sábado, 8 de agosto de 2009

Quase salmos de sortillégio e sol


Adicionar imagemElliot Smith (1969-2003)




Para uma menção a Elliot Smith


Por sugestão de um amigo, ouvi algumas das baladas de Elliot Smith esta semana. E foi amor à primeira audição.
Como pode haver tanta simplicidade e perfeição em canções como “Say Yes” ou “Between the Bars”? Nada há de sofisticado harmonicamente falando. São quase só progressões de acordes naturais com um ou outro baixo invertido, se tanto. Tudo se resolvendo em sétimas ou algo próximo disso. Ou seja, musicalmente não existe qualquer inovação.
E, no entanto, tudo é viço e frescor. Pura novidade. A voz, sussurrada, explode em harmônicos. A extensão é pequena mas aproveitada até a última gota, o que lhe empresta um brilho inusual. Uma espécie de Chet Baker do pop. A batida leve porém segura [e um pouco desleixada] de seu violão base, às vezes um tanto sublinhando o baixo das tônicas, segue sempre em primeiríssimo plano. A instrumentação é sempre esparsa, à folk ou skiffle, mas preenche todo o campo sonoro. A coloquialidade das letras aponta para fala, conversa. Versos do tipo: “situations get fucked up” ou “feel like shit the morning after”, onde aparecem palavrões e xingamentos, como na fala mais comezinha. Mas também o que há de ternura nisso tudo.
E, ainda assim, em “Say Yes” há um trecho que é pura citação do Lennon de “I am the Walrus”. Mas, o melhor, a citação parece provir de uma misteriosa espontaneidade, sem qualquer forçação de barra ou sisuda intertextualidade ou apara de semiótica musical ou paranóia acadêmica ou vontade de vanguarda. Porque em Elliot não há teoria. Nem vanguarda. A teoria é a pulsante alegria desses epitalâmios e albas modernizados, talvez involuntariamente.
A densa verve e o lirismo dessas baladas pode alegrar a mais triste manhã de chuva. Elas parecem perfeitas em seu despojamento. Modelação e arquetipia. A magia que as cerca é só comparável ao que se encontra no melhor material dos Beatles, dos Beach Boys ou do Radiohead – e neste último caso, num registro mais sombrio. E nos três casos com uma muito maior elaboração vocal e instrumental.
Não obstante, há belas harmonias vocais - bastante simples, no entanto -, solos bem breves, nunca fora de lugar. Finais inusitados, um pouco largados. Pode-se, ao ouvir essas canções, deliciar-se com o grau tão espontâneo de talento – esse termo fora de moda, pois elas alegram o espírito.
De suas composições se pode falar nos termos que Adorno referendou a ensaística de Walter Benjamin: “o que Benjamin dizia e escrevia soava como se o pensamento assumisse as promessas dos contos de fadas e dos livros infantis, ao invés de recusá-los e repeli-los em nome de uma infame maturidade”.
Há nas baladas de Smith uma incrível capacidade de celebração da vida. Intensa solaridade. Ao som de não poucas delas, a vontade é, sem dúvida, a de dançar sozinho. Como David dançou em frente aos sisudos sacerdotes e profetas, em certa passagem bíblica. Talvez porque sentisse que na profecia e na litania deve haver algo de êxtase. De júbilo. De improviso. Talvez movido por esse mesmo grau de excitação e santa loucura, que só salmos assim provocam ao tocar simultaneamente espírito e carne, provocando o desejo de se acordar um ser humano melhor na manhã seguinte.

Mesmo de ressaca.




* * *

4 comentários:

  1. Ruy, que legal. Elliott Smith é (foi/continua sendo) mesmo sensacional. Ouviu "miss misery"?
    É o maior ponto de convergência da beleza quebrável e do ar rarefeito que pontua as canções dele, na minha opinião.

    P.S: Ouça um artista chamado Samuel Beam, que grava como Iron & Wine.

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  2. Olá, rapaz

    Agora você tocou num ponto fraco. Por muito tempo eu não conseguia compor nada que não fosse lado z do Elliott Smith. E por muito tempo para mim e meu irmão Elliott salvava sozinho para a contemporaneidade a idéia de canções. O fato dele ter se matado e, conseqüentemente, não lançar mais discos aqui na Terra (o Paraíso deve rejubilar a cada novo punhado de canções que ele solta por lá) contribuiu em muito para o meu irmão abandonar a música pop, ir estudar violão erudito e quase só ouvir Segóvia hoje em dia.

    Algumas canções do Elliott estão, sem medo nem dúvida, entre as melhores do cancioneiro popular americano. Não me surpreendo se descobrem um dia isso, e todas as futuras divas começam a gravá-lo.

    Não sei que discos dele você anda ouvindo, mas o caso de Elliott é de ouvir todos os discos, que, infelizmente, não são muitos. O que há em todos é isso que você mesmo disse: frescor. E sem firula. O sujeito não tinha espírito para firulas. Seria interessante ouvir os últimos discos, em que ele se afasta um pouco do formato low fi, e trabalha por vezes com uma banda mais recheada e até orquestra. Ouça, se ainda não ouviu, "Waltz #1", uma melodia que só encontra paralelo em "Because" dos Beatles. Aliás, Elliott gravou "Because", à capela, gravando várias vozes. Era um grande fã dos Beatles - há registros ao vivo dele tocando um punhado de canções deles (uma bastante comovente é "Isn't it a pity", da carreira solo de George).

    Enfim, como Elliott, não há outro, the guy was the real deal. Eu bem quereria que houvesse muitos. Estamos sempre em falta de canções. O Sam Beam mesmo, citado aí em cima, tem um bom primeiro disco, mas, perto de Elliott, é um epígono. Aliás, é época de epígonos.

    Agora, se estiver aberto a sugestões e se por acaso ainda não tiver ouvido, sugiro que baixe o álbum "Alice", de Tom Waits, lançado há poucos anos atrás. Tom, claro, é o real deal do real deal. E esse disco está em pé de igualdade com a obra-prima "Rain Dogs". Nem comento as letras. Se ouvir, let me know.

    Abraço!

    p.s: escrevendo minha dissertação, roubei uma citação de uncle witty de um texto seu, muito bom por sinal, sobre open.

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  3. valeu a dica, renato! vou dar uma escutada em beam. mas antes disso, ainda preciso ler suas traduções. [rs]

    grande abraço,

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  4. rapaz, odorico,

    sem muita sombra de erro, posso adivinhar qual foi essa citação. por acaso esta?:

    "tradição não é algo que um homem possa aprender; não é um fio que possa retomar quando lhe apetece; tal como uma pessoa não pode escolher seus antepassados. Quem não possui uma tradição e gosta de ter uma é como um apaixonado infeliz” [wittgenstein]

    é mto. bom, não? é chamar de infeliz quase todos esses pós-estruturalistas arrogantes. e 'avant-la-lettre'.

    o trecho se encontra num livro maravilhoso, chamado 'cultura e valor'. foi lançado só em portugal, salvo engano.


    aquele artigo sobre oppen na espéculo é um dos capítulos de minha tese de doutorado [não defendida] sobre ele. e v. anda um verdadeiro 'hacker', rapaz.

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