quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Dentes Brancos: Zadie Smith



Zadie Smith em foto promocional (mais acima), e numa cerimônia de entrega de prêmios, em 2010 

Zadie Smith, David Foster Wallace, Jeffrey Eugenides e Jonathan Franzen contam entre os mais decantados escritores em língua inglesa surgidos nas duas últimas décadas. Recentemente Zadie Smith lançou mais um romance: NW - que é a abreviação para North West London, o código postal (postcode) da área. O livro, frequentemente comparado em desvantagem com o propalado romance de estreia da autora, o catatau White Teeth (2000), tem recebido uma apreciação mista. E um tanto morna. Com um, outro entusiasmo avulso.¹ Essa escritora, filha de inglês com jamaicana, nascida e criada na multiculturalidade pulsante (e um tanto desencantada) do Norte de Londres, hoje vive entre esta cidade e Nova York, onde é professora num programa de Redação Criativa (Creative Writing), além de escrever regularmente para prestigiosos suplementos literários. Fica a sugestão da leitura de White Teeth, a exemplo do Infinite Jest (1996), de Wallace, um daqueles livros que nos perspectivam diante de nosso tempo. E, de algum modo, fornece chaves para entendê-lo melhor. E, em geral, vindas de onde menos se espera. E abrindo portas para onde se quis estar, um dia. E de um modo mais gracioso que na filosofia francesa. Ou no rap nova-iorquino. O livro foi lançado aqui pela Companhia das Letras há quase dez anos, em tradução de José Antônio Arantes (Dentes Brancos, 2003).


