segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Fímbrias de cega luz varrendo os aposentos


[s/i/c]



crônica

Raios, raios duplos


Desde a infância poucas coisas – aviões à parte – me metem tanto medo quanto raios. Não aqueles relâmpagos distantes a que correspondem, depois de longos segundos, trovões abafados. Esses são aprazíveis, e até ajudam a dormir se já se está no aconchego da cama. Mas aqueles instantâneos, em que luz e som assomam em simultâneo, e partem a noite em duas com grande voragem. Aqueles que caem com aparato e Zeus, no perímetro do quarteirão.

Desconfio que a casa onde moro atualmente está fora da área de proteção dos pára-raios circunvizinhos. No quarteirão, há apenas um prédio de oito andares e fica quase na esquina oposta. Certa vez li que o perímetro de ação dos pára-raios equivale ao dobro de sua altura. Em geral, não gosto de prédios altos. Mas, em noites de trovoadas muito rentes, como e com que fervor desejo que àquele prédio se acresçam pelo menos mais uns dezessete andares. Ou que nossa casa resvale para mais junto como uma criança desprotegida.

Em 1975, em Camocim, no entrecho das férias de julho, presenciei a maior tempestade de que me lembro. Muita fúria no vento. E raios, muitos raios, raios duplos caindo em toda volta. Estávamos em casa de minha avó, que morava numa espécie de chácara. A mesma avó paterna que me iniciou nos mistérios da religião e no horror ao inferno. Ela, apesar de ser uma brava mulher, é a pessoa que mais teme raios que já tive oportunidade de conhecer. Acho que os teme meio com se fossem chispas do inferno.

Diante de seu pavor, meu medo de raios não passa de um receio pueril, sem vigor algum. E naquela noite houve uma tal descarga elétrica que assustaria até John Wayne e toda a tribo dos comanches. Trovões sob trovões. O diabo. Fímbrias de cega luz varrendo os aposentos. Não em larga intermitência, mas caindo como gostas de chuva. Muito rentes uns dos outros. Artilharias da Primeira Guerra.

Alguns quartos da casa – inclusive o que eu ocupava – não eram forrados o que fazia com que a luz coasse com mais intensidade para dentro. E alumiasse até a alma. E fizesse um raio-x dos medos.

Deitados em nossas redes, eu e um primo – ambos em férias escolares.

Meu primo não demonstrava qualquer receio diante da épica tempestade. Uma lástima, já que eu, um ano mais velho, numa época em que isso conta muito, não só não tinha com quem dividir meu pânico, mas ainda devia mostrar-me menos atemorizado do que ele. E ele puxava assunto de sua rede. Falava do futebol que jogaríamos, com a nova bola de salão, quando tornássemos a Fortaleza. Da filha do proprietário do serviço de auto-falantes. De pegar carretilha nas ondas da Praia das Barreiras. Bons temas quando se tem catorze anos. Mas não para aquela noite de incêndio no céu e raios duplos.

A certa altura, uma lamparina passou-se em débil luz pelas frinchas da porta e alguém golpeou-a. Era minha avó. Havia passado de quarto em quarto recrutando todos os netos que se encontravam em férias. Éramos cerca de seis ou sete. Reuniu-nos ao pé de si, em seu quarto. Em trincheira. Nesse comenos, a trovoada chegava a seu auge. E todos nós ali, em torno do terço, debulhando ave-marias.

Então, um clarão mais luz que a do sol varreu o quarto em estrondo, puxando suspiros entre dentes até dos mais comedidos. Mas o tal primo que dividia o quarto comigo não perdeu a vez:

Bom, né, Vó, que a gente fique junto, porque se o próximo cair aqui no quarto, não vai sobrar um pra contar a história. Vai todo mundo junto pro Céu.

A censura só não foi maior do que o riso.

A serventia do humor também traduz-se em coragem, e é prece.

No dia seguinte, constatamos que uma faísca havia ceifado o olho de um dos coqueiros mais altos da chácara.



Nota - crônica originalmente publicada em O Povo [2004] e, posteriormente, na extinta revista eletrônica Nariz de Cera, em 2006.


* * *

3 comentários:

  1. Eu também tenho medo de raios e sou uma senhorita que tem medo de muito pouca coisa nessa vida. Bonita crônica, Ruy!

    Beijocas e a melhor semana!

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  2. Ruy,
    Essa crônica é um espetáculo. E que figura, o seu primo... bastante senso lúdico para puxar conversa com tamanha ingenuidade.
    É uma pena que noite passada não tenha caído uma chuva por aqui.
    Abs,

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  3. ruy, eu tbm tenho medo.
    eu fecho os olhos, tapo os ouvidos e rezo para que não caia algum em minha cabeça.

    bjs,

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