sexta-feira, 17 de abril de 2009

Sim, uma música forte... mas sem as manguinhas de fora


[s/i/c]




Cadê o notebook?



Fortaleza é uma cidade de música forte. De música de porta a fora. Ouve-se música no supermercado, nos bares, no consultório do oftalmologista, na rua, nos apartamentos, por vezes (argh)! em volume ensurdecedor nos carros. E até na Bienal do Livro. Ouve-se música a valer nos ônibus. Nas barracas de uma praia loteada. Quase sempre, na praia, como em muitos outros locais "públicos", música de gosto duvidoso e altura sem futuro. Aqueles forrós medonhos que transformam em trapo tudo que tocam, num andamento frenético. E que lembram a vulgar carranca de maquiagem das bailarinas - que, em parte, parece ter sido absorvida por boa fração das garotas da cidade.

Se duvidar há música até nas enfermarias, maternidades e UTI's. Nos fóruns e tribunais. Nas igrejas Evangélicas e nos cultos da Renovação Carismática, elas são muito parecidas: têm três acordes, se tanto, um refrão grotesco de base onomatopaica e remetem a um filme de terror. Um filme, aliás, que bem pode ser dirigido por Padre Marcelo Rossi. Em resumo, esses "cânticos" parecem haver sido compostos nos quintos dos infernos. Ainda bem que há, para compensar, os vendedores de chegadinho. Cada um deles seguindo um padrão rítmico diverso ao triângulo, enquanto seguem vendendo seus confeitos numa flanagem sem fim, quarteirões adiante.

Também auspiciosos são os dias de chuva. Em que o silêncio se destaca um pouco mais, sob a música dos pingos.

Fortaleza é uma cidade de música forte. À sua vez, parece também um sacrilégio dizer isso. Especialmente quando se sabe que pouca gente, de fato, vive de música na cidade. E, no entanto, há tantos vivendo para a música. Vá a qualquer bar ou boteco da Aldeota: do Mistura Cenários ao Bar do Papai, do Arlindo ao Fafi, passando pelos Bebedouros e Cafés Pagliucas da vida, e todos têm sua dose de música ao vivo. Seu cardápio sonoro.

Ouve-se de tudo: jazz, bossa-nova, covers de rock, tecno, rap, samba, chorinho, velhas serestas... Temos até nossa própria e intransferível Lady Day: a imprevisível e temperamental Fátima Santos. Uma roda se reúne às quartas na Mercearia, ao lado do Mercado dos Pinhões, para escutar o programa de jazz de Maurício Matos, pré-gravado na Rádio Universitária. Bom programa. Há músicos para todos os gostos e estilos. Gente jovem tocando como gente grande, talentos escorrendo pelo ladrão. Desde covers de Raul Seixas no Cantinho Acadêmico á sofisticação de grupos como a Marimbanda ou instrumentistas da estirpe do violonista e bandolinista Carlinhos Patriolino ou do saxofonista Márcio Resende.

E, no entanto, quase nenhum desses músicos que vendem seu talento a preço de banana aos proprietários de bares e botecos se deram conta de quatro notas dissonantes: i. o conceito do cd, de "gravar e editar um cd", já foi pro espaço há muito tempo; ii. as imensas possibilidades do mundo digital e da internet ainda não são vistas nessas apresentações; iii. as gigs são quase sempre de standards, não funcionam como amostras de criações individuais ou coletivas; iv. praticamente inexiste, mesmo nas gravações de estúdio, uma concepção mais apurada de arranjo ou direção musical. Os instrumentistas, que são vários e excelentes, em sua maioria confundem velocidade com virtuosismo; excesso de acordes com sofisticação harmônica. Musicalmente, o resultado é uma espécie de "monocordia" praticamente desprovida de um aspecto fundamental: dinâmica.

Os sinais de que isso tudo iria cansar, num dia não tão distante, foram surgindo com lentidão geológica. O primeiro álbum praticamente a prenunciar o final do cd gravado em estúdio, cá por Fortaleza, por exemplo, já data de 2002: Kinobox, um disco produzido por um piauiense chamado Dustan Gallas para o grupo Realejo Jazz Quartet, do qual ele fazia parte. Escrevi sobre esse disco à época para O Povo. O álbum foi todo gravado em casa, à base de bricolagem real e digital e um notebook MaCintosh. Da bateria gravada no banheiro, de distorções de voz usadas como serialidades percussivas. Ele porta sonoridades surpreendentes. Uma grande dose de inquietude e invenção.

E assim se passaram sete anos. O Dustan apurou ainda mais sua perícia para produzir sons a partir da eletrônica e dos dispositivos digitalizados. Tornou-se um produtor refinado, que aponta para a bricolagem digital. Para calibrar sonoridades estranhas, à margem da assepsia e da limpeza insípida das mesas de controle de som multicanais dos grandes estúdios da cidade.

E, ainda assim, meu compadre, sete anos depois, ainda é raríssimo ver uma banda, um músico que também "toque" notebook em sua gig de barzinho. Parece que a maioria ainda sonha em entrar no estúdio com uma mesa de 64 canais, gravar um superdisco de doze faixas e ter seu talento sancionado pela Associação dos Críticos do Estado de São Paulo. Mas peraí. Num tá faltando uma dose de ousadia aí não, camarada?


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