terça-feira, 25 de agosto de 2009

Flurp!


Juan Miró, Dog barking at the moon, 1952



Uma pressão de almofadas

Certos animais domésticos, antes de muita gente por aí, começam a se tornar importantes. E importar alguma coisa nos dias de hoje é estar apto a consumo, ser um ser para o mercado. Ser consumidor. Há cada vez mais produtos destinados a animais: rações para cada faixa de idade, adereços e conveniências próprias a cada bicho. Coleiras anti-alérgicas, coletes e até hotéis. O número de anúncios de TV usando bichos cresceu bastante nos últimos tempos.

Mas também, sair para passear com os cachorros está se tornando um hábito em certos bairros fortalezenses. A prática não era muito comum só uns poucos anos atrás. E ainda parece um tanto exótica. Vagamente europeia. Ou, quando muito, paulistana. E especialmente paulistana do bairro de Perdizes – onde hoje em dia só é possível caminhar com olhos bem abertos no chão, protegendo-se da absoluta merda.

Animais domésticos podem contribuir positivamente para a economia afetiva de uma família. Cachorros são afeiçoados, atenciosos, um tanto disponíveis. Gatos estão mais para a auto-suficiência e uma certa malandragem arisca. Pássaros são regulares e colorem o ambiente. No caso de papagaios, refletem um tanto o nível de educação de seus donos.

O certo é que já há veterinário agindo como psicólogo. Isso pode soar risível mas deve ter seu lado de verdade. Pelo menos de tanta verdade quanto aquelas psicólogas infantis que, no Jornal Nacional, aconselham os pais a não dizer nomes feios na frente dos pequenos. Ou de que o que eles precisam: “é amor”.

De longe, o episódio mais insólito com animais de que tive notícia foi vivido por um conhecido há cerca de dois anos atrás. Digo insólito porque me falta outro adjetivo.

Ele fora convidado para uma festa. Aquelas reuniões mornas em que professores de pós-graduação reúnem seus orientandos para confraternizar e, veladamente, distribuir futuros encargos ou recrutar outros tantos incautos. Meu conhecido não era orientando. Tão-só amigo de uma. E, logo, sem nenhuma intimidade com os donos da casa. Os anfitriões eram um casal simpático e polido. Meia-idade. Sem filhos. Doutores e pós-doutores. Tão paulistanos quanto a pronúncia italianada de certos gerúndios.

Era inverno. A casa era ampla, nos subúrbios ao Sul de São Paulo e confinava com um riacho que talvez brotasse nas imediações da represa de Guarapiranga, que não distava muito dali. Esse conhecido, um sujeito bastante corpulento, gordo mesmo, chegou relativamente tarde, rebocando um vasto sobretudo – espécie de marca registrada. Descobrindo uma vaga na ponta de um sofá, fincou-se regiamente e com ênfase no macio assento, daqueles que fazem flurp. E, de resto, foi magnificamente servido de uísque e canapés. As conversas eram protocolares, mas havia uma bela uspiana sentada ao lado de meu conhecido, este se comprazia com olhos castanhos claros da menina, e ela desandava a teorizar sobre a função do coro na tragédia grega clássica.

À certa altura, porém, o casal anfitrião começou a dar com a falta do poodle miniatura que tratavam como a um filho. E entenderam dar uma busca coletiva em todos os compartimentos da casa. E quanto mais procuravam mais o bicho desaparecia.

Um tanto alheio à grita geral, sozinho na sala em meio a vozes distantes, meu conhecido ergueu-se para ir ao banheiro. Foi aí que deu com o pobre cão esmagado no sofá. Seu peso fora deamasiado para o miúdo vivente. E aquele flurp longe de ser das almofadas constituíra um suspiro último.

Vexado, seu primeiro impulso, depois de consultar os lados, foi enfiar o miúdo cadáver no bolso do sobretudo. Depois, quando todos já de novo no ritmo da festa, ele seguiu discretamente pelo amplo jardim até a beira do riacho.

E eliminou a prova de tão estranho crime.




Nota - crônica originalmente publicada na extinta revista virtual Nariz de Cera.

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