Para
todos os efeitos, o Ferroviário está acabando. Ou dá indícios
disso. Foi a terceira força do estado por oito décadas e nove títulos. O primeiro clube de Fortaleza a
possuir um estádio próprio moderno, de alguma envergadura: o Elzir
Cabral. O único time da capital amplamente identificado com uma
classe trabalhadora, uma categoria profissional: os ferroviários – que, a rigor, não existe
mais. Ao menos nos moldes em que existia. O 85º maior clube do Brasil seguindo o ranking da CBF (mas quem liga para rankings?) Bicampeão cearense 1994-95. (Em 94, ano em que o Ceará foi vice-campeão da Copa do Brasil). Orgulho da Barra do Ceará, extremo oeste do litoral de Fortaleza, região de grande impacto histórico e paisagístico, margeando o Rio Ceará.
Até a década de 1950 um significativo contingente de operários trabalhava nas Oficinais das centrais ferroviárias de, em especial, duas cidades cearenses: Fortaleza e Camocim (esta, sede da Estrada de Ferro de Sobral).
Só em Camocim eram mais de trezentos operários. Vitais para a economia desse porto, à época o mais importante do estado. Num determinado momento, por ocasião da legalidade do PCB, nos anos 1940, dizia-se que o Nordeste possuía dois grandes pólos comunistas: o Recife e Camocim. Mas essa efervescência não perduraria muito. Ao final da década seguinte, o governo de Juscelino deporia toda ênfase no transporte rodoviário. Algo que veio a reboque do interesses das montadoras transnacionais que instalaram-se no ABC paulista. As ferrovias foram deixadas de lado. Começaram a ser sucateadas. Seus serviços decaíram. A maior parte do pessoal foi deslocado para as capitais. Ao final dos anos 50, a central de Camocim foi desmobilizada, e vários ferroviários vieram morar em Fortaleza. Mesmo que o ramal só tenha sido extinto de fato em 1977, o golpe de misericórdia fora dado já à época do governo Juscelino.
Historicamente, esses ferroviários provindos de Camocim, Sobral, Crateús e outras cidades do interior fixaram-se no Bairro da Floresta, oeste da capital, não muito longe da sede do Ferroviário. Muitos foram transferidos para as Oficinas do Urubu, nos arrabaldes a oeste, onde havia uma pequena estação que antecedia Caucaia. No entanto, esses empedernidos operários não descuidaram de seu amor pelo time, de suas raízes interioranas. Tampouco da lida na estrada de ferro. A tudo isso acresça-se certa nostalgia pelos antigos ramais, interioranos, com suas estações cada vez mais espectrando-se nos desvãos do tempo: Sobral, Massapê, Senador Sá, Uruoca, Martinópole, Granja, Camocim. E, a partir de Sobral adentrando-se no Sertão para oeste, afastando-se do curso do Coreaú, e raspando o sopé da Ibiapaba em Ipu, descendo a sul até Crateús.
Até a década de 1950 um significativo contingente de operários trabalhava nas Oficinais das centrais ferroviárias de, em especial, duas cidades cearenses: Fortaleza e Camocim (esta, sede da Estrada de Ferro de Sobral).
Só em Camocim eram mais de trezentos operários. Vitais para a economia desse porto, à época o mais importante do estado. Num determinado momento, por ocasião da legalidade do PCB, nos anos 1940, dizia-se que o Nordeste possuía dois grandes pólos comunistas: o Recife e Camocim. Mas essa efervescência não perduraria muito. Ao final da década seguinte, o governo de Juscelino deporia toda ênfase no transporte rodoviário. Algo que veio a reboque do interesses das montadoras transnacionais que instalaram-se no ABC paulista. As ferrovias foram deixadas de lado. Começaram a ser sucateadas. Seus serviços decaíram. A maior parte do pessoal foi deslocado para as capitais. Ao final dos anos 50, a central de Camocim foi desmobilizada, e vários ferroviários vieram morar em Fortaleza. Mesmo que o ramal só tenha sido extinto de fato em 1977, o golpe de misericórdia fora dado já à época do governo Juscelino.
Historicamente, esses ferroviários provindos de Camocim, Sobral, Crateús e outras cidades do interior fixaram-se no Bairro da Floresta, oeste da capital, não muito longe da sede do Ferroviário. Muitos foram transferidos para as Oficinas do Urubu, nos arrabaldes a oeste, onde havia uma pequena estação que antecedia Caucaia. No entanto, esses empedernidos operários não descuidaram de seu amor pelo time, de suas raízes interioranas. Tampouco da lida na estrada de ferro. A tudo isso acresça-se certa nostalgia pelos antigos ramais, interioranos, com suas estações cada vez mais espectrando-se nos desvãos do tempo: Sobral, Massapê, Senador Sá, Uruoca, Martinópole, Granja, Camocim. E, a partir de Sobral adentrando-se no Sertão para oeste, afastando-se do curso do Coreaú, e raspando o sopé da Ibiapaba em Ipu, descendo a sul até Crateús.
