sábado, 22 de agosto de 2009

A Pulsão Sublime


Cartaz promocional de L'Argent, Robert Bresson, 1984



Sobre o conceito de sublime

-Alguma teoria antes que me expulsem [de vez] da academia

O conceito de sublime vem sendo sucessivamente revisto ao longo das últimas décadas. Ocupa, de fato, um volume bastante significativo da obra de teóricos, críticos e estetas tais como Jean-François Lyotard e Barnett Newman. O desdobramento da formulação desse conceito, seu manejo é, desse modo, acessível e de literatura relativamente ampla. De fato, a reapropriação do conceito clássico de sublime – tal qual se encontra no pseudo-Longino, em Kant, em Burke – por pensadores e estetas contemporâneos é empreendida mediante uma forte revaloração ética e uma renovada atenção diante da actualidade histórica. Em especial, da que provêm da releitura de eventos históricos traumáticos (caso das violências de estado, das guerras, dos genocídios).

O conceito de Sublime, em sua raiz, assenta-se basicamente em duas ideias. A primeira é a de que se trata de uma pulsão que escapa ao controle dos sentidos humanos. Uma pulsão formidável e violenta. A segunda, a de que é algo que detém um estatuto de durabilidade e vasta extensão. De todo modo há algo que ronda o numinoso investido nesse conceito.

Ao menos é assim que o Pseudo-Longino, já no séc. III d. C., dispõe a questão ao dizer primeiro que “não é persuasão mas ao êxtase que a natureza sublime conduz os ouvintes”. E, posteriormente que sublime é “na realidade, aquilo que suporta um reexame frequente, mas contra o qual é difícil e mesmo impossível resistir, e que deixa uma lembrança forte e improvável de apagar”. E nessa última acepção bem se pode esboçar uma analogia entre o sublime e o trauma psicanalítico. Sendo que aquele se processa por uma sensação de prazer superlativo (ou êxtase), enquanto este por uma sensação de dor, ameaça ou constrangimento extremos.

Mas durante muito tempo essa noção de sublime não foi tocada. Praticamente não se especulou sobre ela por mais de mil anos. E então ela foi retomada pelos estetas classicistas laicos do séc. XVIII. Sobretudo os alemães, mas antes destes um inglês: Edmund Burke. O fato de não haver especulação sobre o sublime durante um lapso tão longo deve provir certamente do modo como se organizava o pensamento da Idade Média, que identificava beleza à Divindade e, logo, a algo implicitamente sublime, não havendo, portanto, uma necessidade de distinção ente “sublime” e “belo”, como ocorreu posteriormente.

O sublime tal qual entendido por Burke, em fins do séc. XVIII, é vinculado a fenômenos da natureza que produzem “perplexidade”, e que ele define como sendo “aquele estado de espírito em que todos as motivações são paralisadas por um certo grau de horror”. Mas de um horror [ou espanto] que também produz uma espécie de prazer ao invés de pura intimidação, abjeção ou medo. Produz o que ele nomeia de “pleasurable horror” [“terror aprazível”]. Burke traça ainda uma importante separação entre o sublime e o belo. Para ele o sublime é grandioso e incircunscrito, enquanto o belo é dimensionável, mimoso ou maneirista. Essa distinção posteriormente será retomada e aperfeiçoada por Kant, primeiro em um tratado incipiente e quase amador (Observações sobre o sentimento do belo e do sublime) e depois sistematicamente em sua Crítica do Juízo.

O sublime é algo que repõem o cósmico e a dimensão num plano modal, de relação indissociável. Ou seja, um fenômeno que redimensiona a escala humana no cosmos. Ou que pelo menos, em algum ponto desestabiliza essa escala humana no mundo, contrapondo-a a uma espécie de vestígio ou indicação de absoluto. A noção de sublime põem o homem em vertigem. O mar, o céu ao crepúsculo, uma forte tempestade, as altas montanhas, a passagem de um cometa, o empuxo de uma alta queda d’água são exemplos desses fenômenos de grandeza natural que nos atingem e comovem – e que Kant caracteriza como sublime dinâmico. Mas há também, de acordo com Kant, um sublime matemático que teria a ver com uma noção de infinidade, de desmesura num senso mais abstrato. Em largos rasgos, o belo é entrevisto como algo mais dimensionável e redutível a categorias da razão, enquanto o sublime como algo que só parcialmente pode ser apreendido por ela, porque desmesurado diante da capacidade humana para apreender. E, também por isso, o sublime indica mais para ausência que para a presença.

O certo é que não há muitas referências do poeta norte-americano George Oppen a essa literatura filosófica mais ou menos canônica sobre o sublime. Suas alusões à questão assomam enviesadas, embora a forma como a corteje para seu próprio procedimento como escritor seja de uma evidência aterradora – como, de resto veremos ainda adiante – e forje uma opção extrema por uma modalidade de escrita que, em todos os planos, distava anos-luz da escrita da maioria de seus contemporâneos não objetivistas. E, aqui, muito especialmente, no sentido político.

