Nova Aguilar, um volume de Obras Completas de Joaquim Cardozo - um projeto há muito em trâmite - e que, aliás, me foi enviado de presente, desde o Rosarinho, no Recife, por Maria da Paz Ribeiro Dantas, a quem publicamente agradeço a generosa prenda.



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