Em décadas mais recentes, quando trens de passageiros eram já realidades limitadas apenas à Fortaleza e municípios metropolitanos, sucessivas
más administrações levaram o Ferrim a bancarrota. Logo ele que tinha como diferencial o minimalismo de ser tão bem gerido que, com uma torcida consideravelmente menor que as de Ceará e Fortaleza, era capaz de batê-los regularmente. E até eventualmente ser campeão.
Porém, ao contrário
de seus dois rivais diretos, o Ferroviário Atlético Clube nunca pôde se dar
ao luxo de ser mal administrado por um tempo muito longo, como é praxe em ambos os rivais. Em especial, após um ou outro brilhareco sem continuidade, pois jamais conquistaram nada digno de nota em nível nacional. Nestes, a agremiação, além de servir como trampolim - tubo de ensaios para futuros negócios escusos na política (e até nos negócios) - é, no atacado, vampirizada pelas medonhas torcidas organizadas, cujas sedes sociais são mais resplandecentes que as dos próprios clubes. E que contam, evidente, com a leniência criminosa de boa parte da imprensa. E o aval dos clubes mesmos.
Estranha promiscuidade: os clubes auxiliam aos que lhes retiram renda: as organizadas. Essas torcidas - Cearamor, TUF e congêneres - conformam a própria encarnação da ideia de máfia, poder paralelo. Não que o Ferrim não possua torcidas organizadas, e, no entanto, as suas têm sido desimportantes dentro do próprio universo de torcedores corais, que em si é já reduzido. Então, é necessário tomar dimensão da gravidade do momento. Dessa draga toda, se o Ferroviário quiser escapar. E buscar uma fórmula de mobilização para reverter as recentes derrotas.
Estranha promiscuidade: os clubes auxiliam aos que lhes retiram renda: as organizadas. Essas torcidas - Cearamor, TUF e congêneres - conformam a própria encarnação da ideia de máfia, poder paralelo. Não que o Ferrim não possua torcidas organizadas, e, no entanto, as suas têm sido desimportantes dentro do próprio universo de torcedores corais, que em si é já reduzido. Então, é necessário tomar dimensão da gravidade do momento. Dessa draga toda, se o Ferroviário quiser escapar. E buscar uma fórmula de mobilização para reverter as recentes derrotas.
O Tubarão da Barra está, de fato, no fundo do poço, em coma, na UTI. Mas não
acabou. E, de outro modo, não é apenas por haver caído para a
segunda divisão de um campeonato estadual sem lá muito fluxo ou apelo –
a rigor só possui dois concorrentes de peso - que se vai deixar de torcer
pelo Ferrim. E, sublinhe-se, o Ferrim esteve em 29 finais de Campeonato Cearense. Em quase 30 campeonatos, ele terminou à frente de ou Ceará ou Fortaleza. Será que quem menospreza o Ferroviário desconhece-o?
Ora, sem bile, há algo de boêmio e arriscado, de anômalo em ser Ferroviário. É como viver no exílio. Ou torcer para o Saint Pauli em Hamburgo. Ou para o Wanderers em Montevidéu. Para o Juventus (ou mesmo a Portuguesa) em São Paulo. Para o Galícia em Salvador. Para a Tuna Luso em Belém. Há uma espécie de radicação portuguesa, que compõe com o contingente de migrantes açorianos fixados pela Zona Norte do Estado: principalmente Sobral, Granja, Camocim e as cidades da Ibiapaba. Mas há também um impulso anárquico. Torcer Ferroviário é, acima de tudo, reservar-se o direito de não ser maria, e ir com as outras. De optar pelo terceiro excluído. Nada contra, a não ser, "que tenho outros brios. E nado contra as correntes ao saber distinguir entre democracia e populismo".
Ora, sem bile, há algo de boêmio e arriscado, de anômalo em ser Ferroviário. É como viver no exílio. Ou torcer para o Saint Pauli em Hamburgo. Ou para o Wanderers em Montevidéu. Para o Juventus (ou mesmo a Portuguesa) em São Paulo. Para o Galícia em Salvador. Para a Tuna Luso em Belém. Há uma espécie de radicação portuguesa, que compõe com o contingente de migrantes açorianos fixados pela Zona Norte do Estado: principalmente Sobral, Granja, Camocim e as cidades da Ibiapaba. Mas há também um impulso anárquico. Torcer Ferroviário é, acima de tudo, reservar-se o direito de não ser maria, e ir com as outras. De optar pelo terceiro excluído. Nada contra, a não ser, "que tenho outros brios. E nado contra as correntes ao saber distinguir entre democracia e populismo".