Outro ponto a sustentar a cerrada crítica que Oppen reiteradamente tece a seus colegas de geração - exceção feita a Resnikoff - segue pela quase ausência de ironia em sua poética - sobretudo a da segunda fase (que não por acaso é retomada após 24 anos de silêncio). Ao sarcasmo, ao niilismo e à deliberada obscuridade de [Louis] Zukofsky, um de seus mais estreitos colaboradores no movimento objetivista, Oppen irá endereçar palavras diretas e mesmo ásperas: “if you want to say no say/ no if you want to say yes say yes in loyalty”. Dito assim, até parece que a própria poética de Oppen é de uma comovente clareza ou transparência. [Ela está longe disso, embora não seja obscura ou tão "livresca", digamos assim, quanto à de Zukofsky].

Do contrário, Oppen, pode soar um bocado opaco, mas não "obscuro" – especialmente no primeiro e nos três últimos de seus livros. Aliás, era justo ele quem dizia: "palavras não podem ser inteiramente transparentes". Embora, a seu modo, buscasse essa transparência. Por isso mesmo, devemos entender essa busca pela transparência e pela anti-ironia não de uma forma plana, mas como propósito ou programa. Como uma circunstância modal. Mais ou menos como a palavra ‘busca’ na frase: “a verdade é também sua busca”.

O que postar no lugar da ironia como forma expressiva? No caso de Oppen? A expressão do “medo” ou "espanto" [fear] que, segundo Blau DuPlessis, “no léxico de Oppen é um termo que continuadamente pode ser glosado pelo sinônimo ‘terrível espanto’ [‘terrific awe’] - um enlevado senso da rara e estranha coisa que é notada ou proferida.” A relação com a estética do sublime é quase imediata se, por exemplo, transpormos para Oppen um comentário que Jean-François Lyotard endereça ao pintor-scholar Barnett Newman: “a grandeza do discurso é verdadeira quando testemunha da incomensurabilidade do pensamento ante o mundo real”.

Mas, se quisermos ir além, nesta senda, basta lembrar que para Oppen - e contrariando o William Carlos Williams que dizia ser o poema “uma pequena máquina feita de palavras” - “o poema NÃO é feito de palavras, ninguém pode fazer um poema enfiando palavras nele, é o poema que produz as palavras e contém seu sentido”. E, logo em seguida, no mesmo texto: “quando um homem está apavorado pelas palavras, talvez esteja no ponto [de escrever]”.

Para Oppen assim como para Newman não há a priori. Oppen nos diz que é incapaz de determinar “o processo pelo qual um verso surge”. A respeito disto nos fala DuPlessis, em um ensaio de 1975, que “se torna claro que Oppen fica ou ficará surpreso ou atemorizado porque escreve deliberadamente despojado de certezas e absolutos, relutando em aceitar um quadro de referência apriorístico.” Quase parafraseando o comentário de DuPlessis sobre Oppen, Lyotard dirá de Newman, treze anos depois, que “a presença é o instante que irrompe o caos da história e lembra ou chama apenas, que ‘há’ antes de qualquer significado daquilo que há.” Bem entendido, a radicalidade do ‘agora’ (‘now’) dos quadros de Newman – que, aliás, pode ser aproximada da teoria da história do último Walter Benjamin ( quando este nos fala do Jetztzeit, a ‘agoridade’, ou tempo do ‘agora’) – estaria para as artes plásticas assim como o “medo” (fear) ou o “terrific awe” (“terrível espanto”) de Oppen está para a poesia. Assim como o “agora” de Newman suspende a temporalidade, o “terrível espanto” de Oppen suspende a narrativa. Em seu poema sobre os cervos na floresta ("Psalm" [“Salmo”] - para ler este poema com uma versão em português, aqui), o instante de medo ou perplexidade nos olhos da manada de cervos abole o tempo e instaura o reino da verdade. Ambos, Newman e Oppen, estão interessados no que Mark Rudman detecta no autor de Of Being Numerous, como sendo “images that retain a trace of the sacred [“imagens que retém um traço do sagrado].” Ou, de forma analógica, algo expresso pelo próprio Newman ao nos dizer “do desejo humano de, nas artes, expressar sua relação com o Absoluto” [que] “tornou-se identificado e confundível com os absolutismos da criação perfeita – com o fetiche de qualidade – assim que o artista europeu vem sendo continuadamente envolvido pelo embate moral entre noções de beleza e desejos de sublimidade.”



Nota - para exemplo de sublime no cinema, assistir Chuva [Regen] de Joris Ivens. Ou L'Atalante de Jean Vigo. Ou alguns dos filmes de Tarkovski ou Bergman ou Dryer. Ou qualquer dos 14 filmes de Robert Bresson. Na literatura brasileira há dois exemplos máximos: Os Sertões e o Grande Sertão: Veredas. Dos cineastas brasileiros o que mais se aproximou do sublime foi Joaquim Pedro de Andrade. Especialmente em seu O Padre e a Moça. Ou, mais recentemente, Luiz Fernando Carvalho, em sua adaptação de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. Pode-se mencionar também, em sua modesta proposta - mas que é bem mais ambiciosa do que assoma à primeira vista - o documentário Sertão de Acrílico Azul Piscina, de Marcelo Gomes e Karim Ainouz. Assim como certa concepção de ritmo e fotografia divisáveis em alguns momentos nos documentários de Alexandre Veras e Cao Guimarães.



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