quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O Editor




tinha que reprocessar o primeiro conceito visto às pressas num livro de Deleuze para o original ser minimamente levado em conta. Caso contrário, não seria publicado. Sabia. 
o editor era um sujeito alto, calvo, nem magro nem gordo, alvo, veias azuis, meio anêmico, que aparentemente namorava sua própria capacidade de pensar como era delicioso ler algo em que o ensaísta americano da vez meditava sobre a masturbação das vírgulas em Henry James. E pediu a ele para fazer uma cópia xerográfica de um dos livros que portava consigo: um poema épico modernista americano, numa edição barata da Penguin:
-a gente não topa com essas coisas por aqui todo dia – disse, resignado.
era ainda a fase heroica da net:
-cê acha que pode me dar uma resposta até o final do mês? - disse Arthur, quando de fato importou dizer algo. Embora tenha demorado chegar a esse algo.
e olha que antes já tinham passado pelas usuais bílis e perrengas entre escritores. Quem trepou com quem. A gafe cometida pelo Beltrano no lançamento do livro da Sicrana. A Mulher do F., que o trocou por uma aluna. O cômico prefácio do J.M. Como era desastrada a tradução daquele clássico da historiografia dos Annales feita pelo Fulano de Tal dos Anzóis. Ou aquele tipo político, que sempre se eximia de dar nomes aos bois. Ou, do contrário, o que o Túlio Bonsano aprontara dessa vez - e contra quem - em seu mais recente artigo na Folha, etc.
A pequena coleção de rixas que a alguns alimenta mais que frases ou sintaxe. Parece inevitável que se tenha de descer assim nos assuntos para publicar algo. O quê mesmo? Algo que ao menos Arthur julgava pronto e com algumas boas ideias. Algo em que ele acreditava, na bucha, haver posto um bocado de nervos, tendões. Só para parar ali, naquela sala de editora em São Paulo, e ficar contemplando os ladrilhos vermelhos na parede sem muita previsão do que a vida reservava. 
Uma coisa, no entanto, não reservava: a capacidade do editor perceber nos seus gestos, o tempo danado gasto para dispor as frases, daquele jeito, até formar, no todo, aquele algo, que estava ali em laudas encadernadas entre o plástico. 
E, não obstante, no navegar ainda não virtual da conversa, aquele algo tenha assim chegado quase como alga, boiando sobre as ondas, ao acaso. E, de repente, num manhã inesperada, algo está no seco da praia. E alguém pisa em cima de algo, como se limpa o dockside enlameado no capacho sobre o batente num dia de chuva. Ou então se retira o tênis depois de pisar na gosma - merda ou vômito - com um esgar no rosto:
-olha, cê sabe que a gente quase não tem editado poesia.
lá fora, uma moto passava avulsa. E o grande tráfego da 23 de maio, alguns blocos adiante, troava seu ruído branco na desgraceira sem fim de São Paulo.

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