Torcedores ilustres de times ditos pequenos são o que não falta. João Cabral de Melo Neto torcia para o América do Recife. E chegou mesmo a jogar lá em categorias de base. Ninguém mais fala nesse clube hoje em dia. Mas João Cabral não virou casaca. E até escreveu poema em que fala das vantagens que existem em nem sempre ganhar, o que torna as vitórias muito mais plenas de valor:
O Torcedor do América F.C.
Clarice Lispector era Botafogo, apenas a quarta força do Rio, e um time relativamente modesto até começar a ganhar tudo a partir do final dos anos 1940. E estabelecer a legenda da estrela solitária, que deve ter brilhado um bocado para o lado bruxo, cabalístico de Lispector. Lamartine Babo, que compôs os hinos de todos os grandes clubes do Rio, reservou o mais belo deles para o seu América.
O Torcedor do América F.C.
O
desábito de vencer
não
cria o calo da vitória;
não
dá à vitória o fio cego
nem
lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a
sem mofo: coisa fresca,
pele
sensível, núbil, nova,
ácida
à língua qual cajá,
salto
do sol no Cais da Aurora.
Clarice Lispector era Botafogo, apenas a quarta força do Rio, e um time relativamente modesto até começar a ganhar tudo a partir do final dos anos 1940. E estabelecer a legenda da estrela solitária, que deve ter brilhado um bocado para o lado bruxo, cabalístico de Lispector. Lamartine Babo, que compôs os hinos de todos os grandes clubes do Rio, reservou o mais belo deles para o seu América.
Meu
adversário não é meu inimigo. Mais que nunca é preciso entender,
aqui, que, longe de mim, a glória e a derrota de meus principais adversários respingam sobre as minhas. Acabar com o Ceará seria matar o
Fortaleza. Acabar com o Ferroviário, retirar muito da vida de ambos.
Basta lembrar que dois clássicos morreriam abraçados com o Ferrim: o da
paz e o das cores. Ou que o Ferroviário cansou de ganhar de
Fortaleza e Ceará em circunstâncias diversas, no passado. Às vezes, de sonora goleada. Ou ainda que o tubarão aprontou poucas e boas para cima de Bahias e Vitórias, Sports e Santas, Payssandus e Náuticos. Estamos falando de um time que já bateu o Fluminense. Que em sua fase áurea, na década de 40, não escolhia adversário. Ou, para não ir longe, meteu sete no Bahia em 2006 (7x2).
A lealdade da torcida coral foi sempre maior e mais heróica, mais intangível e honesta que as das outras duas, porque devotada a um time que ganhava bem menos que os outros dois num mundo em que ganhar virou sinônimo de tudo - não importa o estilo. Pelo padrão do Império, o loser fica sem nada, porque como já reforçava o Abba, desde os 70, "the winner takes it all". Quem duvida que havia algo de Henrique V e da Batalha de Agincourt nas vitórias ferroviárias? Para não dizer do balanço da Estrada de Ferro de Sobral em curvas e pontes debruçando-se sobre lagoas e rios de sonho, desde Camocim? Isso era começar a ser Ferroviário. Na ginga monótona e sublime do trem.
A lealdade da torcida coral foi sempre maior e mais heróica, mais intangível e honesta que as das outras duas, porque devotada a um time que ganhava bem menos que os outros dois num mundo em que ganhar virou sinônimo de tudo - não importa o estilo. Pelo padrão do Império, o loser fica sem nada, porque como já reforçava o Abba, desde os 70, "the winner takes it all". Quem duvida que havia algo de Henrique V e da Batalha de Agincourt nas vitórias ferroviárias? Para não dizer do balanço da Estrada de Ferro de Sobral em curvas e pontes debruçando-se sobre lagoas e rios de sonho, desde Camocim? Isso era começar a ser Ferroviário. Na ginga monótona e sublime do trem.
Como
se não bastasse, saíram do Ferroviário alguns dos jogadores de
maior ressonância no futebol brasileiro formados a partir do Ceará: Mirandinha, Jacinto, Jardel, o interminável Mota. Jacinto e Mota, meias talentosos, distribuidores de jogo, foram titulares do Cruzeiro. E há o caso expresso de Jardel. Que jogador formado nas categorias de Ceará e Fortaleza foi tão bem sucedido quanto Jardel, que chegou a botar a malha da seleção? Nem mesmo Iarley.
