[s/i/c]
Pensamento Longe
A leveza de teu vestido
E tuas mãos dizendo adeus.
Eu iria, mesmo com a certeza de não te encontrar,
E voltaria sem te ter visto,
Passeando com a tua lembrança.
Eu caminharia horas e horas pensando em ti,
Sem chegar nunca ao termo do caminho
Onde estivesse escrito: “Aqui se acaba o amor”.
Dante Milano
A Mulher e a Casa
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra:
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;
pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,
os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
João Cabral de Melo Neto
Nota – tão distintos e nobres estes poemas e o mesmo assunto. O único assunto. Um nomeia. É direto, vem de Platão? O outro é aristotélico, tem algo de uma limpidez viquiana. Mas não diz menos o seu nome, apesar de não explicitá-lo. No de Milano o contraponto entre a leveza do vestido e a das mãos. Objeto, corpo. Realçam. O obstinado passeio até onde está grafada a única chance de vencer o impossível. E, antes, a beleza desse verso em que o oblíquo se desloca tão de leve como a suavidade do vestido: “e voltaria sem te ter visto”, tão mais belo, tão mais propondo uma variação sedosa que o coloquial “e voltaria sem ter te visto”. Mas tudo isso também vem de um tradutor, bem se vê. E de um tradutor de Dante. Coisa de gente do ramo, de xarás.
O poema de Cabral é mais símile. É míssil. Despudor de repetir 9 vezes o adjetivo "dentro" e não soar chato, como lá fora descortina-se uma rua chamada tesoura. A beleza da segunda estrofe, que fecha no dístico magnífico “esse teu reboco claro,/ riso franco de varandas”. Há algo de Nordeste, profundamente, nesse reboco claro – que Gonzaga irá explorar num xote com letra de José Marcolino. Ou nesse “riso franco de varandas”, que parece proceder do Joaquim Cardozo de “Veraneio” [“Dentro da casca vermelha/ polpa de coco maduro:/ alvos dentes, riso franco/ carne de peixe”]. E depois Cabral diz que sua poesia nunca deriva da de Cardozo. Pois sim! Mas a seguir, há os dois versos mais belos: “uma casa não é nunca/ só para ser contemplada”. Há algo mais do que Bauhaus, aqui, é claro. Nas suas toantes contumazes “abra/fechada; nada/guarda; aconchegadas/cavas” quanto mais despida a casa – como desataviada é a casa do Nordeste – e, por isso mesmo, mais misteriosa e cheia de cavas. [1] Como a mulher é para um homem. Aqui dá até para lembrar de alguns versos de Creeley, em "The Name", pois Creeley de Cabral algo tem:
O poema de Cabral é mais símile. É míssil. Despudor de repetir 9 vezes o adjetivo "dentro" e não soar chato, como lá fora descortina-se uma rua chamada tesoura. A beleza da segunda estrofe, que fecha no dístico magnífico “esse teu reboco claro,/ riso franco de varandas”. Há algo de Nordeste, profundamente, nesse reboco claro – que Gonzaga irá explorar num xote com letra de José Marcolino. Ou nesse “riso franco de varandas”, que parece proceder do Joaquim Cardozo de “Veraneio” [“Dentro da casca vermelha/ polpa de coco maduro:/ alvos dentes, riso franco/ carne de peixe”]. E depois Cabral diz que sua poesia nunca deriva da de Cardozo. Pois sim! Mas a seguir, há os dois versos mais belos: “uma casa não é nunca/ só para ser contemplada”. Há algo mais do que Bauhaus, aqui, é claro. Nas suas toantes contumazes “abra/fechada; nada/guarda; aconchegadas/cavas” quanto mais despida a casa – como desataviada é a casa do Nordeste – e, por isso mesmo, mais misteriosa e cheia de cavas. [1] Como a mulher é para um homem. Aqui dá até para lembrar de alguns versos de Creeley, em "The Name", pois Creeley de Cabral algo tem:
The Name [fragment]
Be natural,
wise
as you can be,
my daughter,
let my name
be in your flesh
I gave you
in the act of
loving your mother,
[...]
Be natural,
daughter, wise
as you can be,
all my daughters,
be women
for men
when that time comes.
Let the rhetoric
stay with me
your father.
Robert Creeley
O Nome [fragmento]
Sê natural,
sábia
como é de teu alcance,
minha filha,
deixa meu nome
estar na tua carne
que te dei
no ato de
amar tua mãe,
[…]
Sê natural,
filha, sábia
como sabes ser,
todas a minhas filhas
sendo mulheres
para homens
quando esse tempo chegar.
Deixa a retórica
ficar comigo
teu pai.
Muita gente hoje chiaria ante a crua beleza, talvez politicamente incorreta, destes magníficos –e não menos medonhos – versos escritos, talvez, num tempo mais sadio. Mas versos que em nada malbaratam o imenso mistério que sempre será uma mulher para um homem. Seja ela mulher, irmã filha. As que exercem sobre os homens “a vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la”, como diz Cabral ao final de suas quadras.
Ruy,
ResponderExcluirBelíssima postagem. Outro dia eu lia "a mulher e a casa" do joão cabral. Mas lendo assim, como agora, seguido de sua visão, me deu outra visão (risos).
adorei esse post!
abraço mineiro.
Voltou afiadíssimo, que maravilha.
ResponderExcluirBeijo.