/sic/
E
penar para tornar mais venal o virtual
Em
geral, a sociabilidade com gente ligada à arte gera compromisso. Em
geral, espúrio. [Seria necessário esclarecer e exceptuar, aqui, mas
não é o momento]. Tem havido uma cerrada burocratização de
procedimentos na esfera da arte. Daí que termos como "gestor",
"consultor", "curador" hajam migrado da esfera
burocrática para a artística. Em geral, o mesmo se pode dizer da
academia. O simples convívio com práticas artísticas
(estabelecidas) ou práticas acadêmicas doma e poda criatividade.
Se
isso era já moeda corrente antes do advento da internet e das novas
mídias digitais, imaginem depois. Terá sido coincidência que quem
melhor pensou a questão esteve à margem? Há, aqui, toda uma
linhagem de inadaptáveis, começando por Simmel, passando por
Huinzinga, Benjamin, Kracauer, Bazin, Flusser, Elias et alli. E quando
houve mais consórcio com a academia: i) ou o pensamento inflou-se de
pompa e metalinguagem, esquecendo a actualidade do mundo, como no caso
dos franceses pós-estruturalistas; ii) ou a derivação de um
pensamento sugerente e subtil hieratizou-se em um formalismo
excessivamente sistêmico, incapaz de abrir margens para sugestão e
cotidianos, como em Habermas e o "prosseguimento" dado às ideias propostas pela primeira geração dos teóricos de Frankfurt.
A
melhor produção tem saído de fora do novelo do “meio artístico”,
da “vida acadêmica”. Do consórcio espúrio com as ONG's (que
não são mais do que velhas práticas de dominação realocadas e um
tanto mais dispersas, pulverizadas. Embora os mais incautos creem que
estão "mudando o mundo" por meio delas). E quando se pensa
que alguns artistas vendem a alma para estar no centro dessas
práticas!
É
mais ou menos óbvio que a internet bagunçou por completo o coreto
do “artista profissional”. Músicos e escritores, que cobravam
fortunas por um cerrado e milimétrico controle de suas “obras”,
de repente se ressentem de vê-las tão descaradamente ao alcance de
todos. E de graça. É o que se nota no discurso de gente ressentida,
inclusive aqui pelo Brasil, com a suposta "morte da obra".
Não passa antes esse ressentimento pela queda de um faturamento que
já foi mais, digamos, "polpudável" na linha do horizonte?
O
advento da internet reaproximou o artista do público de duas formas:
α) fisicamente – pois o músico teve de voltar ao palco, o
escritor à palestra, etc. (por conta da avassaladora exposição não
controlada da obra, a que desde antes da internet já se chamou
prontamente de pirataria, e implica numa drástica redução de
ganhos) e β) através de um potencializador quase infinito do que é
descrito por Walter Benjamin em “Das Kunstwerk im Zeitalter seiner
technischen Reproduzierbarkeit”. Ou seja, a obra agora conhece
desdobramentos reprodutivos – novos plissados e trampolins e cachos
e convênios e ganchos de reprodução, de virtualidades, de
anamorfoses, suplementos, conexões, hibridismos, fissuras,
descontinuidades – inimagináveis antes da década de 90.
Logo, é fora das formas "sub-auráticas" -- que ainda existiam na imprensa, no filme, no disco de vinil -- que ora se dá a reprodução. Isto é, dá panos para as mangas pensar o que é a materialidade do MP3 por contraposição ao suporte material do disco de vinil com lados e faixas a serem sulcadas analogicamente por uma agulha de cristal, facilmente vulnerável a arranhões, com uma estampa de papel ao centro, guardado numa capa, com encartes, etc. Capa e encartes que podiam ser até assinados pelo zeloso dono. À sua vez, o MP3 perecerá muito mais rapidamente que essa agulha, que essas faixas que quando arranhadas como que recobravam uma aura, uma unicidade. Assim como as capas assinadas também estavam bastante vulneráveis a ação do tempo: arranhados, superficie preenchida por decalques, selos, etc. Podiam, dessa forma e ao contrário do MP3, reunicizar-se. Isto é, tornar-se únicas outra vez. Ou ao menos recobrar uma sub-aura, por serem ao mesmo tempo produtos da seriealidade e únicos enquanto objetos, pois eram evidentemente mais materiais que seus sucedâneos digitais. Aqui, o adjetivo virtual cai como uma luva para descrever esses novos entes da era digital. Caso do MP3, dos arquivos de texto em formatos diversos, do e-mail, do post. Com o velho jornal ainda era possível embrulhar um peixe. Com um tweeter, nem isso. Isto é, a rigor esse processo de reprodução é algo tão diverso do analógico que deveria ser renomeado: virtualizacão.