O
que vem asfixiando o Ferroviário além de más administrações –
afinal, times com bem menos torcida e tradição que o Ferrim chegaram a títulos
importantes, caso do São Caetano – foi a perda de seu sentido.
De seu sentido histórico. A dignidade da sua importância e códigos. Exemplo? Havia um hino tradicional e antigo. Foi substituído por um novinho em folha, composto no Paraguay e onde se chama o time de Ferrão. Ora, para o verdadeiro coral, nunca houve problema em chamar o Ferrim de Ferrim. Do contrário, é carinhoso, brasileiro ao extremo, esse diminutivo. (Em Pernambuco o Santa Cruz é chamado de Santinha, soa bonito e local, sem nenhum complexo de inferioridade). Era como, inclusive, os mais antigos - que viveram até mais glórias, títulos e vitórias que nós - chamavam e chamam afetuosamente o time. É como o time é chamado em seu hino original. Algo que escapa à estreiteza bitoladora, redutora de um marketing mais tacanho, ditado a partir do Sudeste. E imitado sem muito brilho - como ocorre ser, por aqui, em outras esferas - por uma crônica esportiva que segue longe de ser a cocada preta - embora haja Sebastiões Belminos, Sérgios Redes na manga, e certa formação de folclore, mitologia, no melhor sentido.
De seu sentido histórico. A dignidade da sua importância e códigos. Exemplo? Havia um hino tradicional e antigo. Foi substituído por um novinho em folha, composto no Paraguay e onde se chama o time de Ferrão. Ora, para o verdadeiro coral, nunca houve problema em chamar o Ferrim de Ferrim. Do contrário, é carinhoso, brasileiro ao extremo, esse diminutivo. (Em Pernambuco o Santa Cruz é chamado de Santinha, soa bonito e local, sem nenhum complexo de inferioridade). Era como, inclusive, os mais antigos - que viveram até mais glórias, títulos e vitórias que nós - chamavam e chamam afetuosamente o time. É como o time é chamado em seu hino original. Algo que escapa à estreiteza bitoladora, redutora de um marketing mais tacanho, ditado a partir do Sudeste. E imitado sem muito brilho - como ocorre ser, por aqui, em outras esferas - por uma crônica esportiva que segue longe de ser a cocada preta - embora haja Sebastiões Belminos, Sérgios Redes na manga, e certa formação de folclore, mitologia, no melhor sentido.
Além
do que, se o Ferroviário acabar – e o clube vem se esforçando para tanto, progressivamente
murchando desde 1995, quando foi campeão estadual pela última vez –
haverá um rebaixamento geral. Rebaixamento de rivalidades no
futebol da cidade de Fortaleza. De sua diversidade. E não me digam que o Horizonte
ocupará esse vácuo. O Horizonte sequer é de Fortaleza, e essas coisas não funcionam assim. Haverá um
bom assunto a menos. E tudo decairá para aquela bipolaridade estreita,
insípida, maniqueísta. Como é em Porto Alegre.
Como
usam ser maniqueísmos, bipolaridades.
O primeiro registro fotográfico preservado do time do Ferroviário data de 1938, cinco anos após a fundação do clube, em 9 de maio de 1933.
P.S.
Anteontem, na transmissão de Chelsea x Barcelona, pela Globo, o modo de pôr o hino do Chelsea em acompanhamento de marchinha após o gol foi hilário. Galvão et caterva, aliás, tomaram posse do Barcelona. E já se sentem em casa. É a mais nova aquisição, a mais nova franquia Galvão Bueno & Associados, junto com o MMA, já que a seleção brasileira tem caído significativamente de audiência, e é preciso empreender. Ou fazer de conta que se está ousando, empreendendo. Seja no que for. Entendam, Galvão como narrador é excelente. O que ninguém mais suporta ali é excesso de má patriotada - ou seja, certo excedente de ufanismo jeca - além de um jornalismo chapa branca, deliberadamente desprovido de sobretons críticos. Inclusive em relação à CBF. Ou à pasmaceira e falta de transparência geral que envolve o gerenciamento do futebol enquanto negócio, e que incide sobre a organização da Copa no Brasil.
UFA! Cansei um pouco. Pensei: essa conversatá longa. Mas quando cheguei onde se diz "A Lealdade da torcida coral", aí eu arrupiei. Até eu que sou Leão, fiquei com vontade de chorar.
ResponderExcluirNANDA
pois pode se debulhar. mas não é a intenção. nem a especialidade da casa
ResponderExcluirLendo a crônica em 2020, após o Ferroviário ser detentor do recente título de Campeão Brasileiro de 2018. E uma nova era se inicia...
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