segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sem receio do rótulo realista


Yasujiro Ozu, Tokyo Story, 1953


Filmar alicerça em verdade..


E por uma acomodação da fórmula da verdade que se encontra em Santo Tomás. Ele nos diz que “a verdade segue a existência das coisas” ["Veritas sequitur esse rerum"].

Então, a arte refrata a verdade dessa existência. Quanto menos essa existência for refratada, menos haverá arte. É um ponto de partida realista - porém não de um realismo naturalista ou naïf. Mas de um que nos redime de criar somente a partir das criações artísticas pré-existentes. Do acervo ou iventário do criado. Especialmente daquele acervo sancionado pelo prêt-a-porter da onda acadêmica em voga. Da teoriazinha e do elenco de autores da vez.

De momento, há muita voracidade por uma arte vicária, que vive de citações. Ora, só se pode citar algo que está próximo da própria experiência do realizador e se imbrica em seu cotidiano. Ainda que em estranhamento. Qualquer citação que é feita com propósitos apenas eruditos ou “livrescos” recai em desautorização. Não se faz cinema acadêmico, de pós-graduação. Isso não existe. Se faz cinema. Ponto. O mesmo vale para música ou literatura ou pintura ou qualquer modalidade de arte.

Além desse aporte realista, há também o decorum em relação à figura humana. O corpo humano pode ser entrevisto como a obra-prima da criação. Seu ponto culminante. Logo, o tratamento dado a ele deve ser, no caso do cinema, o de tocá-lo com a objetiva somente aquele mínimo suficiente para nele encontrar a emenda necessária à sequencia das ações. Isso equivale a abrir uma enorme cesura para o espaço off, bem como para os objetos, paisagens e outros seres que o cercam. É assim que se implicita, sem fazer força, uma pá de coisas. E este último ponto também indica, entre outras, uma segura direção de arte. Eis porque o still life [a natureza morta], o luzir dos objetos surge tão central nos filmes de Ozu.

Ambos os dispositivos descritos acima – realismo e decorum – apontam para local. O local é o lugar em que seres humanos e coisas se encontram presentificados no cotidiano. Também é o lugar em que seres humanos encontram - veem-se, na dimensão da presença - os corpos uns dos outros. E o corpo humano é algo tão sublime que o austero Pascal dele disse: 'no momento da morte a alma chora porque deve separar-se dessa maravilha que é o corpo'.

O corpo é um local que torna o local local. Não pode ser "vendido" separadamente.

O local é um corpo. Espetacularmente. Especularmente. Esplendidamente. As rugas no rosto da lavadeira, a crosta de sol nas costas do pescador são relevos. Prolongam dunas, lagos, rios. A inércia deles após dias sem conta de trabalho diário sob um sol indiferente. O corpo resulta disso. Da tua conversa com o mundo.


O corpo e a paisagem. O corpo é a paisagem. Nele refratada.

Quando com uma câmera nunca se surfa inteiramente em transparência. Embora a transparência seja o alicerce do melhor cinema. O de Bresson. Ou de Ozu. É a mesma sutileza que se trai na analogia que Joaquim Cardozo traça entre cinema e rio, no poema "Cinematógrafo":


"E molhada nessas águas-imagens, impercebida e rastejante
Uma insinuação de presenças invencíveis se propaga"

As imagens da verdade não adernam ou naufragam. Emergem à flor d'água da tela, mesmo quando estão no fundo. Como pequenos seixos sob límpida água de rio. As imagens da verdade.

Invencíveis.



* * *


3 comentários:

  1. Olá Ruy,

    me parece fascinante. Ja viste TOKYO - um filme do Win Wenders? Ele se refere a esse cineasta japonês, Ozu.
    Abraços,

    Gustavo

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  2. Cheguei aqui por acaso... precisava de um poema de João Cabral (sobre Clarice) e encontrei teus textos.
    E adorei...
    Volto sempre!

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  3. olá, gustavo,

    sim, já vi o filme de 'wim wenders e aprendenders'.

    aliás, gosto muito dos seus textos no 'papagaio mudo', q. mesclam [auto?-]biografia e ficção em alta-voltagem. quem me deu a dica de suas coisas foi a cris moreno, de belém.

    um abraço,

    do ruy

    p.s. - à eliane, já respondi o imeio iluminado q. ela me enviou..

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