terça-feira, 25 de agosto de 2009

Não fosse por igual trágica


Detalhe da Praça dos Leões, no Centro de Fortaleza


À prova de memória



Fortaleza é uma cidade à prova de civilização. Há cerca de duas décadas, desmataram uma perna de mangue, a leste. Em vez da delicada flora sub-aquática que lá estava há séculos, medrou um shopping tão horrendo que se pode encontrar uma réplica dele, sem tirar nem pôr, em Leamington-Spa, no coração da Inglaterra. E isso apenas contribuiu para que seus habitantes se afastassem de sua história. De qualquer vestígio dela. E o shopping sugou para Leste todo o investimento que deveria ter sido posto no Centro, em democracia. Em benefício de todos. Em fortalecimento de um senso realmente cívico de história. E o Centro de Fortaleza, mais ainda do que os de outras grandes metrópoles brasileiras, virou um fantasma de si. E que, talvez, na calada da noite siga a assombrar o sono asséptico dos que vivem no conforto novo-rico – sem qualquer vestígio de passado – dos que moram nos novos bairros do Leste.
É engraçada – não fosse por igual trágica – essa compulsiva necessidade das elites brasileiras de se mover para longe dos mortos. Alguns deles [poucos em sinceridade, verdade seja dita] sonharam muito alto os sonhos que incomodam.
Não à toa que, em uma cidade como Camocim, por exemplo, exatamente sobre o cemitério mais antigo, se plantou a nova estação rodoviária...
Essa necessidade inconsciente e coletiva, bem brasileira, de se desapegar – em fuga – de todos aqueles que apostaram que a prosperidade do, então, porto mais importante do Ceará, viria do eixo cais/ferrovia. Os dois projetos fracassaram miseravelmente em Camocim. E, então, que tal lascar por cima dos que sonharam esses projetos exatamente o que, em boa parte os esgotou: as estradas de rodagem e o transporte em lombo de caminhão e ônibus? Ergueu-se então a rodoviária sobre as ossadas daqueles vetustos e incorrigíveis visionários. Mas a perspectiva de seu sonho, de sua utopia, não menos foi reposta sob o os alicerces do novo terminal. Como fosse necessário esquecer um sonho incômodo em favor da mediocridade dos diascorrentes.
Assim também Fortaleza. Nela o shopping está para o Centro assim como em Camocim a rodoviária para o Cemitério. A incômoda vizinhança de um passado subversivo pela própria força de sua eloquência.
E é preciso estar atento às metáforas de Fortaleza: a Praia do Futuro [essa dispensa comentários]; o Castelo Encantado; a Parangaba ou Porongaba [beleza, em língua-geral]; o Parque Araxá [que combina o europeu 'parque' à agilidade do termo indígena 'araxá'= chapada; ou luminosidade que existe antes do nascer do sol]; a Água Fria; e o que há de expressamente português em nomes como Aldeota, Varjota, Torreão, Outeiro, etc.
Sei que tudo isso é sonhar alto e acordado. É querer demais. Devaneio apenas. Mas de sonhar baixo é feita a mediocridade dos dias e dos que se trancam na academia ou em seus quartos com livrinhos de filósofos em traduções de quinta categoria. E se há grandes trabalhos a serem feitos – e os há – é bom que comecem logo. E a todo instante. E já. E em subversividade.
Sem lapso de demora. A contrapelo. A cada gesto. A cada dia. Incomodando a mediocridade de boa parte dessa gestão municipal, que de resto catou na academia seus atuais quadros administrativos. Em teoria, estaria tudo no melhor dos mundos. Porém, com as exceções de praxe, os acadêmicos pensam o mundo exilados dele. Desterrados do próprio solo que pisam. Das ruas mesmas pelas quais circulam, no refrigerado conforto de seus carrinhos pagados à prestação.
E, no entanto, gente como Nirez ou Christiano Câmara bem sabe que não é assim. Eis porque num esforço avulso, sem quase ou nenhum amparo oficial, vem colecionando a cidade com um amoroso zelo.
Cada imagem. Cada palavra. Cada hábito. Cada gesto possível de ser salvo.
Pela promessa de sua sanidade.



* * *

Um comentário:

  1. Então, meu escritor preferido de hoje,
    estou indo agora para o trabalho (numa academia cheia dessa espécie "ilhada"),
    dar umas aulas que, espero, tenham algum atrativo...
    Compressas no gelo, no ombro, véspera de tendinite, enquanto leio seu texto...
    E sigo encantada.
    Ah, vou usar um deles para minha turma de Leitura e Produção de Textos, com os créditos devidos...
    Beijocas diretamente da Bahia, onde essa história triste que vocÊ conta se repete, intensificada...

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