[s/i/c]
crônica
O Enigma de Gofer
Hoje de madrugada, esperando que caísse chuva para ficar ainda mais feliz, relia o Gênesis na King James Version – o monumento maior da prosa em inglês. Num determinado passo, estaquei. Trata-se do momento em que o Senhor repassa a Noé instruções de como construir uma arca:
"Make thee an ark of gopher wood; rooms shalt thou make in the ark, and shalt pitch it within and without with pitch".
[Gênesis, 6, 14]
Na tradução do português João Ferreira de Almeida, do sec. XVIII, a primeira feita a partir dos idiomas originais:
“Faze para ti uma arca da madeira de gofer; farás compartimentos na arca e a betumarás por dentro e por fora com betume”.
Fiquei curioso para saber que árvore era essa: “gofer”. Consultei tudo que foi dicionário. A coisa mais próxima a que cheguei foi no Houaiss, que registra:
gofé: n substantivo masculino Rubrica: angiospermas. Regionalismo: São Tomé e Príncipe. m.q. musanga (Musanga cecropioides).
E, por seu turno:
mussanga: n substantivo feminino Rubrica: angiospermas. 1 design. comum às plantas do gên. Musanga, da fam. das cecropiáceas, que reúne duas spp., nativas de regiões tropicais da África e cultivadas como ornamentais 1.1 árvore que atinge mais de 20 m (Musanga cecropioides), da fam. das cecropiáceas, com raízes adventícias e copa larga, madeira leve e resistente, folhas grandes, suborbiculares, com até 15 lobos, flores dióicas e frutos sincárpicos, amarelo-esverdeados, doces, muito procurados pela fauna; gofé (STP), nesanga (ANG), oeduema.
Terá sido essa árvore, só conhecida onde há língua portuguesa como gofé, no pequeno arquipélago de São Tomé e Príncipe (e em Angola sob o nome de “nesanga”) a que forneceu a resistente madeira para a arca? Será possível que vivendo no país das árvores, que tem árvore até no nome, não haja um só pé de gofé aqui pela Aldeota?
Fosse Câmara Cascudo ainda vivo, tiraria minha dúvida rapidinho. Era só lhe passar um imeio. Mas não. Não é assim. O mestre potiguar morreu há 23 anos. E, se fosse vivo, provavelmente não faria uso das infovias... Embora, com certeza, me confirmaria na lata se gofé é gofer. Por outro hemisfério, a Terra Santa não fica em climas tropicais ou subtropicais. Como São Tomé e Príncipe ou Angola. É um pouco desértica, verdade. Mas às vezes até neva por lá... Será que a "gofé" de São Tomé é a "gofer" das Escrituras? Só vendo para crer...
São cinco para as quatro da madruga. Pensando melhor, ainda bem que a chuva ainda não chegou. Os serviços de meteorologia melhoraram de uns tempos para cá. Mas ainda não são confiáveis. E nada há que garanta que, uma vez começada, a chuva não se estenda por quarenta dias e quarenta noites. Seria o suficiente para cobrir, brincando, duas ou mais torres do Canal Dez. Não há estrelas no céu. Um galo cantou avulso num dos quintais, cada vez mais avulsos, da vizinhança. Os bem-te-vis ameaçam trilos desirmanados.
E ainda estou longe de decifrar em definitivo o enigma de gofer.
[05.02.09]
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Belíssima crônica, Ruy. Belíssima.
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