quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Uma menos remota distância


Antônio Bandeira, Capri, 1957




Vinte e Tantas Casas & uma Ilha Solteira



Dizem que amor é trabalho diário. Talvez. Mas se assim for, além de egoísta, tem muita gente preguiçosa neste mundo. Acho que a sugestão foi feita por um amigo alemão, Helmut Schmmitz, que por seu turno, a pescou do filme “Sur”, de Solanas. Helmut era um apreciador de tangos e um sujeito de refinados humores.
A etimologia, essa ciência deliciosamente imprecisa, nos diz que trabalho, a palavra neo-latina equivalente a work, Arbeit, vêm de ‘trepalium’, um instrumento de tortura, espécie de pau-de-arara da época do Império Romano.
Mas, também é fato que muita gente trabalha, e com prazer. E o fruto desse trabalho é algo de uma incomensurável responsabilidade.
Entre essa parcela, encontra-se a dos arquitetos. Estes têm de modelar o palco em que famílias inteiras vão medrar e se dissipar no espaço dos anos. Uma responsabilidade à toda prova.
Seguia pensando nisso no que caminhava de manhã bem cedo, pelas ruas da Aldeota, nas cercanias da casa de meus pais. Conheço de certas ruas, cada casa, um tanto como se elas e não seus donos, fossem os amigos íntimos. E me exaspera um bocado saber que estão construindo um segundo pavimento improvisado sobre aquela platibanda. Ou o que é pior, a fachada será maquilada com lambris para a instalação de um consultório, um escritório de engenharia, uma locadora de vídeos.
Porém, ao mesmo tempo, alguns dos sítios mais impressionantes são casas demolidas. Digo melhor, parcialmente demolidas, justo na etapa em que elas ainda resguardam o assoalho e um certo vestígio de divisão, do que um dia foram paredes. Espécie de maquetes vazadas, plantas baixas ao vivo e literalmente. Espectros do que foram nos muitos anos em que habitadas por duas ou três gerações. Fortaleza não suporta mais que esse lapso.
Ela era uma senhora baixa metida em um vestido inteiriço e amarelo-claro. Era um pouco obesa. E pisava com vagar e olhos comprimidos a calçada. Portava uma sacola de feira, dessas em plástico verde, e caminhava junto aos muros, com cílios longos, grisalha, absorta em seus pensamentos:
“Desculpe, a senhora não é a avó do Valdir?”, eu disse.
“Héin?”, ela exclamou, revoltando o corpo para trás.
Repeti a pergunta noutros termos e pausadamente.
Foi só quando ela me avalizou sem mais receio:
“Ah, você é o jornalista, o, o -- o que mora em São Paulo”, disse.
“É, bem -- na verdade, esse é meu irmão Flávio. Eu sou o Carlos, o mais velho, sou professor. E..”
“Sim, sim. Você falou Valdir. Eu chamo ele de Júnior, por causa do pai dele que também era Valdir. É um menino de valor. Inteligente. A mulher dele é que não presta, viu? Última vez que eles estiveram aqui, com meu marido doente, imagine que ela queria por que queria que eles ficassem com o quarto dele. E eu disse, ‘não enquanto eu viva for’. Meu marido morreu, ano passado.”
“Sinto.”
“O Júnior é que está morando no fim do mundo, meu filho, com a mulher e minha bisneta. É uma cidade, um interiorzinho desses de São Paulo: Ilha Redonda.”
Ao se despedir, ela disse:
“Meu nome é Maria José -- e acrescentou -- apareça. A minha casa é aquela do muro baixo, de azulejos. Minha família já teve vinte e tantas casas. E, agora, no fim da vida, moro de aluguel. Apareça, vocês são uns meninos ótimos. O Júnior sempre fala em vocês. Minha casa é a do muro baixo, todo mundo sabe.”
“Ilha Redonda”, ponderei. Velha mímica das palavras. Eu havia estado com o neto dela, certa noitada em julho passado, no apartamento de Flávio, em São Paulo. Na verdade, Valdir, professor de Física em início de carreira, morava em Ilha Solteira, próximo à fronteira do Mato Grosso do Sul. E pensei, no quanto para ela uma ilha redonda, simétrica, acessível, junção de duas metades, devia soar menos remota que uma ilha solteira.



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