quinta-feira, 12 de março de 2009

E navegou?


A Igrejinha de São Bernardo em Fortaleza



A História do Palpite


Em um de seus livros de memórias, Coração de Menino, Gustavo Barroso nos conta o episódio que segue abaixo. O episódio parece prosaico em si. Mas logo percebemos sua riqueza de implicações. Barroso nos informa de um passeio com o pai nas circunvizinhanças da igrejinha de São Bernardo – que até hoje existe, na esquina das ruas Senador Pompeu e Pedro Pereira. A família Barroso havia morado nos arredores em tempos passados e Felino Barroso, pai de Gustavo, informava ao filho, então uma criança, de velhos vizinhos e antigas casas. Até aí nada de tão excepcional. Pais gostam de reconstituir para filhos um mundo anterior, em que viveram. Isso faz parte do jogo entre gerações. Mas eis que, de repente, no contexto desse jogo, ele menciona algo inusitado:


[...] Reza-se a missa na Igreja de São Bernardo.[...] A igreja não tem torres, fica à esquina da Rua de São Bernardo com a Rua Senador Pompeu, Antiga [Rua] Amélia. Ao sairmos, meu pai demora algum tempo, olhando a esquina fronteira, onde se ergue uma casa baixa, de muitas janelas. Depois diz-me:

--Guarda bem o que vou te contar, porque já existe pouca gente que disto se lembre nesta terra e em breve não haverá mais ninguém. No terreno em que se levanta aquela casa, aí por 1858 ou 1859, o velho Pacheco, que era talvez o homem mais rico da cidade, [..], construiu um navio.

--Um navio?! Indago com espanto. Aqui, tão longe do mar?

--Sim, um navio. Lembro-me como se fosse agora. Morava nesse tempo aqui, na Rua Amélia e, ao passar para a escola, via os carpinteiros trabalhando o cavername do barco debaixo de uma latada de palhas de coqueiros. Todas estas ruas ainda não haviam sido calçadas de modo que, quando a embarcação ficou pronta, estivaram-na com madeira, a fim de arrastá-la sobre rolos para o mar. A escravaria puxava-a com cordas. Seguiu pela rua de São Bernardo até ali ao Garrote [...], e desceu pela Rua de Baixo, [...], atual Sena Madureira. Levou mais de quinze dias para ser posta a flutuar.

--E navegou?

--Muito tempo. Entre Fortaleza, Camocim, Aracati. Iate veleiro e seguro, diziam todos.

--Como se chamava?

--O nome era engraçado: “Palpite”. Uma famosa comissão científica, da qual faziam parte, entre outros, o botânico Limão, o engenheiro Capanema e o poeta Gonçalves Dias, mandada pelo imperador a estudar o problema do Nordeste, fretou o iate para trazer sua papelada, creio que do Camocim para Fortaleza. No caminho, o pobre do “Palpite” foi a pique, dizem que de propósito, para esconder muambas...

[BARROSO, p.43, supressões de trechos [...] nossas]


O trecho abre com uma advertência quase de tom bíblico: lembra, porque poucos lembram e em breve ninguém lembrará. Então, O pai conta ao filho do navio, indicando, no mesmo movimento, o local onde a embarcação havia sido feita: um terreno, que, à época, já era ocupado por uma casa. Há em seguida o gesto de assombro da criança. Podemos pressentir seus olhinhos brilhando de interesse. O veleiro estava sendo construído pelo homem mais rico de Fortaleza ao final da década de 1850, o Pacheco. O pai contava mais ou menos a idade do filho, quando passava para a escola e entrevia os carpinteiros a trabalhar na estrutura da embarcação. As ruas tinham areia em seu leito, ainda não eram pavimentadas. Deslocar o iate até o mar foi proeza. Demorou mais de quinze dias, com escala na Lagoa do Garrote (atual Cidade da Criança). E, significativo: a presença da mão-de-obra escrava (“a escravaria puxava-a com cordas”) -- o que aponta ainda uma vez para a desconstrução da idéia de que, por seu contingente reduzido, os escravos no Ceará foram quase que exclusivamente domésticos. Por fim, vêm mais duas informações importantes: a da comissão científica da qual fazia parte o poeta Gonçalves Dias e a referência ao contrabando.

Visto com lupa, tudo aqui é anedota inscrita em história social e filtrada pelo espaço urbano. Poder-se-ia escrever uma tese inteira a partir dela. Rastrear o histórico da embarcação, buscar dimensionar a prática da navegação à vela e/ou do contrabando na costa cearense em meados do sec. XIX, conhecer mais sobre o regime de trabalho ou as condições de vida da mão-de-obra escrava e/ou ainda tomá-la como pretexto para investigar mais a fundo os trabalhos dessa comissão científica de que pouca notícia se tem até hoje. E, note-se, em termos de espaço urbano, tudo segue mapeado: da esquina entre ruas Senador Pompeu com Pedro Pereira para a praia. A região aludida fica, hoje, em pleno centro comercial. Mas a pequena Igreja de São Bernardo, com suas paredes pichadas e aspecto cansado, ainda lá está, sitiada por lojas, numa região de comércio varejista e tráfego intenso.


* * *


Um comentário:

  1. Caro Ruy,
    Esse relato da construção do barco "Palpite", no centro de Fortaleza, escrito pelo Gustavo Barroso, é delicioso. Daria um filme fantástico, com outras tantas histórias pelo meio, como você assinala.

    Lembra o "Fitzcarraldo", de Werner Herzog!

    abraço,

    Augusto Cesar Costa

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