segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

São Paulo, gastronomia, romance e apartação social


Taumaturgo Ferreira, São Paulo, 2005


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resenha
Cidade do Sol com Helicópteros

Heliopolis
por James Scudamore
Harvill Secker, 288 ps., £12.99


Parece que recentes evidências desmentem o que escrevi há só dois meses atrás aqui por Afetivagem:

Quando se sabe que o episódio de Canudos foi assunto tanto de A Primeira Veste (1975), do georgiano Guram Dochanashvili; de Veredicto em Canudos, de Sándor Marai; quanto de A Guerra do Fim do Mundo, de Vargas Llosa: alguém lembra de São Paulo haver sido o tema de um único grande romance escrito por um importante prosador contemporâneo estrangeiro? Não se pode dizer que o livro de Llosa excede. [Mas aqui me prendo expressamente ao interesse pelo assunto, ao seu poder de canto e sereia, sedução]. Ou seja, a ironia: Canudos, no tórrido Sertão do Nordeste, um povoado de presumíveis 20.000 habitantes, varrido do mapa há mais de cem anos pela artilharia de uma república recém-proclamada, fascina mais a imaginação de ficcionistas que a grandiosidade épica, cinza e pós-moderna de São Paulo. E o quanto disso não se deve a um livro. E um livro que era "o livro" brasileiro favorito de ninguém menos que Jorge Luis Borges.

