quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Elementos para uma blogologia


R. Butler, Musée imaginaire, 1963




Sete fábulas sem cuspe sobre blogues


1. Trocar de pele

Quanto mais se muda a aparência de um blogue, mais se reforça sua descartabilidade. Mudar de pele com frequência equivale a envelhecer mais cedo. Ou então, educar os leitores para não tomar notícia de pequenas, reais variações. Dos detalhes, que são alma. Já que a cada dia eles se deparam com um aspecto diferente, como notar mudanças? Deixar de trocar de pele a cada dois dias seria a real mudança. Até pela deposição de mais ênfase nas palavras, no que segue expresso do que na “casca” geral da coisa. Mudar a aparência de um blogue, quase na freqüência com que se posta, nada tem a ver com mudança, mas com disfarce. É lançar mão da entropia visual para encobrir certa falta de agilidade mental.


2. Queimar livros em público, vimos esse filme antes

E falar no que segue expresso, há esses blogues que promovem verdadeiras queimas de arquivos. Ao se reiniciarem, negam ao leitor o que foi previamente publicado. Os arquivos anteriores, acumulados em meses, anos. A história, digamos assim, de si. Isso não é recomeço, senão culto à desmemória. É pagar qualquer possibilidade de uma leitura conjuntiva, histórica.


3. Congregar por antologia não é esmola

Há blogues que funcionam como antologias de outros blogues. E nisso pode haver mérito. Mas esse mérito não confere a esses antologistas qualquer prerrogativa moral, a não ser – quando for o caso – aquela do colecionador amoroso. Pois o legítimo colecionador está menos interessado em determinar suas escolhas por posições ideológicas fechadas, dogmáticas, sectárias. A graça soa ser o critério número um que norteia suas escolhas. Se de fato são escolhas amorosas. Se de fato provêm de colecionadores.


4. Vamos comprar briga?

Jorge Luis Borges discorre sobre a conversa entre amigos. Entre latinos essa conversa está longe de ser desinteressada e feliz, diz ele. Segue longe, aliás, de ser conversa. Rapidamente assume a forma sofista da disputa. Como se necessariamente tudo fosse disputável. É um tanto como se alguém exclamasse: “a luz da manhã é bela em Fortaleza”! E logo outro necessitasse afirmar: “mas a do fim da tarde é mais bonita”! Sem sequer abrir espaço ao primeiro para digredir sobre o matiz de luz da manhã. Falar de seu encanto. Do modo de senti-la, etc. Há, aqui, uma reatividade emocional que bloqueia qualquer reflexão mais austera e paciente. Mais matizada. Se é assim numa conversa entre amigos, calcule o que se passa nessas polêmicas altissonantes, onde há mais altissonância que argumento. Há blogues onde só se ouve altissonância.


5. O santo desconfia

Apreço pelo blogueiro que desconfia de si, ao entender que “quer” a felicidade de todos, do mundo. Ao modo de um arauto. O mundo anda um tanto cansado de “jardineiros da boa-vontade”, que se empenham em colher com a esquerda o que cultivam com a direita. Aqui, o velho ditado sobre esmolas grandes. Mas também a consciência da falta de espaço no inferno para as mais nobres intenções. As mais nobres intenções, afinal, não passam disso. São abstratas. Incapazes de mudar algo no quarteirão. Especialmente quando postas com recorrência num blogue que é, em essência, algo que recorre.


6. Quero mais confetes & royalties, please

Certo escritor famoso da língua portuguesa nos diz que, a cada vez, somos mais nossos defeitos que nossas qualidades. A frase, embora soe retórica, não parece de todo incorreta. A não ser num ponto: ele lamenta – e não apenas se dá conta – de que é assim. Afinal, somos o que repetimos. Precisamos mais de críticas sinceras e reparos que nos ajudem a afiar do que de elogios ocos, protocolares. Prêmios tolos que nos deixam com a crista ainda mais empinada. Isso de gente famosa em blogues remete para necessidade tática de ocupar espaço. Marqueteiros de editoras devem telefonar insistentemente para certos escritores: “– Olha, fulano de tal dobrou as vendas depois de criar um blogue. Por que você não faz o mesmo? Posso postar por você à razão de quinze por cento.”


7. Imagens sons, gente se debulhando em lágrimas

Mais e mais se põe imagens em movimento e sons nos blogues. E a palavra escrita se amesquinha diante deles. Numa entrevista, nos fins dos 60, em que surge ao lado da esposa, e esta discorre sobre um depoente que chora durante um documentário, Godard diz: “Não se põe pessoas chorando em documentários!” A ponderação é perfeita. Na TV, em quase qualquer reportagem de fundo mais passional – assassinatos, crimes em família, velórios, tribunais, cataclismos, apurações de votos para escolas de samba, recepções de prêmios ou medalhas, etc. – há uma deliberada intenção por parte do entrevistador de fazer o assunto chorar. São aqueles momentos em que a câmera fecha o quadro sobre o entrevistado se “emocionando”. Trocar de blogue como de canal ao se topar com um logro desses. Cessar de ver o filme. Aqui, a lembrança de um folclórico repórter fotográfico dum diário sensacionalista de São Paulo que, segundo dizem, costumava recravar a faca no cadáver para conseguir sua “foto”. Em geral, assomam tão distintas as pessoas que sabem enfrentar situações de comoção sem se debulharem em lágrimas. Sem as conceder aos vampiros que querem embriagar-se delas para compensar-se da própria indigência emocional. Chorar é algo íntimo. Blogar, nem sempre. E o problema com boa parte da arte brasileira é o de adotar um ponto-de-vista semelhante ao do repórter fotográfico. E recravar a faca no cadáver. Do contrário, emoções mais fundas não se dão através de comoções públicas.



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