Robert Bresson, Lancelot du Lac, 1974
Sangrando no bosque
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Por várias razões, Lancelote do Lago [Lancelot du Lac, 1974] é um dos filmes mais idiossincráticos da já idiossincratíssma filmografia de Robert Bresson. E por diversas razões. Um projeto nutrido por Bresson desde o início dos anos 60, ele só pôde realizá-lo uma década depois.
Além disso, para o Lancelot, Bresson pensou em, pela primeira vez, lançar mão de atores profissionais depois de muitos anos, contrariando sua prática de só formar seus casts com o que ele chamava de 'modelos'. [Para os papéis de Guinevere e Lancelot ele havia cogitado, respectivamente, Natalie Wood e Burt Lancaster – ambos no auge de suas carreiras].
O projeto, no entanto, desandou. E, muitos anos após, ele acabou empregando 'modelos' e não atores na feição do filme. 'Modelos' é sua denominação para amadores, gente comum, que nunca esteve antes diante de uma câmera de filmagem sob um set de luzes. E o que Bresson almejava com esses modelos era justamente, através deles, captar uma dose a mais de espontaneidade e humanidade – complexa, hesitada, exilada dos clichês das performances dos atores escolados: os galãs ou primas-donas, que o star system de Holywood consagrou. [Ou, por aqui, o telemelodrama da Globo].
Uma espontaneidade que, a seu modo de ver, perde-se para sempre quando se estuda para/ou se torna um ator profissional. Os tiques e vícios que são incorporados nesse processo. Vícios que, de acordo com ele, deixam em corolário o fato de uma pessoa sequer erguer a sobrancelha com certa espontaneidade ou automatismo. Toda essa questão é, aliás, calcada na contraposição radical que Bresson propõe entre o teatro, de um lado, e o cinema de outro. Sendo o cinema, para ele, uma espécie de anti-teatro.
Aliás, não propriamente o cinema. O termo que Bresson lançava mão era 'cinematógrafo'. E era 'cinematógrafo' o que ele dizia realizar para contrapor sua arte à quase totalidade do que fora e vinha sendo feito para ser veiculado em salas de exibição ao seu tempo. 'Cinema', para ele, na radicalidade de seu parti-pris, era apenas teatro fotografado. Tudo isso segue exposto em suas raras entrevistas e no seu precioso e único livro, Notas sobre o cinematógrafo. O livro é, na verdade, um magro analecto de uma devastadora lucidez e organicidade. Um maximário como não se encontra igual entre qualquer outro grande cineasta que escreveu sobre o ofício. Há uma proverbialidade espontânea exalando-se ao longo de todo o livro. Vejamos algumas dessas pequenas notas. Em especial, as que tratam dessa relação teatro/cinema, mediada pela diferença entre atores/modelos – e que ele entendia como tão conflituosa e, mesmo, antitética. [Até certo ponto o grande número de citações visa contextualizar um melhor entendimento da questão]:
Um ator extrai de si o que não está verdadeiramente dentro dele.
[Notas sobre o cinematógrafo, trad. Evaldo Moscarzel, Iluminuras, 2005, p.56]
Modelos. Capazes de se abstrair da própria vigilância, capazes de ser divinamente 'eles mesmos'.
[p.63]
A seus modelos: “falem como se estivessem falando para vocês mesmos”. MONÓLOGO EM VEZ DE DIÁLOGO.
[69]
Modelos. Mecanizados exteriormente. Intactos, virgens interiormente.
[70]
O ator que estuda o seu papel supõe um “eu” conhecido antecipadamente (que não existe).
[74]
O real não é dramático. O drama nascerá de uma evolução de elementos não dramáticos.
[75]
À segurança dos atores contraponha o encanto dos modelos que não sabem o que são.
[77]
Modelos: movimento de fora para dentro [nota do blogueiro: isto é do visível, do mundo, para a personalidade; ou se quiserem, do mundo para o espírito, o temperamento, a psicologia individuada de cada um]
Atores: movimento de dentro para fora.
[18]
Não há relações possíveis entre um ator [de teatro] e uma árvore. Eles permanecem dois universos diferentes. [Afinal] uma árvore de teatro simula uma árvore verdadeira.
[21]
Opor ao relevo do teatro a superfície lisa do cinematógrafo.
[27]
No palco, um cavalo, um cachorro que não é de gesso causa um mal-estar. Ao contrário do cinematógafo, buscar uma verdade no real é funesto para o teatro.
[As seguintes citações foram retiradas de entrevistas com o cineasta, em diferentes revistas e até documentários, mas vão no mesmo rumo]:
“O cinema é o teatro fotografado. O termo cinematógrafo é, para mim, sinônimo de arte cinematográfica.”
“Dizer um texto, ler um texto, nunca recitá-lo.”
