sábado, 24 de novembro de 2012

Necrológio ao modo de Aldir Brasil Jr.


I Dream of Jeannie, c. 1969

Todos tínhamos uma queda por Jeannie. Por isso queríamos ser o Major Nelson. Havia uma cervejaria: Astra. A Guilherme Rocha ainda era uma rua perfumada. E um outro Major, o Asthon Guilherme, comandava a litania do dia por mensagens de alto falante. Que perfuravam o alto falante. Que eram quase auto-falantes. Embora nos azulejos alguém ainda ia escrever com imprudente inocência: “o Major comeu a Dona D'Alva”. E embora as ruas de cinema fossem a Major Facundo e a Floriano Peixoto, as meninas saíam da Vox, deixando um doce rastro de Rastro, que pisava sobre chinelinhos de tira. A Catedral tinha uma só torre. Apostava-se: ela ou o Castelão ia acabar primeiro? Mas só um bronco não via: o Megatério era o Prédio da Receita. E sua construção acabou antes das outras duas. Rápido como um golpe de kung-fu. Lento como a espera, e vê-la no recreio, dia seguinte. E o mestre dizia no recôndito templo Shaolin das quintas-feiras: "Gafanhoto, não vás ao Center Um sem cem mi-réis no bolso. O Tasso, que tudo vê, pode não gostar". Entrementes o Rosa da Fonseca atracava no Mucuripe. E carregava mais uma leva de passageiros até Manaus. O Padre Jessé dava graças ao Senhor por Ele ser bom. A modernidade era subir a escada rolante da Lobrás, e tomar um milk shake. Tomai e comei, todos vós. And Aubrey was her name. Diziam que iam inaugurar uma TV Educativa. O Major? Nossa primeira encarnação de Big Brother. Embora mais propriamente seu nome fosse Edson. Talvez. E ele distribuísse gás. Minhas asas são como uma couraça de aço. Nenhum animal deve dormir em cama, com lençóis. Mas isso, ressalve-se, é já um terceiro Major, noutra ficção. Uma já menos mágica edição da coisa. Tudo em vão? Nem sempre. É. Nem sempre a gente consegue ser piloto do que deseja. Ser aquilo que deseja. Major, vá desculpando. Vá desculpando aí. No duro, no entanto, até o que não víamos de tango, Paris, cabia no piscar de Jeannie. O império, os sentidos. Principalmente quando se passava pelos corredores do Ibeu, desejando aquelas professoras já levemente sazonadas. Curtidas por mãos, línguas, membros, como pós-raparigas em flor. E as sombras. Nossos olhos como que adivinhando: como era a carnadura da realidade oculta sob e moldada por mescla, volta-ao-mundo, linho, poliéster, algodão? Dias imensos resplandeciam. Em que o céu mal comportava fiapo de nuvem. E havia quintais com mamoeiros, caixas d'água. E, enfim, varais onde a roupa estendida dava testemunho de silhuetas e noites. No silêncio tique-taque da sala, as fogo-pagou propagavam um lamento miúdo e terno, na calma das manhãs. E, então, no pátio, havia o pé de sapoti, junto à cantina, tarde a meio. Os olhos claros da menina. E as meninas. Utopia suprema. Bem-aventurança. Tão fugaz advento, como quando se tem catorze. Os nomes delas: Cynthia, Denise, Jacqueline, Celina, Márcia, Giselle, Ana Paula. Um lago ainda límpido, com botes de pedal, no Parque das Crianças. E um vestido ao vento. E os segundos navegando no lago em botes de papel. E o tempo, então, passou numa fricção de piscar: carnavais, shows, festivais. Longos dias na praia. O desejo de ter uma banda. Pós-graduações de morango, para sempre nos aguardariam no futuro da praia. Campos do América no caminho do Líbano. Damascos ao gosto de cada um. Capitães da Areia. Praias do futuro. Returnos. Torneios de ping-pong. Grafa aí: Grapettes. Major, não precisa pedir desculpa. O colorido ainda chegando a prazo na imagem da Telefunken. E logo se voltava de Manaus. Ou da Colônia de Férias. Em Iparana. Na Cofeco. E o gosto do milk shake tinha algo dos lábios de Jeannie. Tingia algo nos lábios de Jeannie. O Romcy. O Jumbo. O Jairo. O Vegas. Quem bebe? Empadas de carne moída e azeitona. Grapettes.

O Major Nelson morreu hoje.

4 comentários:

  1. Vão algumas considerações apressadas, que tu podes desarmar fácil, mas que, me parece, procedem:

    Desde uma versão anterior, veio o jogo com as palavras "major" e "alto-(auto)-falante". Major está obviamente no lugar de pai. Tanto em seus aspectos autoritários quanto em seus aspectos libertadores e de amparo, arrimo. "Auto-falante" é uma metáfora insana de o quanto esta cidade é barulhenta e proliferante. Perco algumas referências, no entanto: não sei o que "Megatério" está fazendo no contexto. Nem o que é "Jairo" ou "Vegas". Posso sentir que são lugares (bares, talvez?). Nem quem é o Padre Jessé. Fica claro, no entanto, que parte da função repressora do Pai/Major está sedimentada nas figuras de Edson Queirós e Tasso Jereissati. Eles parecem remeter-nos de volta ao "tempo dos majores" (i.e. “dos coronéis” - com a óbvia ressonância do "major" como maioral: majoral). Por outro lado, o Major Nélson e o Major Asthon(?) parecem compor o lado mais luminoso (falho, bem-humorado) da figura paterna. E por aí se vai. As pessoas vão a Manaus de navio. Depois voltam. Vão para a colônia de férias – detalhe que eu adorei, porque eu mesma ia com as minhas primas – e voltam. E ao final, tudo vai, se distancia. Mas volta, embora não haja algo como uma redenção na altura do ponto final. E, assim, o Major Nélson apenas morre, de repente, sem aparentemente deixar muito rastro...

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  2. Rastro era um perfume dos anos 70. vinha em frascos grandes e era anunciado por um belo vt. bastante simples: um vidro de perfume derramando em câmera lenta, um tema suave ao piano sobreposto a cordas e vozes. se não me engano o texto era: "um vidro de rastro que acaba é como o amor que vai embora".

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    1. Ney Vasconcelos26/11/12 5:59 PM

      'rastro. uma criação "aparício"'

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  3. Ney Vasconcelos26/11/12 5:58 PM

    'um vidro de rastro que acaba / é como o amor que vai embora. a diferença é que com rastro, você tem sempre um de reserva'

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