sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Aspettare


Joan Miró, 1952

As estrelas em torno da lua, escondem-se de novo diante da luminosa, enquanto ela, plena, luz sobre a terra. No céu de sua mente, as ideias e as coisas eram também ofuscadas por uma lua assim. 
*
Sete e vinte.
Os skatistas não cessavam de saltar do alto dos degraus. Em diferentes níveis. Tão rentes aos passantes que quando um deles levou um tombo mais escabroso, isso satisfez a ele. De alguma forma. E foi um dos poucos instantes em que vazou-se para fora da redoma.
Havia casais ocupando o banco em meia-lua em torno da estátua, erroneamente voltada para o mar, quando deveria ter sido posta para o lado da avenida, assim que se pudesse admirá-la em primeiro plano, de alguma perspectiva, e com o oceano ao fundo.
Ainda que não houvesse muito o que admirar, pensou ele. E inquieto consultou o relógio e o smartphone sucessivamente, ainda uma vez, em meio ao chafurdo incessante dos skatistas. Unhas eram roídas mentalmente, será que mortalhas teciam-se em reverso a partir da mesma abstração?
Um grupo de turistas, sentados nos degraus consultava seus guias como crentes consultam a parábola no Novo Testamento, em brochuras baratas. Um outro grupo de motoristas de furgão, escorados nos parapeitos à altura dos degraus onde se aboletavam os turistas, volta e meia ofereciam - a quem achavam com o biotipo e indumentária mais ou menos de turista – parábolas de roteiros para as praias do Leste, distribuindo os folhetos como se distribui santinhos em Fátima, Lourdes, Aparecida, Canindé ou Juazeiro do Norte.
No calçadão, as pessoas passavam. Em geral, pisando os ladrilhos com os seus tênis, sapatilhas e sandálias. Mas também sobre patins, bicicletas, triciclos, skates, patinetes. Andar por ali tornara-se também um exercício de desviar-se. Uma espécie de desviobol. Um novo esporte, em que a velocidade do desvio empatava com a necessidade de olhar nos olhos de quem se desviava, de acordo com a carência de cada um. Ou com a beleza do observado. E, então, olhares topavam-se.
Para logo em seguida destoparem-se. Bruscos. Ou não. E muito não. Como em quase qualquer estranha química nesta vida. Em alguns, sobravam um anjo, uma iara. Em outros, um cifrão. Em outros tantos, um canivete. Em não poucos: a embalagem, os preservativos. Nos mais decididos uma suíte na penumbra com decoração de duvidoso gosto. Mas, enfim.
Ele, como um pássaro preso, circulava entre os diferentes planos do monumento. Quase sempre de pé, mas às vezes sentado por um pouco nos balaustres e observando em torno ou mais ao longe. Num desolamento em que não se previa melhor gávea ou garantia de panorama. Numa toda espécie particular de greve.
Mais acima, junto ao mar, abrigando-se na semi-penumbra, os casais. Sentados no semi-círculo da insuficiente esplanada, idealizada para se contemplar acima do pedestal de granito, a grande índia vergando, não se sabe bem por que, a ponta de um enorme arco que devia ser de uso exclusivo de seu companheiro por aquelas eras imemoriais. Uma mulher loira, metida num jeans um tanto sumário para sua silhueta um pouco excessiva, contorcia-se lubricamente no colo de um sujeito calvo e contente como o Imperador do Sacro Império:
-Cada qual, com seu cada qual – ele pensou.
No plano do meio, os grupos de skatistas - que permanentemente imaginavam que a índia devia ser da tribo dos Apaches - permanentemente desembestava-se em carreiras e saltos até o passeio, lá, abaixo. E, claro, ocupando permanentemente uma suposta rampa para pessoas com necessidades especiais:
-Talvez os skatistas se julguem mais especiais que essas pessoas, então - ele pensou.
Depois, nos degraus rentes ao calçadão, os grupos de turistas, dos motoristas de furgões de turismo. E para lá do meio fio, as vans e trêileres estacionados, e de onde emanava um olor de gordura, salsicha, carne de hambúrguer, atum, maionese e mostarda.
Oito e quarenta.
Então, os casais, os skatistas, os motoristas de furgões de turismo, os turistas, os que trabalhavam nos trêileres de lanches, os garçons, os comensais dos restaurantes fronteiros, os frequentadores dos clubes de ginástica e os passantes sobre seus tênis, sandálias, patins, bicicletas, triciclos, skates, patinetes, carrinhos de bebê, tróleres para catar lixo reciclável disseram em perfeito uníssono, voltando-se para ele:

-Enfim, está ali um homem só.

E ele tomou o smartphone e discou o número.

Ainda uma vez.


2 comentários:

  1. Seu Ruy,

    O velho (blog) parado no tempo, onde me levaram as moscas e as microscópicas cartas (que eu penso serem letras), acabou por me trazer ao novo, onde o pulsar está em dia com os últimos acontecimentos. Escrever aqui parece ser muito triste ;-)

    curi ÔsÔ

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  2. é, de início, faz todo sentido serem 'letras' em vez de 'cartas', não é? o contexto é o de prisioneiros políticos, conspirações, salazarismos, códigos, cifras. além disso 'letras' dá uma aliteração e tanto com 'liam': "moscas liam letras microscópicas". mas parece que tanto no alemão quanto no sueco o termo em contexto segue mais perto de 'cartas' mesmo.´

    de, qualquer forma, a hipótese é considerável, irmão de olhos do dr. t.j. eckleburg.

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