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¹Críticos dizem de uma narrativa menos ambiciosa que em Dentes Brancos ou Da Beleza [On Beauty, 2005], livros onde há mais panorama e instantâneos desse mundo mutante e instável dos imigrantes do norte de Londres. (Ou, no caso de Uma Questão de Beleza - assim nomeado, na tradução brasileira, o 3º romance da autora - de uma família mestiça britânica morando na região de Boston). Alguns apontam para certo travo modernista, consubstanciado num fluxo de consciência que deriva de Joyce, segundo uns; de Virginia Woolf, segundo outros, pairando sobre NW. Um tanto como em Uma Questão de Beleza o modelo explícito é E.M. Forster. A história de NW, no entanto, se passa no cotidiano de duas mulheres criadas em North London. Uma atinge certo grau de sucesso e prosperidade, ao contrário da outra; embora ambas tenham chegado à universidade. Uma relação de ressentimento se interpõe. Como amigas íntimas elas se admiram, mas também conhecem os pontos fracos e o lado menos luminoso uma da outra. E há o fato de uma delas assomar mais bem delineada, como personagem. Para além, esse microcosmo londrino é igualmente habitado - e assombrado, como não podia deixar de ser - por quem elas desejam: dois sujeitos que também tiveram sortes muito distintas ao longo da vida. James Wood, o eminente crítico - que criou o conceito de "realismo histérico" justo numa apreciação de Dentes Brancos -  investiu com força contra o segundo romance de Smith, The Autograph Man (2002). E há um misto de fascínio e repulsa nas análises de Wood. Entre outras coisas, ele acusa a autora de converter situações sociais em personagens, esvaziando-os da possibilidade de um indivíduo. Mas mesmo Wood, um crítico feroz da equívoca hiperdisposição narrativa;  dos excessos meta: da profusão de citações, referências teoréticas, linhas paralelas de narração curtocircuitando-se ou conduzindo a detalhes mesquinhos; dos autores usurpando personagens e pondo palavras improváveis (ou no mínimo demasiadas) em suas bocas; e dos demais pastiches nessa prosa pós-industrial; não se furta a louvar a veia cômica de Dentes Brancos. Embora, no caso específico de O Caçador de Autógrafos (assim nomeado na tradução brasileira), ele proteste contra uma escrita que "é a mais próxima que uma escritora britânica chegou de soar como um(a) americano(a); o resultado é perturbadoramente mutante". Ou ainda: "o romance, que se passa num Norte de Londres e numa Nova York imaginários, porta o selo de escritores americanos, tais como David Eggers e David Foster Wallace, exibicionistas natos e astutos, QI's com I-Books, sujeitos que, no dizer de Smith, 'sabem das coisas', escritores com um dom para uma vertiginosa análise cultural e cuja prosa é vincada de interrupções" e de referências a metateorias e quejandos. Mas, mesmo aqui, não deixa de ser interessante que esses escritores virtualizados, já escrevendo na ambiência do hipertexto, mudando de continente como quem troca de roupa, perfeitamente desenraizados, elejam um lugar específico da memória como lastro de suas vidas. Caso da decadente Detroit que assombra a prosa de Jeffrey Eugenides; da Saint Louis das lembranças familiares de Jonathan Franzen; ou do Norte de Londres, mutante, revolvido e pós-industrial dos romances de Zadie Smith. O que James Wood lamenta é algo que situa-se a meio caminho da motivação, da pulsão comunicacional desses jovens escritores e o modo como empreendem esse registro: eles constroem sua linguagem a partir da estilização de uma fala que, bem entendido, está impregnada de absurdas referências pop (advindas, num primeiro momento da televisão, dos discos e filmes, e, posteriormente, da internet); mas, de outro modo, parecem não guardar suficiente distância disso. E, logo, assomam mais como resultantes desse estado caótico de coisas, que propriamente no papel de críticos mais abalizados desse panorama desolador. Os reclamos de Wood fazem sentido, desque a gente os entenda como algo que deplora não o retrato, em si, desse estado de coisas, mas uma espécie de vazamento da cultura pop para a prosa de vanguarda formatando, assim, um híbrido que desagrada ao crítico formativo, conservador, excessivamente apegado à ideia da narrativa e de um conceito mais ortodoxo de realismo, como é James Wood. Ele percebe bem: enquanto aparentemente apenas tecem uma espécie de sátira deste nosso mundo espetacularizado e coisificado, os romances também sucubem, eles próprios, à espetacularização, à coisificação e à banalização do  lixo midiático e pop no Ocidente: "a identificação de um problema não é necessariamente algo que se contrapõe a ele, e pode ser tão só uma simples cumplicidade: foi precisamente essa estrutura do romance trívio-tatuado de Rushdie, Fúria, que posava como um desafio, quando era em realidade uma carta de amor à sociedade do espetáculo". Ao se contrapor a esses jovens escritores, alguns, dentre os quais, mais ou menos da idade dele próprio, Wood, ironicamente, também ajuda-os a se definir e se enxergar melhor no panorama de mutações pelas quais tem passado a prosa em todo mundo - e no mundo de língua inglesa, em particular - nas duas últimas décadas, as do surgimento da internet e do livre compartilhamento de arquivos. E não deixa de ser um bocado abalizado - e mesmo um bocado divertido - o modo como Wood transpõe à tela do processador de texto suas inquietações sobre os admiráveis (e aterradores) novos rumos, as mutações e as reconfigurações do romance:


Incidentally, novels in which the leading characters are human Cray computers of arcane trivial facts, in which people quote Casablanca to each other, or start conversations with challenges like ‘name three vintage Hollywood decapitations’, or go on about Kitty Alexander and Lauren Bacall, are now coming to seem dismally familiar. We have had High Fidelity, and White Noise, and Quentin Tarantino, and The Sopranos, and Fury, and by now we get the idea that we are poor sops in the society of spectacle, and that everyone under fifty speaks in consumer clichés and TV tags. It may be time to retire this little observation.
[London Review of Books, 2002]


2 comentários:

  1. Em vez de e-mail, vou por aqui, porque tô com uns probleminhas, Barney. Roger!

    E vou começar usando uma palavra que tu não gostas: eu sou fã de Zadie Smith. Mas, então, escrevo para dizer que acho ducá que, depois de um paragrafozinho apenas informativa, tu tenhas introduzido essa nota de rodapé que é muito fina.

    Gostei dessa análise da relação entre James Wood e esses escritores pós-pós-modernos. Ou chamados por ele de "realistas-histéricos". (Aliás, chamados primeiro por ele). Embora não esteja muito claro, a mim, no final, qual é a real diferença proposta entre o que Wood lamenta que eles façam e o que eles fazem, de fato. Hoje estou com febre, gripe. E até entendo melhor as coisas nesse estado ou naqueles dias... Então, alguma coisa me escapou. E aí não sei se o problema é meu... É?(Gostei de haver escrito esse parágrafo, é quase tão cheio de meandros como os teus parágrafos de uns tempos pra cá).