“Uma dificuldade substancial em parte de meu trabalho é fazer meus não-atores falar normalmente. Não pretendo eliminar o diálogo (como no cinema mudo), mas meus diálogos têm de ser muito especiais – não como os discursos do teatro.”
Um ator adquiriu de tal modo o hábito de ser ator que, na própria vida, ele é ator. Não pode evitar sê-lo. Viver de outra maneira. Não pode existir de outro modo que não seja exteriorizando-se.
[Não buscar] catalogar uma emoção como fazem os virtuosos. É isso: os atores são virtuosos.
A propósito da originalidade, falaria dela em qualquer pessoa exceto em mim. Mas há, a este propósito, uma definição de originalidade que é magnífica e que talvez nos possa servir - quem sabe transformando-a, reescrevendo a coisa. É a seguinte: "a originalidade é querer fazer como os outros sem nunca conseguir". É uma definição maravilhosa e que é de uma verdade extraordinária.
[Robert Bresson]
Bem, aqui, o leitor – especialmente o leigo – já pode ao menos ter uma idéia de como Bresson concebia a diferença entre ator e modelo. Ou entre teatro e cinematógrafo. Para ele, o cinematógrafo, arte mais realista que o teatro, capta e revela – obviamente lançando mão de técnicas e meios próprios – o real de modo muito mais efetivo que o teatro. E aqui não se trata de mero ou ingênuo “naturalismo”. [E como soa saudável essa sua crença em um mundo real, exterior e vivo, a ser REVELADO].
É, de resto, uma opinião controversa, bastante discutível. Fôssemos entrar por essa senda e ela demandaria muito mais espaço. Por ora, dizer ao menos que, concordemos ou não com ela, em parte ou radicalmente, Bresson a desenvolveu com fôlego e, inclusive, a ilustrou com raro brilhantismo, através de seus treze filmes, que assomam, de fato, tão únicos diante de quase todos os demais filmes que se vê por aí. E, por vezes mesmo, um tanto desajeitados ou deslocados.
Essa falta de jeito, então – especialmente no que diz respeito à performance dos atores, mas não só – está presente de modo marcante no Lancelot. Assim como os enquadramentos estranhos, que decepam cabeças e mãos. O valor dado ao ato de atravessar portas. O modo como seus raros closes privilegiam as mãos e os pés de seus modelos, muito mais do que seus rostos. ou ainda observam de muito perto objetos banais: uma concheira de sopa, dois figos verdes à palma de uma mão. Assim como no Lancelot salta aos ouvidos outra das obsessões do autor de L'Argent: o emprego do som.
Lancelot du lac, começa com um tropel de cavaleiros andantes, metidos em suas armaduras, por um bosque. O filme trata da legenda do Santo Graal já em seus estertores. O centro das tramas em torno do Rei Arthur e dos cavaleiros da távola redonda vai por recobrar essa relíquia. Ou seja, o cálice que Cristo usou na Última Ceia. Acreditava-se que a descoberta desse cálice e sua veneração poderia atrair anos de paz e prosperidade para o reino. Instalar um espécie de milenarismo. O mais jovem e virtuoso dos cavaleiros da Távola, Perceval se lança, então, a essa tarefa. Reza a lenda que chegou a encontrá-lo. Mas Perceval jamais retornou de sua jornada. E sua figura restou envolta em brumas de mistério. Ele sequer aparece no filme, já que os sucessos postos em campo se dão muito após a passagem de Perceval pela intriga.
À sua vez, após o sumiço de Perceval, instala-se uma verdadeira competição entre os outros cavaleiros, incluindo Lancelot, para ver quem teria o privilégio de recobrar o Graal. E a própria busca a que se lançam é marcada por uma truculência extrema: povoados incendiados, igrejas profanadas, assassinatos, traições, conspirações, motins, acusações, desconfianças. Todo um mundo de maquinações e jogos de poder onde o que menos entra, de fato, em consideração é reaver a relíquia por mérito da virtude.
O certo é que, após muitos anos de busca, os cavaleiros retornam a Camelot, à corte de Arthur, de mãos vazias. E é neste ponto que o filme, de fato, começa. Lancelot, um dos últimos a retornar, logo reata seu idílio adúltero com a Rainha Guinevere, a mulher de Arthur. Nesse ínterim, Mordred, um antigo desafeto, acusa-o de traição e Lancelot, a despeito de receber o apoio de seu fiel amigo Gawain – que, após a partida de Perceval, parece assumir o posto do cavaleiro mais tocado pela graça e pela santidade – exila-se da corte e vaga pelos bosques. No entanto Mordred não contente em pôr o mais valoroso dos cavaleiros no exílio, tenta, à certa altura, usurpar o trono pondo-se em combate contra o próprio rei. Por fim, Lancelot retorna triunfalmente, para, ao lado de Gawain, defender Arthur contra a tentativa de usurpação de Mordred. [Note-se ao redor dessas lendas todo o movimento de exílio e retorno. Um retorno para a restauração da honra perdida. Mas também um retorno para casa. Para o auto-conhecer-se. É o mesmo que há na Odisseia, no Poema do Cid, etc. Cá, entre nós, no Grande Sertão, p. ex.]