Mas quando o desmentido vale a pena, porque a alma passa ao largo do mesquinho, tudo converge.Vamos  a ele.
Foi lançado, neste início de 2009, pelo escritor inglês James Scudamore, [ainda sem tradução para o português] Heliopolis, seu segundo romance. E um romance que, muito ironicamente em relação a nossa afirmativa, toma São Paulo como sua grande personagem. Especialmente com esplêndidas descrições da cidade. E, como não poderia deixar de ser, da partição social que a caracteriza. Estampas em palavra movidas pela desproporção urbana que é São Paulo. Por sua imensa variedade humana e diversidade gastronômica – a referência à gastronomia, aliás, é sempre uma constante do livro. Pelos fascínios, entre outros e enfim, de Sampa ser, talvez, a megalópole contemporânea com a maior frota de helicópteros a cruzar diuturnamente seus horizontes cinzas e encardidos, transportando de um para outro heliporto sua elite podre de rica.
Um dos ricaços do livro chega mesmo a dizer: “it’s not just a question of safety … nobody who’s anybody gets driven to work in the city these days” [“não é só uma questão de segurança... alguém que é alguém não segue para o trabalho de carro no centro hoje em dia”].
A trama do romance, no entanto, é relativamente simples. Um menino da favela Heliópolis, Ludo dos Santos, vê-se adotado, um tanto fortuitamente, por um mega-empresário da área de supermercados. Isso se dá quando a mãe de Ludo, uma quituteira de mão cheia, é recrutada pelo empresário, Zé Fischer Carnicelli – o Zé Generoso – para trabalhar na cozinha de sua fazenda, no interior de São Paulo. Ludo cresce, assim, num ambiente antípoda ao de sua infância na favela.
Quando adulto, é levado de volta à metrópole e lhe é dado um posto de destaque na agência de publicidade que veicula os interesses de seu benfeitor. Carnicelli está interessado sobretudo na perspicácia de Ludo. Na sua potencialidade de vender produtos que possam entrar nas favelas com grande aceitação. Tudo calcado, naturalmente, no próprio conhecimento de causa acumulado por Ludo, quando garoto, nos becos de Heliópolis. A prioridade máxima, aqui e naturalmente, é para o que vende, a despeito de utilidades ou das necessidades mais simples.
Mas as coisas não saem tão simples assim nos planos do mega-empresário para seu quase filho adotivo. Ludo acaba apaixonando-se pela filha do próprio Carnicelli, Melissa, com quem mantém um atribulado romance adúltero onde o risco entra como especiaria prezada. Ludo chega, por exemplo, a modificar os arquivos pessoais, documentos e cartas armazenados na memória do computador do marido de Melissa. A mãe desta, Rebecca, frívola e pragmática, como boa socialite, está mais interessada em tudo que não seja afeto verdadeiro. E, por seu turno, a agência de publicidade em que Ludo trabalha incorpora elementos de um novo-riquismo tipicamente kitsch, como uma bancada de trabalho cujo tampo é, na verdade, a asa de um bombardeiro americano da época da Guerra do Vietnã.
Mas talvez essa asa, além de signo da futilidade do mundo publicitário, também siga como metáfora da própria personalidade auto-destrutiva de Ludo, que segue atormentado pela incapacidade de conciliar a miséria de sua infância e a opulência da endinheirada elite paulistana de seu métier. Além disso, o relacionamento com Melissa, sua irmã de criação, pode ser caracterizado quase como um tabu incestuoso, causando-lhe ao mesmo tempo uma sensação de culpabilidade e uma moção de vingança contra a figura de seu “benfeitor” e de sua classe adotiva. Melissa, de resto, também o atormenta com toda um repertório de condições, caprichos e volubilidades típicos da menina rica que namora o rapaz de extração pobre. Aqui, o paralelo que se pode traçar é com a paradigmática figura de Estella, presente em Grandes Esperanças [Great Expectations], de Dickens.
Mas as semelhanças com Dickens não se esgotam aí. Como em Dickens, a trama é menor que a atmosfera instalada. O enredo, sem embargo, possui em largos traços algo de folhetim. Poderia ser bom argumento para uma novela das oito. No entanto, o livro surpreende em vários aspectos. E, em especial, nas pulsantes descrições da cidade de São Paulo. Por vezes, como espaço semelhante ao visto na Guerra do Vietnã, dependendo da perspectiva de se estar num helicóptero ou no rés-do-chão – fato para qual não se apontou até aqui nas recensões sobre o livro.
Deve-se notar também o quanto, até no próprio título de seu romance, Scudamore está em débito com o cinema brasileiro. Afinal, em sua história recente a favela tem sido uma locação de destaque: Central do Brasil, Notícias de Uma Guerra Particular, Cidade de Deus, Tropa de Elite, entre tantos outros. Muito mais do que a literatura e, nos últimos tempos, até mesmo do que a música popular, é o cinema brasileiro quem tem contribuído decisivamente para a construção de um imaginário de país fora do Brasil. E, claro, filmes ambientados em favela constituem hoje, por si, quase um gênero a parte.
Há também muito a se contestar quanto a plausibilidade histórica do Heliopolis de Skudamore. A favela brasileira, por exemplo é de um dinamismo extravagante. Difícil crer que alguém que só viveu durante a infância na favela, caso de Ludo, possa ainda dominar os códigos de uma comunidade tão dinâmica assim já na idade adulta.
Até a década de 70, as favelas eram controladas por contraventores e nos davam sambistas como Cartola. Hoje, são controladas por traficantes de drogas que se sucedem um ao outro em vertiginosa alternância de mando, por conta da endêmica e concentrada violência. Traficantes que, por vezes, toleram que se implantem ONG's, geralmente geridas com certo grau de ingenuidade e paternalismo por estrangeiros ou gente de classe-média. E na música, quando muito, as favelas atuais nos legam rapers de quinta categoria.
Porém se o Heliopolis de Scudamore está ainda longe de ser um romance definitivo, escrito por um ficcionista estrangeiro, sobre a sombria apartação social brasileira, que encontra em São Paulo sua mais meticulosa tradução, consegue em larga medida ser menos idílico, exótico ou fantasista que obras como o Brazil, de John Updike ou Negão e Doralice do canadense de expressão francesa [na verdade, brasileiro naturalizado canadense] Sérgio Kokis.
E isso não é pouco. Especialmente quando se tem em conta que o romance é narrado na primeira pessoa por um protagonista que sai dos becos de Heliópolis para o sobrevôo cotidiano em que a elite paulista entrevê, com a devida distância, a paisagem social que comanda com a cupidez típica dos feitores.
[02.02.09]
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