Logo, é fora das formas "sub-auráticas" -- que ainda existiam na imprensa, no filme, no disco de vinil -- que ora se dá a reprodução. Isto é, dá panos para as mangas pensar o que é a materialidade do MP3 por contraposição ao suporte material do disco de vinil com lados e faixas a serem sulcadas analogicamente por uma agulha de cristal, facilmente vulnerável a arranhões, com uma estampa de papel ao centro, guardado numa capa, com encartes, etc. Capa e encartes que podiam ser até assinados pelo zeloso dono. À sua vez, o MP3 perecerá muito mais rapidamente que essa agulha, que essas faixas que quando arranhadas como que recobravam uma aura, uma unicidade. Assim como as capas assinadas também estavam bastante vulneráveis a ação do tempo: arranhados, superficie preenchida por decalques, selos, etc. Podiam, dessa forma e ao contrário do MP3, reunicizar-se. Isto é, tornar-se únicas outra vez. Ou ao menos recobrar uma sub-aura, por serem ao mesmo tempo produtos da seriealidade e únicos enquanto objetos, pois eram evidentemente mais materiais que seus sucedâneos digitais. Aqui, o adjetivo virtual cai como uma luva para descrever esses novos entes da era digital. Caso do MP3, dos arquivos de texto em formatos diversos, do e-mail, do post. Com o velho jornal ainda era possível embrulhar um peixe. Com um tweeter, nem isso. Isto é, a rigor esse processo de reprodução é algo tão diverso do analógico que deveria ser renomeado: virtualizacão.
O
advento da internet, em suas duas décadas iniciais, representou algo
como a reinvenção da imprensa sob o signo de um acesso absurdamente
mais universal – porque precedido pelo folhetim, pelo cinema, pela
TV, pela cultura pop, etc. Por um breve instante o capitalismo
vacilou, penou para pôr preços em uma mercadoria que era muito mais
abstrata, escorregadia: é literalmente virtual. Em outras marés, é bem mais
amoldável "ao gosto do freguês", manipulável, costumizável, enviável,
etc. Mas, entre tantos atributos terminados no sufixo '-ável',
nenhum é lembrado com mais pesar pelos executivos da esfera do
showbusiness, do entretenimento, das gravadoras, dos estúdios, das
editoras, das redes de TV, da indústria cultural e de seu mercado do que:
incontrolável. Este os faz acordar para um pesadelo diurno. Eles que
haviam se acostumado a controlar milimetricamente as porções de
direitos autorais e de cópia com frações generosas para si
próprios e seus empreendimentos. E, logo, é todo o conceito de direito autoral e a legislação que o rege que precisam ser revistos. [E estão a ser em toque de caixa. Em abril de 2012, um usuário de internet em Portugal foi preso por copiar e partilhar arquivos de música sob copyright. Mas os indícios do controle que está por vir nos próximos anos ainda são incipientes. Esse controle ainda será férreo; e os conteúdos, domados e postos sob preços, devidamente desdemocratizados.]
A
mediocridade, no entanto, contenta-se com essa disciplinarização da
internet sob as regras da limitação de seu alcance - fenômeno em
franca expansão. Em limitá-la no tempo, no espaço, o que coincide
com o projeto capitalista e aos poucos segue retirando, sugando dessa
universalidade inicial e absurdamente inesperada. Certos conteúdos,
por exemplo, já só são encontráveis em determinadas regiões ou
países. Ou para o assinante premium. E cada vez mais direitos de imagem e copyright os regulam. A Wikipedia, uma glória dos novos tempos digitais, tem sido
ameaçada constantemente. E uma área que conhece um quantum perto de inimaginável é a do direito que regula tudo isso. É dessa regulagem medíocre, contra a qual se debatem os hackers - como no passado os bandoleiros sociais (tratados por Hobsbawm e outros autores) - que emergirá uma internet consideravelmente menos universal. Ao menos em refluxo e por tendência. Monopólios como o Google já devolvem em seus motores uma busca "adaptada" ao contexto cultural, linguístico e geográfico em que se empreendeu a pesquisa, etc.
Porém
a mediocridade também se encontra no centro mesmo do “meio
artístico”, da “vida acadêmica”. Em seus filistinismos. Em
sua (má) fé na crença de que a tutela da arte pela burocracia
resulta em algo auspicioso. Em seu desejo de apôr à arte o discurso
sobre ela. Ou sujeitar a arte a um sectarismo político, ao
politicamente correto, ou ao relativismozinho da vez. Não poderia
ser diferente. E só a extrema exceção, só o gênio – o Corelli
digital, o Händel digital¹ – é capaz de safar-se de ver sua
produção amortecida pelas rotinas grises dessa cadeia vazia de
colóquios e simpósios resucessedendo-se mundo afora. E se a
ilustração – aparte desses meio e vida – encontra-se mais
diluída por toda parte, é quase nada por méritos do “meio
artístico”, da “vida acadêmica”, porém pela contingência
do meio internet enquanto mensagem – como assim, sem conhecê-lo
propriamente sonharam Benjamin, Bazin, McLuhan ou o Gene Youngblood
de Expanded Cinema (1970). Pois de alguma forma esses autores já falam de
internet antes mesmo. À sua vez, a internet em seus primeiros anos foi o
suplemento do segundo grau ou a graduação de centenas de milhões
que sequer chegaram à universidade. Para não calar sobre a centralidade da
rede aos que chegaram ou estão nela dia após dia. E da rede como imagem geral [ou alegoria - esta palavra é importante] de uma biblioteca muito mais vasta, atualizada e
dinâmica que a biblioteca [analógica] de qualquer instituição de
ponta pelo planeta afora. Não é pouca coisa.