Mas também a legenda arturiana, como tratada por Bresson, revela uma Idade Média sem nenhum glamour. Há intriga e violência vazando por todos os lados. Os interiores dos castelos são despojados, quase sem móveis ou adereços. Câmaras ocas, sórdidas, que ressoam o passo metálico de quem as atravessa. A távola redonda mais se assemelha a uma tosca mesa de madeira crua. Corpos prosseguem em combate e o sangue esguincha para fora de armaduras. Está por todo lado. Numa gesta, falta de qualquer charme, o destaque segue para a mecânica violência do combate e da dificuldade de se combater guarnecido de elmos, couraças e gibões de couro. Em suster e manejar as pesadas lanças. As montarias são cavalinhos pequenos e sem garbo. O 'modelo' que faz Lancelot, é já um homem de meia-idade, que pouco retém no rosto,- com marcas de expressão dignas de quem foi açoitado pela vida - a olímpica marca dos vencedores, característica dos galãs. O bosque, sombrio, é entrevisto tanto como metáfora de vida neste mundo quanto do próprio demônio. Ele está coalhado de marcas dessa violência. Esqueletos de cavaleiros a pender das árvores, ainda revestidos de suas armaduras. Altares de capelas profanados. Pilhas de reluzente metal recobrindo os corpos dos cavaleiros trucidados em combate acumulam-se pelas trilhas. É um mundo sombrio, aparentemente sem remissão. Mas, ainda assim, estranhamente mais atraente que o nosso. Ou mais obcecado pela busca da verdade.
Uma das cenas mais belas do filme é quando Lancelot, ferido após um combate, refugia-se no bosque. Sangrando. Ele e seu cavalo. A cena, aliás, é aludida em um poema de Robert Creeley, que pode ser visto aqui [com a respectiva tradução].
No filme, a mais severa crítica a todo esse estado de coisas – a insana violência desencadeada pela busca do Graal – provem de Guinevere. Ela dimensiona muito bem o tanto que essa relíquia sagrada, tornada objeto de disputa, está no centro de tamanhas violência, morte e desgraça. Guinevere assoma também como a única dama no centro de uma malta de guerreiros que nela entrevêem não só uma mulher, mas uma espécie de ideal.
O filme é também, entre todos os de Bresson, onde um elemento-chave mais é posto em evidência: o som. É um filme também para ser ouvido por músicos. Não que nele haja música ou sequer trilha sonora – a não ser um pequeno tema na abertura, executado por flautas e tambores. Mas, de outro modo, porque ressoa, ao longo de toda sua duração o clangor metálico das armaduras, o tropel dos cavalos, o reverberar oco das amplas salas vazias dos castelos, onde se trama a desgraça alheia. Ou seja, tudo que compõe o índice maior da violência de que ele trata é amplificado pelo som.
Como já foi dito, não há qualquer altivez galante – talvez à exceção do jovem Gawain [que é o semblante que aparece na foto de ilustração, acima, em primeiro plano, tendo Guinevere ao fundo] - entre os cavaleiros da Távola. Eles assomam tão sórdidos quanto jagunços. E, em certo sentido, a estes se assemelham. Na cena do duelo, as peças de metais e a dificuldade de se mover sob elas parecem ganhar destaque diante da agilidade ou da bravura dos contendores. E as armaduras reforçam ainda mais os movimentos mecânicos dos protagonistas – tão característico de outros filmes de Bresson. Elas parecem conformar uma espécie de máscara que se estende ao corpo inteiro e não só ao rosto.
O Lancelot de Bresson talvez não possa constar entre seus melhores filmes. Apesar de despojado, não revela o minimalismo de Um Condenado à Morte Escapou. Ou o balé de movimentos e mãos de Pickpocket. Ou certo idílio da província captado ainda que por contraposição á desgraça dos protagonistas em Diário de um Pároco ou Mouchette. Ou o charme de Au Hasard Balthazar, que tem como protagonista um burrico. Ou, por fim, as sofisticações do mundo nas grandes metrópoles e a ausência de graça como em L'Argent, seu canto de cisne.
E, ainda assim, é um grande filme. É Bresson em estado puro. Provem do menos barroco dos cineastas. Do que, por sua contenção e radical ênfase no emprego mínimo de recursos e de sua criatividade em desencavar sucedâneos extremamente criativos para velhas práticas narrativas e técnicas, mais possui lições a ensinar à estética e ao cinema de um país histórica e endemicamente tão barroco quanto o Brasil.
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