    E, mais que isso, gostei dessa sacada de que apesar de flutuarem no virtual, desenraizados, para lá & para cá, praticamente cada um desses autores tem uma cidade como norte. Como base de orientação, de afeto, memória, lembrança. (Essa tua preocupação com o lugar). Eu nunca tinha pensado nisso, Barney.

    E outra coisa, Dear: é iBook, e não I-Book.
    (E acabei de apagar um comentário que eu ia enviando, adivinha no nome de quem? De quem :)?

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  2. Olá, Ruy

    Esse texto do James Wood é cheio de observações pertinentes. Como eu não li nem os livros da Zadie Smith nem dos outros autores, eu não sei até que ponto a crítica procede em relação a essas obras em particular. Mas acho que procede num plano cultural geral (generalizemos, meu povo, says the unscientific professor). Por exemplo, os Simpsons. Sempre achei engraçada a sacada de batizar o personagem de Homer, como se ele expressasse a mentalidade americana geral. Mas o ponto é que, embora o seriado satirize constantemente a cultura americana, brincando, por exemplo, com a completa ignorância do americano médio acerca de outros países e culturas, etc, o efeito geral do seriado, por mais irônico que ele se esforce pra ser, é de glorificação desse americano médio. Ele é apresentado ironicamente e é ironicamente adotado pela audiência. Ao final, vira mais um símbolo americano e tem o boneco inflável gigante passeando por Manhattan em dia de desfile. O que começa como uma sátira termina como uma comédia de identificação entre seriado e público. É um fenômeno com uma estrutura formal semelhante àquele de uma obra literária que, procurando representar o caos informativo dentro de uma mente contemporânea arquetípica - os personagens e suas ruminações servindo apenas como índices dessa mente contemporânea - perde de vista uma perspectiva moral sobre a matéria e se satisfaz em ser apenas uma reverberação supostamente mais 'meaningful' da cacofonia circundante. Confesso que leio pouquíssima literatura contemporânea (ultimamente, Virgílio pra mim já é demasiado moderno), mas assisto muitos filmes e seriados que caem nessa cilada metalinguística. Mas o problema parece ser algo em torno disso, a falta de perspectiva moral. Agora, acho que não consigo explicar satisfatoriamente o que seria essa perspectiva moral. Não é, claro, uma visão dogmática e repreensiva da vida moderna. Escrevo isso porque estou lendo o Infinit Jest, e nada da crítica do James Wood se sustenta até o fim em se tratando do Infinit Jest. E, mais ao ponto, em cada página do livro eu sinto a presença disso que, pobremente, estou chamando de perspectiva moral. Às vezes eu paro e penso nos pivetes na academia de tênis, ora nos junkies da clínica de reabilitação, ora nos diálogos noturnos da dupla de espiões filosóficos, e todos os parágrafos, todos os personagens, todas as cenas e episódios estão imersas em um sentimento estranho, triste, mas cheio de amor. Sempre lembro dos versos do Eliot ao final dos prelúdios: "The notion of some infinitely gentle / Infinitely suffering thing". Seja lá o que for, está em cada página do Infinit Jest. Por isso o livro repercute, makes you think and wonder. Como deve estar mais do que óbvio, não tenho moral para traçar uma crítica objetiva do livro, tanto porque não cheguei sequer à metade, como porque já é meu livro preferido (insert fake tv show laughs at this point, like 'hehehe'). Lembro de poucas personagens tão comoventes quanto Madame Psicosis. Aliás, todos os personagens convencem e estão bem longe de serem apenas recortes de falas diabolicamente bem redigidas. O Hal é uma espécie de Holden Caulfield futurista. Enfim, é um livro estranhamente comovente. It hurts, so it must be alive.

    Bem, aproveito para mandar um abraço e pedir desculpas pela falta de comunicação. Foi um longo ano, andei mil léguas dentro da minha cabeça, a maior parte do tempo em círculos, mas, ao menos, é dezembro, e logo vejo o mar de Fortaleza da janela de uma avião.

    Abraço,

    Odorico

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