Um
autor como Borges gastou sua vida e trabalhos e afetos no empenho de
“ser” uma biblioteca. Mas esse empenho, como o de Prometeu, gera
grandes ressentimentos. E então, em sua própria ficção Borges
sonhou com uma saída mágica, mística: o Aleph. Hoje em dia, é
desnecessário “ser” uma biblioteca, porque a internet
converteu-se no Aleph sonhado por Borges: o acesso à memória, ao
conhecimento; o acesso à redefinição do próprio conceito de
acervo. Acesso a uma erudição fora do corpo, arquivada
megametricamente em memória artificial. A interseção que contém o
universo.
Pode-se
dizer que um dos grandes méritos da internet passa pelo megamétrico
(mas, ressalve-se: só em parte). E esse mérito provem de sua
capacidade de ampliar desmesuradamente o que era cravado como “quadro
epistemológico”. Nos primeiros anos da internet, o especialista
extremo e o leigo extremo tiveram diante de si o mesmo “quadro
epistemológico”. Só passado o pasmo inicial é que o conhecimento
- fator de posse classista (caso em especial do conhecimento jurídico) - na internet passou a ser mais disciplinarizado e regido pela lógica
capitalista. Por outro lado, possivelmente mais do que as políticas
assistencialistas, foi a internet, pela democratização de
conhecimentos especializados e gerais, enciclopédicos, o que
possibilitou o surgimento das novas classes médias em países como
Turquia, China, Índia, Bangladesh, Chile, Brasil... E isso se dá
porque a intuição é o estímulo básico para se mover na internet.
E,
porém, a megametria da internet, se funciona no atacado -- no
sentido de ampliar formidavelmente a audiência e torná-la mais
aplicada à confecção de objetos de arte, assim como esses objetos mais
modeláveis e plásticos -- também admite no varejo – isto é,
especialmente por parte dos produtores de arte a interferir na mídia
digital – as enormes distorções e os filistinismos
característicos de épocas palinódicas. É de se sublinhar não menos o quanto a figura do produtor de arte, do autor, no ambiente da rede, é antes de mais nada a de um grande consumidor. E consumidor de imagens e sons técnicos que, cada vez mais, sugam para fora do corpo os momentos decisivos da criação enquanto técnica e forma. Quer dizer, a internet levou a um paroxismo inimaginável, só há uns poucos anos atrás, a consumização do autor, do produtor de arte. Está claro que este precisa, antes de mais nada, converter para virtual o que já foi elaborado antes ou começar no ambiente virtual o que ainda não foi feito. E, sem essas tarefas, é impossível à vastíssima maioria sobreviver de sua arte: criar apenas por representação analógica, sem virtualizar.
A
misantropia, a hesitação, o receio, a desconfiança são antídotos
contra uma recepção demasiado festiva das ONG's junto com
formulações acríticas, ralas ou pueris da internet e das novas
mídias, e que as tomam apenas como alavancas democratizantes.²
(Aqui,
misantropia deve ser tomada como método).
__________________
¹Em
outras palavras, aquele que obtêm muito êxito e vive no vero centro
da esfera artística, como esses compositores viveram em séculos
passados, e, ainda assim, produz uma obra que transcende essa esfera
no rumo da intuição e do mistério, embora solidamente lastrada na
autoridade de um conhecimento prévio. Este conhecimento, de agora em diante, redundará cada vez mais do consórcio entre os sentidos e aparatos que os potencializam à infinitude, como os smart glasses - conectados à rede e interagindo com bases de dados, serviços GPS, motores de busca, tradutores automáticos, etc. Visão e audição ampliam-se até que limite? Será possível a confecção de biônicos, como no seriado da década de 70? Tudo indica. Mas também se fortalecerá a tendência a se criar nichos de acesso a internet de acordo com o poderio econômico. E isso progressivamente irá minar a democracia e a universalidade que experimentamos nos primeiros anos do fenômeno.
²Neste
sentido, se tomarmos o universo dos supersítios, dos sítios mais
acessados, é já notável a diferença entre a Wikipedia e o Youtube
no que diz respeito à publicidade. Por outro lado, o conceito de
jornal dá voltas na tumba sem decidir ao certo como reaflorar na
rede. A vitória definitiva do virtual sobre o impresso se deu, contudo, este ano. Mais precisamente no momento em que se anunciou que a Encyclopaedia Britannica, que há 244 anos é impressa, será a partir deste ano apenas disponibilizada em ambiente digital.
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