quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Dezenove andares, dezessete anos


Anselm Kiefer, Auszug aus Aegypten [Partida do Egito], 1984



As Lágrimas no Aquário

O outono em São Paulo é uma região de brumas quando sai a noite. E a noite saía, no que eu descia a ladeira da Eugênio de Lima em direção à Paulista. A umidade do ar colava na testa. As bordas dos guarda-chuvas se entre-roçavam. Eu passava em revista a inércia no rosto dos passantes. Dos postes as lâmpadas largavam um tom amarelo-obscuro. Pingos. As pessoas não eram bem corpos. Eram só vultos – manchas numa tela tachista. E o lusco-fusco do tráfego escorrendo com o vagar de um sorriso de mártir.
A pele dela era da cor do alvaiade. Seus lábios emolduravam os dentes entre o veludo e o vime. Contraste. O castanho-claro do cabelo escorria quase até a cintura, demarcada por um suéter cinza e o braço esquerdo da jaqueta cáqui balançando, desleixadamente, na oca frialdade do fim-de-tarde. Do outono. Seus olhos eram um meio termo entre os de Margarete e Sulamita, fugas da morte, como em Celan: algo lentos, viçosos, de um verde-guache discreto. As pernas desciam bem conformadas por um jeans surrado que ia bater em fios sobre um par de botas de camurça.
Eu esquecera de chorar em casa. Deixara as lágrimas no aquário. E pensava na seca, nos saques. Na família, nos amigos distantes. Quando a ideia de São Paulo me vinha à mente, presto confundia-se com Lilith, a tela de Kiefer. E, ainda assim, como numa ínfera passagem de Dante, ambas, cidade e tela, já não eram mais um, e não chegavam a ser dois. Eu era um homem com o meu tempo, e pretendia o esclarecimento. E morava num condomínio em que, três horas atrás, um garoto de dezessete anos saltara dezenove andares abaixo. No que é possível pensar numa queda livre de dezenove andares. Como a grama do jardim aproximaria a partir de um décimo nono andar sem elevador? O que se veria do lado exterior, no úmido ar de outono, das janelas envidraçadas: os condôminos lendo jornal, vendo TV, brincando, namorando, vestindo-se para o turno da tarde de trabalho?
Ela às vezes escorava-se no namorado. Trocavam beijos. A garoa amainara. Havia uma infiltração no teto da parada do ônibus. Ambos envergavam calças com os fundos decaídos quase aos joelhos. O rapaz trazia a cabeça raspada, à skinhead. E a moça, de róseos dedos, volta e meia lhe acariciava a calva. Eles estavam vivos. Postavam-se para além do abrigo, ao relento. Suas carícias atraíam olhos. Um rapaz de cavanhaque e boné movia-se em torno deles, a estar com um olho na garota. O mesmo, imóvel, fazia um senhor de seus cinquenta e muitos.
Nesse meio tempo úmido, no alto da Serra do Mar, onde os jesuítas resolveram assentar um colégio, eu pensava no Nordeste. Nas praias de deserto e coqueiros. De coqueiros que vieram dos confins da Ásia. De desertos que vieram dos confins dos tempos. Na água doce e salobra dos cocos. Pensava nos saques e distritos repletos de pó, gretas, desolamento, mercearias de ladrilhos irregulares, cumeeiras altas, pés-direitos não forrados, e as telhas acima das garrafas de cachaça e pilhas de rapadura, ao lado de surrões de farinha e feijão mesclados a batatas fritas embaladas a vácuo e latas de conserva. Teias. Muitas teias.
O senhor de seus cinquenta e muitos parecia trazer o rosto esculpido à canivete. Era um rosto sem piedade. Nele pousava a estupidez dos políticos, que, de algum modo, o terno negro sublinhava. Podia passar por um coronel e sua truculência. Mas o que aquele homem que visivelmente não esperava o ônibus fazia, senão invejar a posição do skinhead, que enlaçava a garota? E, logo, nove pessoas, numa parada de ônibus, invejavam. Invejavam a juventude, o desleixo. A intensidade dos toques em público. E não ter que pagar contas.
O rosto sem piedade do senhor de cinquenta e muitos tomou um táxi. O rapaz de boné e cavanhaque embarcou no “Avenidas”. A senhora gorda, que trazia a bolsa sob o braço, como se a qualquer momento fosse abrir um zíper no próprio flanco para guardá-la, tomou o “Morro Grande”. E toda a efêmera comunidade da parada de ônibus como que se desfez substituída por outra. O jovem casal galgou os batentes do “Pinheiros”. E a noite cresceu como um magistrado de martelo em riste proclamando uma sentença inapelável: tempus edax rerum!
Os carros prosseguiram na sua lentidão agônica. Os ônibus se sucederam. Talvez, naquele crepúsculo atingiram subúrbios tão remotos quanto certos distritos do Sertão. Talvez se destinaram a distâncias tão imponderáveis quanto a que se transpõe na rapidez de uma queda dezenove andares abaixo. Outros talvez nem chegaram: desistiram a meio-caminho. Por causa de uma pedra, de um agouro, da necessidade de manter as aparências de um casamento, de uma lágrima, de um milagre de São Francisco.
Tomei o ônibus. Há dias em que cicatrizes mais íntimas supuram com frutas podres. E o lusco-fusco do tráfego escorrendo com o vagar do sorriso de um mártir. Eram só vultos, como manchas numa tela tachista. As pessoas não eram bem corpos. Pingos. Dos postes as lâmpadas largavam um tom amarelo-obscuro. Eu passava em revista a inércia no rosto dos passantes. As bordas dos guarda-chuvas se entre-roçavam. A umidade do ar colava na testa. E a manhã saía no que eu subia a ladeira da Eugênio de Lima vindo da Paulista. O outono em São Paulo é uma região de muitas brumas quando sai o dia.





Nota – crônica originalmente publicada em O Povo [10.05.98]


* * *

Um comentário:

  1. Mas é uma crônica mesmo?
    Tem tanto lirismo, apesar da atmosfera nublada, que atravessa o texto todo...
    Gostei muito!

    ResponderExcluir