domingo, 9 de agosto de 2009

Misteriosa transparência, misteriosa lucidez


Jan Vermeer, Vista de casas em Delft [também conhecido como A
pequena rua
], c. 1658



'Numa pequena rua'

Numa pequena rua, um prédio de tijolos vermelhos caiado irregularmente à base. E sob uma touca branca, rente à porta entreaberta, acomodada em uma cadeira baixa, uma mulher inclinada tricota. E diante dela, uma calçada com ladrilhos dispondo motivos geométricos em azul, ocre e cinza sobre a qual duas crianças brincam debaixo de bancos de tábua corrida. O prédio possui três andares. No térreo, as três janelas são amplas, e a central, estranhamente delgada e em arco, de uma feição eclesiástica. Menores as duas do primeiro. A da direita está aberta. Pode-se ver os frisos das dobradiças dos postigos de todas as outras. Fim do verão. Acima, um pequeno sótão de janela única. Não se vê o topo da cimalha. E, ao fundo, sob um golfo de nuvens, o céu. Abaixo à esquerda, vultos de casas vermelhas e mesma silhueta. Vão esguio. E dentro dele, a meio-caminho, uma segunda mulher debruçada sobre um tonel, onde duas vassouras. Fechando o campo visual, à sestra, pequena porta fechada, contígua ao vão, e pequena janela de venezianas azuis, com galhos descendo por sobre. Pequeno banco. Mesa pequena. Ambos de tábua corrida, junto à porta, sob a galhada que desce. Guarnecem a porta fechada, contígua ao vão onde a segunda mulher, na faina. O que pode ser mais tranquilo que essa pequena rua; que essas pequenas vivendas; que esses pequenos bancos; que essas crianças que brincam; que essas mulheres que trabalham; que esses céus volumosos de nuvens no fim do verão; que essa perspectiva de outras fachadas sucedendo-se, na profundidade, com seus ângulos em ritmo; que esses pequenos mundos: fechado e aberto; que esses galhos curvando sobre a janela envidraçada em cruz, guarnecida por venezianas de um azul-ultra-mar e um friso cor de ouro? Aqui o cinema já é. Esse tempo é um relâmpago congelado. Trabalho diário. A quieta felicidade desses lugar e tempo. Espaço convertido em luz e prece pela semente do olho. As mais difíceis de enxergar, fazer.

Porque versam sobre a felicidade presente.



appendix: UM POEMA DE MURILO MENDES:


Vermeer de Delft

É a manhã no copo:
Tempo de decifrar o mapa
Com seus amarelos e azuis,
De abrir as cortinas - o sol frio nasce
Nos ladrilhos silenciosos -,
De ler uma carta perturbadora
Que veio pela galera da China:
Até que a lição do cravo
Através dos seus cristais
Restitui a inocência.


Nota - para uma versão ampliada, em alta definição do quadro, clique sobre ele. Os estudiosos da obra de Vermeer apontam que ele usava instrumentos óticos semelhante às câmeras modernas. E fazia cálculos matemáticos para chegar às perspectivas. De anedótico, certa vez teve de pagar uma dívida na padaria com um de seus quadros - que hoje simplesmente sequer podem ser avaliados. Na Holanda são reverenciados como tesouros nacionais. 'Numa pequena rua' foi escrito em 1996, sob o feitiço de Francis Ponge, Gertrude Stein, William Carlos Williams. Williams, de resto, tem um livro - o seu último livro de poemas - chamado Pictures of Brueghel [Quadros de Brueghel] e que consiste tão-só em descrições de quadros desse outro mestre flamengo.


* * *

Um comentário:

  1. Ah, que graça! Estive em Delft na semana retrasada. Passei um dia inteiro caminhando pela cidade, sozinha, e tirando muitas fotos...

    Um beijo, Ruyzinho!

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